Por JEAN MARK VON DER WEID*
Foi estarrecedor assistir ao duplo circo de horrores ocorrido no começo de junho; a votação do PL da Devastação no Senado e a tentativa de destruir a Ministra do Meio Ambiente (e da Mudança Climática), Marina Silva, na cova das hienas de uma comissão do mesmo Senado.
Muito já foi dito e escrito sobre o desmantelamento da legislação ambiental pelo Congresso. Desde a promulgação no novo Código Florestal no apagar das luzes do governo Dilma II, negociado pelo executivo com o Congresso, que não se via um golpe tão profundo no arcabouço construído penosamente ao longo do tempo. Vieram abaixo elementos essenciais para evitar o contínuo arraso ambiental perpetrado pelo nosso desenvolvimento insustentável, em especial pelo agronegócio, pelas empresas mineradoras e pelas usinas hidroelétricas.
Os ambientalistas lutaram, por décadas, por leis e políticas que preservassem o meio ambiente, no mais das vezes com uma forte argumentação protecionista (conservacionista). No começo o movimento centrou-se na luta pela preservação de espécies ameaçadas de extinção e foi ampliando o escopo para defender os habitats destas espécies.
Desde a ECO92, entretanto, o movimento ecológico foi assumindo uma visão mais abrangente e moderna, deixando a mera defesa de elementos da natureza para incorporar uma outra visão, a do desenvolvimento sustentável, superando a ideia de preservação para adotar um novo paradigma que redefine as relações entre o homem e a natureza, superando o antropocentrismo. No período anterior, a ênfase se colocava em buscar a criação de espaços protegidos (reservas naturais), onde a natureza ficaria intocada. Hoje está evidente que o conjunto dos processos econômicos e sociais tem que ser norteado por critérios que garantam a preservação do conjunto do planeta: o solo, os recursos hídricos, a biodiversidade, o ar.
O processo de devastação ambiental ocorrido desde o fim da Segunda Grande Guerra Mundial, chamado de Grande Aceleração pelos cientistas, está levando a humanidade para um abismo em que a própria civilização, tal como a conhecemos, deverá entrar em colapso no prazo de uma geração. Hoje se entende que cada atividade econômica dever ser controlada segundo critérios de sustentabilidade ambiental, seja ela a agropecuária, a indústria, a mineração, a geração de energia, o transporte, o consumo, a habitação, o turismo, entre outras.
Na nossa realidade distópica, o que estamos vendo é justamente o contrário. As parcas medidas legais que introduziram estes controles estão sendo derrubadas, abrindo caminho para a aceleração ainda maior da devastação. Não que a legislação agora derrubada tenha sido um elemento de controle eficaz. No máximo ela inibiu um pouco os ataques de grileiros, mineradores (legais e ilegais), madeireiros, criadores de gado e fazendeiros. Mas é possível piorar, e o Congresso, hoje dominado pelas forças da devastação, deu o passo final no “liberou geral”.
Temos a tendência a achar que estas medidas são apenas a expressão do agronegócio “atrasado”, da “bancada do boi”, e que o agronegócio “moderno” não teria interesse neste caminho. Infelizmente o quadro é mais preocupante.
Para começar, este “desenvolvimentismo tosco”, que vê os recursos naturais como algo a ser explorado até o esgotamento para obter lucros imediatos, é insensível aos impactos mais amplos de suas atividades. Não é uma visão definida por ideologias de esquerda ou de direita e não é privilégio do agronegócio. A esquerda no Brasil ainda persiste em uma visão hegemônica de que nada deve limitar a liberdade das “forças produtivas”. Este discurso pseudo marxista soa muito próximo ao neoliberalismo e tem o mesmo efeito catastrófico.
Isto se reflete na atitude do governo Lula ao tratar do tema, com ministros, lideranças partidárias e o próprio presidente pressionando para derrubar resistências do MMA à exploração do petróleo na área de influência da foz do rio Amazonas (a chamada margem setentrional), à pavimentação da estrada Manaus/Porto Velho e, quase sem disfarces, à derrubada da legislação do licenciamento ambiental. Isto sem falar em outras decisões no passado, facilitando a construção da Usina de Belo Monte, a transposição do Rio São Francisco, o Código Florestal, a legislação sobre a mineração, entre outras.
No caso presente (PL da Devastação), ao que tudo indica, a principal força motriz política foi a bancada do boi, sobretudo a que representa os interesses do agronegócio da região amazônica. Ao que tudo indica, estamos assistindo a um possível tiro no pé dos interesses da exportação de carne bovina, opondo setores “atrasados” e “modernos” do agronegócio. No entanto, a sólida aliança dos vários setores do agronegócio pode ser preservada pelo famoso “jeitinho brasileiro”.
O governo Lula tem se esforçado para concluir a longa negociação de um acordo comercial com a União Europeia, travado durante o governo Bolsonaro exatamente devido ao problema da destruição da floresta amazônica. Em 2023, a UE ultimou sua posição para assinar o acordo (muito prejudicial para os interesses brasileiros em geral, a meu ver e por outras razões) inclusive encaminhando uma carta, indicando que a UE havia votado uma medida proibindo a importação de carne de reses e outros produtos agropecuários oriundos de áreas desmatadas a partir o ano 2020.
O governo Lula assumiu a defesa do agronegócio brasileiro, protestando contra esta decisão, condenada como protecionismo. Conseguiu o adiamento da entrada em vigor da medida até janeiro de 2026, mas não há, até agora, nenhum movimento pela sua revogação entre os europeus. Com o PL da Devastação facilitando o desmatamento na Amazônia, esta negociação pode ser definitivamente travada.
Já no início da década de 2010 o governo Dilma negociou com as empresas exportadoras de carne (inclusive algumas das maiores, como a JBS e a Marfrig) a adoção de “garantias voluntárias”, certificando que a carne importada pela Europa vinha de áreas não desmatadas recentemente, visando vencer a resistência à carne bovina brasileira.
O Brasil sendo o Brasil (terra do “jeitinho”), o agronegócio adotou uma forma de driblar o controle. . a solução foi fazer passear o gado, tirando-o das fazendas desmatadas há pouco tempo, onde as rezes nasceram e foram criadas e levando-o para fazendas comprovadamente desmatadas há mais tempo, para engorda e abate.
A única forma de impedir o jeitinho e garantir o controle da regra do não desmatamento é através do chamado rastreamento, com a colocação de um dispositivo eletronico, um chip, nos bezerros, o que permite identificar onde nasceram, se criaram, engordaram e foram abatidos. É isto que os negociadores europeus estão pedindo ao governo brasileiro.
A questão do rastreamento está na pauta do congresso desde 2010, mas a bancada do boi vem conseguindo adiar o debate e votação até agora. Não há nada que indique que isto vai mudar embora, aparentemente, isto possa prejudicar as nossas exportações. Entre os criadores de gado e os frigoríficos persiste a crença que esta ameaça não vai se concretizar e que, se isto de fato ocorrer, vai ser possível dar outro “jeitinho”.
É preciso lembrar que a parte exportada da nossa produção de carne bovina gira em torno de 35 a 38% e a maior parte fica no mercado interno e aqui não existem restrições à venda de carne oriunda de áreas desmatadas. Por outro lado, as exportações de carne do Brasil se dirigem, cada vez mais, para a China, onde as restrições quanto à origem desmatadora não se colocam, por enquanto.
As restrições impostas pela UE podem ser contornada por uma redistribuição da origem do produto no Brasil. Com efeito, uma parte crescente da exportação para a Europa já vem de áreas com menor desmatamento, e o que está na mira dos europeus é sobretudo a carne oriunda da Amazônia. Os interesses do agronegócio podem ser contemplados com a carne das áreas desmatadas na Amazônia sendo vendidas para a China ou no mercado interno, deixando para a Europa a produção das áreas do resto do país.
Tudo isso é, teoricamente, viável, mas falta “combinar com os russos”. Lembremos que a resistência à importação da carne brasileira pela UE não advém de uma preocupação ambientalista de preservar a Amazônia, “pulmão do mundo”, mas da pressão do lobby dos criadores de gado, sobretudo franceses. Para este lobby, o que interessa é restringir a importação e a forma encontrada foi o argumento ambiental, que pega bem para uma parte significativa o mercado consumidor.
Os franceses perceberam que os acordos acertados com os frigoríficos no tempo do governo Dilma estavam sendo driblados e passaram a exigir o rastreamento. Como eles estão longe de ser idiotas, se o rastreamento for driblado, com o deslocamento da exportação de carne para a Europa a partir de outras regiões do Brasil, o próximo passo vai ser cobrar o rastreamento total da carne no Brasil, supostamente para “salvar a Amazônia”. É uma posição mais difícil de defender em lugares como a Organização Mundial do Comércio, já que implica em boquear todas as exportações de carne brasileiras para a Europa, mas pode convencer o público consumidor na Europa, independentemente da posição dos governos ou da própria União Europeia.
Para todos os efeitos, o agronegócio (“moderno” ou “troglodita”) está se mostrando unido na luta pela derrubada de restrições às suas práticas destruidoras do meio ambiente, mesmo que nem todos estejam implicados nos desmatamentos. Ou não acreditam nas ameaças dos importadores ou acham que podem dar um “jeitinho”.
É com esta retaguarda carregada de sinais negativos que o Lula vai se encontrar com o presidente francês, Macron, para discutir o acordo comercial e a COP30. Nosso presidente é um político muito hábil, fato reconhecido até pelos seus mais ferozes adversários, mas esta conversa vai pôr à prova sua capacidade. Acredito que o nó da questão vai ser o rastreamento e o Lula vai ter muita dificuldade de convencer Macron e a opinião pública europeia de que sua intenção de zerar o desmatamento na Amazônia é sincera e não conversa para boi dormir (literalmente).
Voltando à tentativa de massacre da ministra Marina Silva, o fato de que ela foi parar na cova das hienas sem um apoio da base governamental no Senado mostra que um processo de fritura está em curso no governo.
A história dos desencontros entre Marina e Lula e o PT vem de longe e é recheada de (maus) exemplos. No primeiro governo Lula, para o qual ele a convocou na cabeça da lista de ministros, Marina assumiu o MMA dizendo que faria uma gestão interagindo com todos os ministérios, adotando uma posição (correta) de transversalidade da pauta ambiental. Em pouco tempo foi escanteada pela decisão de Lula de liberar uma safra de soja transgênica plantada ilegalmente em metade do Rio Grande do Sul. Lula prometeu que era temporário, até que fosse votada “a mais avançada lei de biossegurança do mundo”. Marina engoliu o sapo.
Em seguida o governo propôs uma lei que feria a Constituição, tirando do IBAMA e da ANVISA a atribuição legal de liberar a introdução no país de produtos passíveis de prejudicar o meio ambiente e/ou os consumidores. Foi um golpe enorme na Ministra, inclusive porque nem o governo de Fernando Henrique Cardoso tinha ousado fazê-lo, sobretudo pela resistência de seu ministro do meio ambiente, Sarney Filho e do movimento ambientalista. Marina entubou mais um sapo cururu tamanhudo.
Depois vieram Belo Monte e a transposição do São Francisco e ela seguiu ingerindo sapos cada vez mais indigestos. A fritura foi longa e acabou com a nomeação do exótico Mangabeira Unger para secretário especial de questões estratégicas (ou algo parecido) com a responsabilidade de fazer um plano de desenvolvimento para a Amazônia, tirando o doce da boca da ministra. Foi demais e ela partiu, ressentida e isolada, para a alegria dos desenvolvimentistas toscos do governo. E ainda teve que ouvir o Lula dizer que tinha nomeado Carlos Minc ministro “para acelerar as coisas”. Que coisas? Tudo o que Marina vinha segurando em função dos impactos ambientais negativos previsíveis. Minc e, sobretudo, sua secretária executiva e futura substituta no ministério, Isabela Teixeira, cederam aos apelos ou pressões de Lula, embora tenham feito muita coisa positiva em temas menos espinhosos para os desenvolvimentistas toscos que dominaram os governos de Lula e de Dilma..
No governo Lula III a história se repetiu, tintim por tintim. O MMA ampliou o seu escopo (pelo menos no título) para incluir o tema da “Mudança Climática”. Outra vez rolaram discursos de transversalidade na Esplanada dos Ministérios, desenvolvimento sustentável, e outras bondades mais. Se não foi para inglês ver, certamente foi para nordestino ver.
Mas em muito pouco tempo, o lero-lero foi abandonado pela pressão a favor da liberação da exploração do petróleo na margem setentrional, inicialmente com o pau cantando nas costas do presidente do IBAMA e poupando Marina, até porque ela se escondeu atrás das “decisões técnicas” de seus subordinados. A pressão sobre ela veio sob a forma mal disfarçada de um “elogio” – “Marina é inteligente, ela não está contra a exploração do petróleo”, declarou o presidente. O tom subiu em pouco tempo, com o famoso “é preciso acabar com a lenga-lenga”, verdadeiro ultimato para Marina.
A pressão acabou por funcionar, com o IBAMA cedendo depois de ter emitido um parecer contrário com forte argumentação científica. Por outro lado, Marina, com todo o seu discurso de transversalidade na Esplanada, não ousou abrir o debate sobre a questão da exploração do petróleo como fonte de emissão de gases de efeito estufa, o principal fator de estímulo ao aquecimento global. Ministério da Mudança Climática? Só no papel. Em um governo tomado pelo desenvolvimentismo tosco, centrado no curtíssimo prazo, Marina não seria apenas objeto de fritura se abrisse a boca sobre o tema; seria afogada no óleo frio, talvez diesel.
As manifestações de solidariedade (Lula, Gleise, outros) contra os ataques misóginos e racistas dos senadores da região amazônica e o silêncio e ausência da base do governo, inclusive do PT e de seu ex-colega de partido, Randolfe Rodrigues, deveria ter aberto os olhos de Marina sobre o significado do ocorrido na comissão do Senado. De público, ela se diz apoiada pelo governo, recusando as reportagens que a apontam como isolada. Mas afirmou que está negociando com os líderes da Câmara uma revisão do PL e que não conta com a Casa Civil para isso, deixando escapar a sua situação de isolamento.
Os jornais revelaram que Rui Costa e Jacques Wagner não responderam a uma tentativa de negociação da relatora do PL, senadora Teresa Cristina, propondo a retirada de várias das passagens mais negativas do projeto, em troca de um apoio do governo. O governo não se manifestou e o projeto passou na sua forma mais destrutiva, por 54 a 13 e 14 ausências e abstenções. Como o governo não reagiu publicamente ao pacotão da devastação (salvo o MMA), não parece que a liderança do governo tenha evitado o acordo proposto pela ex-ministra da agricultura como tática para um enfrentamento posterior na Câmara, onde a correlação de forças, aliás, é ainda pior.
Tudo indica que foi feito um acordo entre Alcolumbre e Lula, com o segundo cedendo no PL e o outro engavetando a Comissão Mista de Inquérito sobre os desvios do dinheiro dos aposentados do INSS. Se foi esse o caso, o governo fez papel de bobo, já que existe um pedido do PL ao STF para obrigar a convocação da comissão, com muita possibilidade de ser aceito devido ao precedente da instauração da CPMI da Covid.
A meu ver, a Marina não caiu ainda por causa da COP30. Ela já teve que entubar a nomeação de um diplomata para presidir o evento, quando a praxe nas COPs é a presidência ser assumida pelo ministro do meio ambiente do país hospedeiro. Mas seria uma bofetada no movimento ambientalista no Brasil e no mundo decapitar Marina neste momento. Mas se ela saísse desmoralizada da cova das hienas do Senado poderia até pedir o chapéu e acho que muitos no governo torciam por isso. E fora do governo, nas redes sociais, tenho visto manifestações ainda mais brutas, acusando Marina de “agente do multimilionário George Soros”, “traidora que pediu voto para o Aécio em 2014”, “inimiga do desenvolvimento”, “alguém que nunca poderia estar neste governo”.
Tenho muitos problemas com o perfil excessivamente conciliador da Marina, que a faz não peitar as políticas equivocadas do governo, sempre pensando em fazer o melhor possível, mesmo perdendo posições essenciais (“perco a cabeça, mas não perco o juízo”, como ela costuma dizer). Mas o que o governo fez com ela foi cruel. Sem disfarces, Marina foi entregue na bandeja à sanha das hienas e trogloditas da bancada ruralista no Senado.
Foi demais. Foi quase tão abominável quanto a campanha de desconstrução da candidata verde que estava ameaçando a reeleição de Dilma em 2014.
A postura corajosa e digna de Marina, apesar da truculência do ataque, deixou o governo envergonhado e embaraçado. Se ela tivesse jogado a toalha depois da batalha, mostrando que não saía do governo por causa do ataque, mas pela ausência de apoio entre seus supostos pares ela sairia com mais calibre do que no episódio da sua fritura anterior, em 2008. Continuar se arrastando no MMA até a COP 30 me parece inexplicável. Há algo salvável na posição do governo Lula? Há algo salvável na própria COP 30?
Publicado originalmente em 68 na Luta.
*Jean Marc von der Weid é Ex-presidente da UNE (entre 1969 e 1971), Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia, Membro do CONDRAF/MDA e Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta
Foto da capa: Lula Marques/ Agência Brasil