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Voltar para o trabalho de base. Qual base?
RED
Por JOSÉ FORTUNATI*
Os resultados eleitorais advindos do processo eleitoral de 2024, que mostraram um fraco desempenho da esquerda em todo o país, levantaram um sério debate sobre a necessidade de um reengajamento dos partidos com as bases populares, preparando um novo enfrentamento com a extrema-direita no próximo ano, quando teremos uma nova polarização entre “bolsonaristas” e “lulistas”.
A pergunta que não quer calar: que bases são essas que os partidos de esquerda deixaram de trabalhar politicamente?
Tomo a liberdade de voltar no tempo, para a década de 1970, quando os movimentos sociais, sindicais e o mundo do trabalho estavam em outro patamar organizativo. Neste período participei ativamente do trabalho comunitário nas vilas da Grande Cruzeiro, especialmente na Vila Tronco, militei no Sindicato dos Bancários de Porto Alegre, onde fui presidente e ajudei a fundar e organizar o PT. Nas décadas de 1970, 1980 e 1990, o movimento sindical e as organizações comunitárias eram pilares fundamentais para a mobilização da esquerda. O mundo do trabalho era mais homogêneo, com uma grande concentração de trabalhadores em fábricas e indústrias, com servidores públicos mobilizados e com trabalhadores no setor terciário envolvidos com as lutas sindicais, o que facilitava a organização e a mobilização. As lutas pela redemocratização do país, por direitos trabalhistas, por melhores condições de trabalho e aumentos salariais eram centrais, e as forças de esquerda conseguiram conquistar diversos avanços significativos através de uma forte presença junto às bases.
Foi neste momento que surgiram grandes lideranças como Olívio Dutra e Luís Inácio Lula da Silva, entre tantos outros. Naquele período a organização partidária se dava a partir da formação de núcleos de base por categoria de trabalhadores, por território ou por área de atuação. Desta forma surgiram os núcleos dos bancários, dos metalúrgicos, do Partenon, da Grande Cruzeiro, da cultura, da educação, entre outros. Eram verdadeiras organizações de base onde o militante, ou alguém interessado, podia expor a sua visão num debate aberto e fraterno. Os núcleos de base representaram a grande escola de formação política na formação do PT dos anos de 1980 e 1990. Independentes da estrutura burocrática partidária os núcleos de base foram responsáveis pela construção democrática do PT pois a convivência entre militantes oriundos das organizações revolucionárias da década de 1970, os “igrejeiros” advindos da Igreja Católica ligados a Teologia da Libertação, os “sindicalistas”, os “comunitários”, os originários das universidades (alunos e professores), entre tantos outros, era de uma tensão positiva que procurava qualificar o debate sem o receio das “patrulhas ideológicas” muito presentes nas “tendências/correntes” do partido.
Atualmente, o cenário que encontramos no mundo do trabalho e nas vilas populares é bastante diferenciado. A precarização do trabalho, o crescimento do trabalho informal e a ascensão meteórica do empreendedorismo individual mudaram a forma como os trabalhadores se relacionam com a política e com as organizações de esquerda. Além disso, as forças conservadoras passaram a ter um desempenho muito mais forte e ousado no mundo da política, fazendo um enfrentamento direto, quer modificando a legislação trabalhista que atingiu em cheio a vida sindical, quer tendo uma presença muito forte nas mídias sociais, quer tendo uma participação contundente na política partidária com a eleição de vários representantes da extrema-direita no Congresso Nacional e na Presidência da República.
Cito como um exemplo a categoria dos bancários, cujo sindicato tive o privilégio de presidir nos anos de 1984 a 1986. Neste período existiam no Brasil em torno de 850 mil bancários devidamente empregados no sistema financeiro nacional. Uma categoria extremamente organizada e mobilizada que servia de exemplo para outras categorias de trabalhadores. De lá para cá o sistema bancário brasileiro cresceu, se fortaleceu, com lucros cada vez mais exorbitantes, com a ampliação da oferta de serviços através dos caixas-eletrônicos, dos aplicativos, dos bancos digitais e do PIX. Em contrapartida, a automação bancária no Brasil, uma das mais potentes do mundo, terminou ceifando milhares de postos de trabalho e enfraquecendo a luta sindical. Hoje, a categoria bancária está reduzida pela metade e com uma jornada de trabalho que obriga ao cumprimento de metas draconianas que não permitem que o bancário tenha vontade de participar das lutas sindicais.
Este é o novo contexto que encontramos no mundo do trabalho e na vida concreta de milhões de trabalhadores, o que nos obriga a repensar profundamente as estratégias de mobilização dos partidos de esquerda.
Infelizmente, a maior parte da esquerda não entendeu ainda esta profunda mudança que aconteceu no país especialmente nos últimos 20 anos. Não desejo negar a importância do trabalho desenvolvido pelos sindicatos e pelas organizações comunitárias que continuam desempenhando um papel crucial na mobilização de base pois elas estão mais próximas das necessidades cotidianas da população e podem atuar como pontes entre os partidos de esquerda e as comunidades. Mas, não podemos deixar de considerar que, nos últimos anos, o Brasil tem testemunhado uma crescente tendência entre os trabalhadores pela adoção da “filosofia do empreendedorismo”. Essa mudança tem sido impulsionada por uma série de fatores econômicos, sociais e culturais, que vem transformando o tecido empresarial do país. O espírito empreendedor não é uma novidade no Brasil, pois desde os nossos primeiros passos como nação, os brasileiros têm demonstrado uma capacidade notável para a inovação e a criação de novos negócios. Prova disso é a permanente presença de brasileiros nas equipes da NASA, na criação de “big techs” ou nas empresas do Vale do Silício. Além, naturalmente, das inúmeras empresas existentes no Brasil, de todos os portes e tamanhos.
A cultura das startups, com seu foco em inovação rápida e soluções disruptivas, ganhou terreno no Brasil, sendo que cidades como Porto Alegre, Florianópolis, Recife, São Paulo e Belo Horizonte tornaram-se centros vibrantes de empreendedorismo, atraindo investidores e talentos de todo o mundo.
Naturalmente, temos que ter uma visão crítica sobre este processo pois nem todos os empreendedores têm acesso aos mesmos recursos e oportunidades, o que termina resultando em uma concentração de riqueza e poder em mãos de poucos. Mas, inegavelmente a “filosofia do empreendedorismo” tem cativado milhares de brasileiros. Sabemos que a proliferação de trabalhos autônomos e informais aumenta a precariedade e a insegurança no mercado de trabalho, mas não será combatendo este “espírito empreendedor” que conseguiremos dialogar com esta imensa base popular.
Compete a quem está no governo investir em educação e capacitação para a promoção de um empreendedorismo inclusivo e sustentável. Programas de formação em habilidades empreendedoras, acesso a cursos de gestão e inovação, e o incentivo ao pensamento crítico e criativo desde a educação básica podem preparar melhor os futuros empreendedores. Políticas públicas eficazes podem criar um ambiente mais favorável para o empreendedorismo. Isso, obrigatoriamente, inclui a simplificação dos processos burocráticos, a oferta de incentivos fiscais, o apoio ao crédito e a promoção de parcerias entre o setor público e o privado.
O Presidente Lula já percebeu que o governo precisa aprender a trabalhar com a nova população empreendedora ao afirmar na reunião ministerial, realizada em janeiro de 2025, que “é importante que a gente compreenda que o povo que nós estamos trabalhando hoje não é o povo dos anos 80. Não é o povo que queria apenas ter um emprego em uma fábrica com carteira profissional assinada. É um povo que está virando empreendedor e ele gosta de ser empreendedor e nós precisamos aprender a trabalhar com essa nova característica, com essa nova formação do povo brasileiro”.
“O retorno às bases” deve ter como pressuposto, também, uma revisão de como uma parcela considerável da esquerda continua tratando de forma despolitizada, grosseira e agressiva os mais de 58 milhões de brasileiros que votaram em Jair Bolsonaro. Nos afastamos da “base” quando transformamos o debate político numa lista de impropérios chamando os eleitores de Bolsonaro de “gado”, “fascistas”, “minions”, “negacionistas” e outros adjetivos pejorativos e grosseiros. É um grande equívoco transformar o debate político numa troca de adjetivações pesadas que visam unicamente atacar todas as pessoas que tenham uma posição distinta da nossa, numa clara demonstração da soberba intelectual que se espalhou em parcela da militância de esquerda. Temos que compreender que são inúmeras as razões que os levaram a ter um voto distinto do nosso. É nosso papel fazer o bom debate, com argumentos e dados concretos, buscando o convencimento das pessoas, coisa que, infelizmente, as redes sociais não têm permitido.
Não basta tentar “voltar às bases” através das redes sociais que impulsionam a discórdia, o confronto e a polarização política. Tenho consciência de que as mídias sociais são ferramentas indispensáveis para alcançar e mobilizar muitas pessoas. Elas permitem uma comunicação direta e rápida com as bases, além de possibilitarem a organização de campanhas e mobilizações de forma eficiente. Mas os partidos de esquerda devem investir na capacitação de seus membros para o uso estratégico das redes sociais com um linguajar claro e acessível, com mensagens curtas e precisas, sem “testões” ou “teses acadêmicas” incompreensíveis para a maioria da população.
Um real retorno às bases significa ter que sair dos gabinetes, das salas com ar-condicionado, e ir para “a frente de batalha”, ou seja, pisar nas comunidades, esmiuçar os territórios, falar fente-a-frente com as pessoas, acolhendo os seus sofrimentos e queixas e organizando para que a situação concreta em que essas pessoas vivem possa ser realmente modificada para melhor. As pessoas têm que se sentir sujeitos ativos da política e não meros defensores de qualquer partido ou ideologia.
A educação política feita de forma aberta, com um debate propositivo, é fundamental para conscientizar a população sobre os seus direitos e deveres, além de promover uma compreensão crítica da realidade econômica e social. Programas de formação política, debates públicos e presenciais podem ajudar a fortalecer a base ideológica e o engajamento político.
O processo eleitoral de 2026 já começou e se não nos apressarmos numa maior organização desta base poderemos ter a mesma surpresa que os democratas tiveram nos EUA. Arregaçar as mangas e fazer o bom debate com a população como um todo, e não somente para a nossa “bolha”, é fundamental para o êxito eleitoral no próximo ano.
*José Fortunati, foi Prefeito de Porto Alegre (2 mandatos), Deputado Federal e Secretário de Estado da Educação do RS
Foto da capa: IA
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