Destaque
A problemática estrujuntura brasileira (segunda parte)
RED
Por CARLOS ÁGUEDO PAIVA*
Introdução: a quem se destina este texto?
A principal função do economista, seja no plano da iniciativa privada, seja no plano da esfera pública, é avaliar as tendências em curso e fazer prognósticos do futuro. No setor privado, ele é o sujeito que propõe ou avalia os projetos de investimento da empresa. Suas questões são: O mercado manterá o atual padrão de expansão (seja ele nulo, baixo ou acelerado)? Ou haverá alguma inflexão radical na dinâmica vigente? Caso a firma amplie sua capacidade produtiva atual, o mercado será capaz de absorvê-la? E, caso não ampliemos a capacidade, qual o risco de novos concorrentes ingressarem no setor, deprimindo nossa participação no mesmo e nosso poder de precificação? E qual é a rentabilidade prospectiva das demais alternativas de canalização dos lucros retidos? O que é mais arriscado: diversificar a produção (ingressando em novas searas produtivas) ou fazer aplicações financeiras? Se a opção for diversificar, qual o melhor setor para ingressarmos? Se a opção for financeira, que papéis escolher? Títulos da Dívida Governamental? Ações de empresas nacionais? Índice de empresas chinesas? Ou algum índice de empresas norte-americanas? E qual deles? S&P ou Dow Jones?
Na esfera pública, nossas atribuições são similares. Nosso dever é projetar onde emergirá o gargalo capaz de afetar de forma perversa a dinâmica econômica global. Nos defrontaremos com uma escassez de oferta de mão de obra? E, em caso positivo, de que tipo? Engenheiros, mestres de obra ou pedreiros? Professores, pesquisadores ou administradores? Ou nosso gargalo será de ordem material? Máquinas e equipamentos? Insumos industriais? Insumos agrícolas? Ou serão de caráter estrutural? No plano da infraestrutura? Em qual setor? Logístico ou energético? Eventualmente, o gargalo pode ser de ordem financeira. Haverá ingresso ou fuga de capital estrangeiro? Qual será a taxa de câmbio entre o real e o dólar nos próximos anos? Qual será o ingresso de capital de risco? Quais serão as fontes principais? China, Europa ou EUA?
Bueno, creio que o leitor não-economista já captou a mensagem que quero passar: PLISS, FRIENDS, TENHAM PIEDADE DE NÓS! Já estamos calejados de tanto recebermos críticas pelos nossos prognósticos equivocados. Só pedimos uma única gentileza: entendam que esta tarefa – que, em séculos anteriores foi outorgada a pitonisas, videntes, astrólogos, cartomantes, magos, bruxas e assemelhad@s – é uma tarefa tão relevante quanto complexa. Na verdade, é demasiado complexa. Acho que nem nos cabe pedir perdão pelos erros que cometemos. Prever o futuro é uma tarefa mais que árdua: é impossível. Porém, todavia, não obstante, contudo, cabe, sim, pedir perdão por um erro que é comum a muitos colegas de profissão: PRETENDER QUE PODÍAMOS PREVER O FUTURO E QUE TÍNHAMOS CERTEZA DO QUE VIRIA A OCORRER. Foi aí – e ainda é aí – que morou (e ainda mora) o perigo.
Aparentemente, este grave equívoco começa a ser objeto de autocrítica pela elite da nata dos “compa de profissão”. Pelo menos é o que pretende James Galbraith – filho e herdeiro de um dos maiores economistas heterodoxos norte-americanos do século XX, o grande John Galbraith, e ele mesmo um economista de amplo reconhecimento internacional – em artigo recente, intitulado A saída dos economistas do deserto. De forma particularmente inteligente, James Galbraith NÃO iniciou seu texto apresentando sua própria avaliação do último encontro da American Economic Association, ocorrido na primeira semana de janeiro de 2025. Preferiu dar a palavra inicial ao jornalista Ben Casselman, que cobriu o evento para o The New York Times. Segundo Galbraith, Casselman teria listado aqueles problemas que os palestrantes das mesas centrais do Encontro de San Francisco reconheceram não haver sido resolvidos pela Economia moderna. Quais sejam:
A desindustrialização [dos países desenvolvidos], a crise de 2008 e a recessão subsequente, a desaceleração do crescimento a longo prazo; .... a crise financeira de 2007-09, o choque de preços de 2021-22 e a natureza transitória da inflação resultante. ... Casselman relatou [ainda] a visão de Jason Furman de que os economistas precisam “fazer um trabalho melhor… entendendo os problemas com os quais as pessoas se importam”, e a observação de Glenn Hubbard de que muitos no campo têm sido “desdenhosos e insensíveis” em relação a tais preocupações.
Admitindo que Galbraith reproduziu a leitura de Casselman de forma rigorosa e que o relato deste último foi fiel ao transcorrido, não podemos deixar de saudar a elite dos companheiros de profissão dos EUA. Como bem nos alertava Lord Keynes no Prefácio da Teoria Geral, a grande dificuldade do progresso científico NÃO se encontra na produção de novas ideias: encontra-se na dificuldade de escapar das ideias velhas, que se ramificam por todos os cantos de nossas mentes. Não há como avançar na compreensão da realidade e dos problemas atuais se não colocarmos em dúvida aquilo que nos parece indubitável.
Como procuramos demonstrar na primeira parte deste trabalho a Economia Brasileira encontra-se em “estado de reme reme”. Mas não é só ela. A TEORIA ECONÔMICA NACIONAL TAMBÉM ESTÁ ESTAGNADA, presa a um debate do século passado entre liberais e desenvolvimentistas. Qual o problema da preservação dessa oposição teórica e programática que se mostrou tão profícua nos nossos “anos dourados”, entre 1932 e 1980? ... Simples: a realidade da economia brasileira e da economia mundial atual é muito distinta daquela dos “anos dourados”. E é preciso “reperspectivar” as alternativas REAIS, EFETIVAMENTE POSSÍVEIS, postas à frente.
Vou me dar ao direito de deixar de lado qualquer tentativa de debate com a fração (neo e veo)liberal desse grupo. É preciso entender que o “pensamento liberal” em economia NÃO se estrutura sobre princípios lógicos e/ou empíricos. Ele se estrutura, de um lado, numa ontologia (ou, mais exatamente, teologia!) naturalista, segundo a qual as leis econômicas são tão naturais e imutáveis quanto as leis físicas, e, de outro lado, na defesa de intere$$es muito bem determinados (e muito bem pagos), que têm um único mantra: impostos são coisa do demo; lucros e juros são bençãos divinas dadas àqueles que as merecem. Acredito, sinceramente, que é mais fácil convencer um hindu ortodoxo do caráter ideológico e irracional da estratificação social em castas ou convencer ou um evangélico neopentecostal do caráter cristão do respeito à diversidade religiosa (e, por extensão, do valor moral do respeito às religiões politeístas) do que convencer um economista liberal de que há um papel construtivo na regulação, na tributação e nos investimentos público-estatais. O hinduísmo, o islamismo, as diversas formas de cristianismo e o liberalismo econômico são formas distintas de pensamento religioso, igualmente refratárias a qualquer argumentação científica. Não se trata de pretender que o pensamento baseado na fé, o pensamento de ordem religiosa, seja imutável. A história demonstra à exaustão que não é este o caso. Pelo contrário: as revoluções religiosas são recorrentes, refletindo e impactando as mais diversas dimensões da vida social. Mas elas NÃO DECORREM de debates científicos.
Deixemos, pois, as teologias no seu devido campo e nos voltemos para o debate científico relevante em nossa área de interesse: o debate no interior da Economia Política Crítica. É COM OS ECONOMISTAS POLÍTICOS CRÍTICOS, COM OS HERDEIROS DE ROBERTO SIMONSEN E CELSO FURTADO, COM OS ECONOMISTAS DESENVOLVIMENTISTAS CONTEMPORÂNEOS, QUE QUEREMOS DIALOGAR. É A ELES QUE DEDICAMOS ESTE TRABALHO. E o recado que queremos dar é simples: o Brasil – e o Mundo – pós 1980 não é o mesmo dos nossos anos dourados, do período 1932-1980. Por quê?
Procuramos apontar para aquela que nos parece ser a determinação central do problema em nosso texto inaugural: O ESTADO BRASILEIRO QUE EMERGE DA CRISE DA DITADURA MILITAR É ESTRUTURALMENTE DÉBIL. Vamos retomar este tema na próxima seção, pois ele é central em nossa crítica aos “desenvolvimentistas contemporâneos”. Mas, antes, permitam-nos anunciar de forma mais detalhada qual é, do nosso ponto de vista, o grande equívoco do desenvolvimentismo brasileiro (que se quer) moderno. Seu equívoco é contrário-idêntico do equívoco liberal. Para os liberais, tudo é da ordem da natureza, tudo é como pode ser. Ou, melhor, só é como pode ser se os governos não atrapalharem, tentando realizar o impossível, o que extrapola os estreitos limites definidos pela crônica escassez dos recursos produtivos disponíveis.
Por oposição, os desenvolvimentistas defendem o ponto de vista de que a performance da economia brasileira só não é melhor porque a política econômica em curso é equivocada. É o típico caso de contrários idênticos: para os liberais, o governo interfere excessivamente; para os desenvolvimentistas, interfere insuficientemente. A diferença é evidente. Mas a igualdade também o é: os dois grupos mandam o mesmo recado para a sociedade: SE ME COLOCASSEM NA CONDUÇÃO DA POLÍTICA ECONÔMICA, TUDO SE RESOLVERIA. WE ARE THE BEST. FFFF... THE REST.
Será mesmo?
Ai, que saudades do Getúlio!
Tal como vimos na primeira parte deste trabalho, é possível identificar dois padrões dinâmicos muito distintos da Economia Brasileira desde os anos 30 do século passado até os primeiros anos da década de 20 do século XXI. Nos 49 anos entre 1932 e 1980, o PIB do Brasil cresceu 2312,45%; de sorte que a economia crescia a uma taxa média anual de 6,71%. Nos 43 anos entre 1981 e 2023 a economia cresceu meros 149,16%; com uma taxa média anual de 2,15%[1]. É bem verdade que a dinâmica desse segundo período não foi uniforme. No Quadro 1, abaixo, discriminamos as duas “estrujunturas” nas décadas que as compõem. É fácil perceber que a primeira década do século XXI foi aquela em que a economia brasileira apresentou a melhor performance nesse segundo período, com um crescimento médio anual de 3,68%. De outro lado, essa performance “extraordinária” correspondeu a pouco mais da metade da taxa média anual de crescimento de todo o período 32-90: 6,71% ao ano. Logo, há que se admitir que há mais do que “conjunturas” e “políticas econômicas governamentais”: há uma diferença estrutural entre os dois períodos
[1] O leitor atento terá percebido que a taxa de crescimento total e média entre 1981 e 2023 apresentadas acima diferem discretamente daquelas apresentadas no artigo anterior (161,57% e 2,21% aa ano). Na verdade, há outras diferenças, ainda que menos expressivas. Elas se devem a alguns ajustes introduzidos nessa versão. Em primeiro lugar, ao invés de compatibilizarmos nós mesmos as distintas séries temporais do IBGE, tentando torná-las encadeadas e comparáveis, optamos por tomar por referência as séries do IPEA, que já compatibilizaram os dados do IBGE, compondo uma série com início em1947. Para os anos anteriores, tomamos referência as informações do trabalho A Ordem do Progresso. O único ajuste que fizemos a estas duas fontes foi a introdução do ajuste proposto por Paulo Morceiro com vistas a extrair o sobredimensionamento da Indústria de Transformação nos anos 60 e 70 do século passado. Por fim, retiramos de nossos cálculos a avaliação (ainda preliminar) da variação do PIB em 2024, uniformizando o cálculo da performance média de todas as variáveis para o mesmo período de 43 anos (1981-2023).
Alguém poderia contra-argumentar que a diferença na performance da economia global e da indústria (total e de transformação) na segunda década do atual século (2011-2020) foi tão inferior à dinâmica da primeira década que não haveria como pretender englobar os dois períodos em uma mesma “estrujuntura”. Será mesmo? ...
Desde logo, é preciso reconhecer que este argumento tem alguma potência. Não gratuitamente, foi (e ainda é) utilizado pelos mais diversos economistas do campo desenvolvimentista que pretendem haver uma diferença radical nas gestões econômicas de Lula e Dilma. Vamos tratar dessa questão com toda a atenção que ela merece em nosso próximo artigo. Mas, agora, vamos começar pela dimensão mais simples: avaliar a performance da economia por “décadas” é melhor do que avaliá-la por períodos muito longos, de 50 ou 40 anos. Mas uma análise decenal também pode ser ilusória. Senão vejamos.
[1] O leitor atento terá percebido que a taxa de crescimento total e média entre 1981 e 2023 apresentadas acima diferem discretamente daquelas apresentadas no artigo anterior (161,57% e 2,21% aa ano). Na verdade, há outras diferenças, ainda que menos expressivas. Elas se devem a alguns ajustes introduzidos nessa versão. Em primeiro lugar, ao invés de compatibilizarmos nós mesmos as distintas séries temporais do IBGE, tentando torná-las encadeadas e comparáveis, optamos por tomar por referência as séries do IPEA, que já compatibilizaram os dados do IBGE, compondo uma série com início em1947. Para os anos anteriores, tomamos referência as informações do trabalho A Ordem do Progresso. O único ajuste que fizemos a estas duas fontes foi a introdução do ajuste proposto por Paulo Morceiro com vistas a extrair o sobredimensionamento da Indústria de Transformação nos anos 60 e 70 do século passado. Por fim, retiramos de nossos cálculos a avaliação (ainda preliminar) da variação do PIB em 2024, uniformizando o cálculo da performance média de todas as variáveis para o mesmo período de 43 anos (1981-2023).
Imaginemos que, ao invés de tomarmos a primeira década do século nos termos formalmente corretos (2001-2010), tomássemos por referência o período 2000-2009. E que, igualmente bem, tomássemos a segunda década como correspondendo ao período 2010-2019. Esse simples recuo de um ano em cada período determinaria uma grande depressão na performance média anual da economia brasileira na primeira das duas “décadas”, que passaria a ser de 2,94% a.a. e um crescimento da performance da “segunda década” que passaria a ser de 1,40% a.a. Por quê? Simplesmente porque a performance extraordinária do ano de 2010 (7,53% de crescimento) seria incorporado à “nova década de 10”. E a péssima performance do ano do Covid, em 2020 (-3,28%) seria retirada desse mesmo período. Em suma, o óbvio: AS MÉDIAS PODEM SER ENGANADORAS.
Sim, é verdade que ao imputarmos o crescimento de 2010 à performance da segunda década do século XXI estamos imputando a performance do último ano de Lula 2 à performance de um período marcado pelas gestões de Dilma, Temer e Bolsonaro. Para muitos, isso seria uma manipulação de dados intolerável, pois haveria uma distância abissal entre as gestões econômicas de Lula e dos três gestores posteriores. Eu mesmo discordo dessa avaliação. Do meu ponto de vista, a gestão econômica de Lula 2 já se encontrava sob a coordenação de Dilma (na Casa Civil) e Guido Mantega (na Fazenda). E Dilma 1 não é mais do que a continuação da política econômica de Lula 2. Mas não será preciso fincar pé nessa leitura para que nosso ponto de vista seja bem entendido. Basta tomar a performance da economia nos três primeiros anos de Dilma 1. O que vemos é um crescimento médio anual de 2,96%; uma taxa bastante próxima do desempenho da primeira década do século (a década de Lula: 3,68% a.a.) e superior ao desempenho dos anos 80 (1,57% a.a.) e dos anos 90 (2,61% a.a.). O que isso significa? Que a primeira gestão de Dilma – com Mantega na Fazenda – foi uma gestão pelo menos tão “desenvolvimentista” quanto a de Lula 1 e 2? Sim? Então é preciso explicar por que, mesmo durante a gestão “desenvolvimentista” de Dilma a economia brasileira cresceu menos da metade que crescia ao longo dos nossos “anos dourados” (6,71% a.a.). E AINDA MAIS IMPORTANTE: É PRECISO EXPLICAR POR QUE NO ÚLTIMO ANO DE SEU PRIMEIRO (E AINDA “DESENVOLVIMENTISTA”) MANDATO A ECONOMIA BRASILEIRA CRESCEU APENAS 0,5%. MUITO ABAIXO DA MÉDIA DA “ESTRUJUNTURA” 1981-2023.
Há uma outra alternativa de resposta. Podemos pretender que Dilma nunca foi desenvolvimentista, que seus “Programas de Aceleração do Crescimento” foram para “inglês ver” e que a Presidenta sempre adotou uma postura “neoliberal”. Quem sabe o próprio Lula em seus dois primeiros mandatos não teria sido neoliberal? Isto ajudaria a explicar a queda na performance na “segunda estrujuntura”: tudo foi fruto da maldade das pessoas humanas entreguistas fantasiadas de esquerda. E o PT é um partido do mal. Simples, né, gente?
Não são poucos os economistas mais críticos (e radicalmente desenvolvimentistas) que esgrimem estas teses absolutamente ensandecidas! E contam com um argumento fortíssimo: Lula e Dilma “entregaram” a gestão da política monetária e cambial a economistas de inflexão neoliberal: Francisco Meirelles e Alexandre Tombini. E o fizeram porque quiseram. Claro. Se quisessem entregar para qualquer economista heterodoxo seria fácil fazê-lo. Afinal, eles foram eleitos presidentes da República. E são os presidentes da República que escolhem quem serão os Presidentes do Banco Central. Isso é tão óbvio e elementar como 2 + 2 são 225. Ou pelo menos era óbvio nos tempos do saudoso Getúlio. Não é mais assim? Agora a indicação do Presidente da República precisa ser aprovada pelo Senado? E o sistema financeiro nacional ganhou uma musculatura que não tinha antes? Com apoio de setores produtivos (como o automotivo) e comerciais (como as lojas de departamento e as redes de supermercado) que também contam com sistemas de financiamento próprio e têm interesse na manutenção de taxas de juros elevadas? Mas não me conta esse pedaço que eu posso enfartar!
Sorry, mas quem está morrendo de enfarto é a economia do país e o povo brasileiro com a incapacidade de tantos economistas “políticos” desenvolvimentistas de entender o óbvio sobre o país enquanto vociferam lições de O QUE FAZER com a certeza de que são um misto de Getúlio Vargas e Vladimir Lênin redivivos. Um verdadeiro economista político precisa entender um mínimo de .... política. Vamos tentar outra vez?
O Estado Brasileiro pós-80
Afirmei acima que o Estado brasileiro que emerge da crise da Ditadura Militar é estruturalmente débil. Será mesmo? ... É hora de dialetizar esta afirmação. Desde logo é preciso resgatar o básico: o Estado NÃO é o Executivo. Nem é apenas os três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Onde fica, nessa divisão tripartite, o Ministério Público dos nada saudosos lava-jatistas Deltan Dalagnol e Rodrigo Janot? Onde fica o Tribunal de Contas que – sob a presidência de Augusto Nardes – recusou as contas da Presidenta Dilma do ano de 2014? Na classificação de Montesquieu, em sendo uma organização com a função de julgar, o Tribunal de Contas faz parte do Judiciário. Na classificação formal, orçamentária e política o Tribunal de Contas é um órgão do Legislativo. E, como tal, foi corresponsável pelo golpe do impeachment. Mas, na classificação prática, da vida política brasileira, sabemos bem, ele é mais um pedaço relativamente autônomo da geringonça.
E as Forças Armadas Brasileira, onde ficam? São meros braços do Executivo? Em caso afirmativo, foi o Exército e a Aeronáutica que deixaram de cumprir suas funções constitucionais ao NÃO se subordinarem ao Presidente Bolsonaro e acatarem seu projeto de golpe em 2022? Ou foi a Marinha que faltou com suas funções constitucionais ao apoiar o golpe urdido pelo Presidente em exercício?
E como fica o Judiciário? O STF sancionou os grampos ilegais de Moro (e a divulgação dos mesmos para a imprensa), usando-os como argumento para impedir a nomeação de Lula para a Casa Civil às vésperas do julgamento do impeachment de Dilma pelo Congresso. Essa foi uma decisão imparcial, digna da deusa Têmis? Ou foi uma decisão política, orientada pelos interesses do MDB de Temer e Eduardo Cunha e do PSDB de Fernando Henrique Cardoso e Aécio Neves? E, por outro lado, quando o Tribunal Superior Eleitoral julgou o ex-Presidente Bolsonaro e o condenou à inelegibilidade – recebendo a reprovação de amplo segmento da sociedade – nosso Judiciário foi digno de Têmis ou agiu orientado por princípios políticos antirrepublicanos? ... E seria correto dizer que o Estado Brasileiro está se tornando mais débil quando o STF ordena e impõe a prisão de um General de quatro estrelas, ex-Chefe da Casa Civil e ex-candidato à Vice-Presidência na chapa do então presidente Jair Bolsonaro? ....
E veja que as questões postas acima apenas tangenciam o tema extremamente complexo da evolução do “Estado” nacional. Pois ainda o estamos tomando em seu sentido formal, no sentido de Montesquieu, restrito ao que Althusser caracterizaria como o conjunto dos seus “aparelhos repressivos”. Se ingressarmos no plano de seus “aparelhos ideológicos” – escola, imprensa, meios de comunicação em geral (que, hoje, incluem as poderosas redes sociais) – a questão da expansão (ou depressão) do poder regulatório do Estado no Brasil a partir dos anos 80 torna-se ainda mais complexa.
Não obstante, creio que o exercício maiêutico encetado acima já nos permite uma conclusão. NÃO É POSSÍVEL AFIRMAR QUE O ESTADO BRASILEIRO, HOJE, SEJA MAIS DÉBIL DO QUE NO PERÍODO ANTERIOR À DÉCADA DE 80. Na verdade, no sentido de Weber, enquanto uma estrutura impessoal e essencialmente burocrática, o Estado Brasileiro, hoje, é mais forte do que jamais foi.
Não obstante (ou por isso mesmo!), ele é absolutamente distinto do que fora até a crise da ditadura. O ponto crucial é que O ESTADO BRASILEIRO ATUAL É FORTEMENTE PULVERIZADO. Não há mais um centro de poder. Ele não se encontra – como durante a ditadura militar – nas Forças Armadas. Ele não se encontra – como na República Velha – nas mãos da oligarquia terratenente (com hegemonia dos cafeicultores) e em seus conchavos no Congresso Federal. Ele não se encontra – como no Consulado Vargas – no Poder Executivo. O poder do Estado está disperso. E esta dispersão não é, nem gratuita, nem inconsequente. Senão vejamos.
Creio que não há muito o que discutir acerca do papel das Forças Armadas (em geral, e do Exército em particular) como centro do poder durante a Ditadura Militar. Evidentemente, não se trata de negar as conexões civis (vale dizer: burguesas!) da Ditadura e, por extensão, do papel das Forças Armadas como serviçais do capital. Trata-se tão somente de reconhecer que os embates e conflitos impositivos entre distintos segmentos da burguesia tinham sua “solução política” avaliada, negociada e sancionada pelos escalões superiores da Forças Armadas durante a Ditadura. Tampouco me parece passível de questionamento o caráter oligárquico da República Velha; vale dizer, o fato de que a gestão pública estava a serviço dos grandes proprietários, dentre os quais havia uma hierarquia definida primariamente pela rentabilidade de suas atividades rurais (daí a hegemonia do café) e, secundariamente, pela extensão das terras (e dos eleitores mobilizáveis) dos grandes coronéis. O ponto complexo a entender é a centralização do poder no Executivo durante o “Consulado Vargas”.
Vamos começar definindo esse período. Do nosso ponto de vista, ele vai de 1930 até 1964. Vale dizer: O CONSULADO VARGAS EXTRAPOLA A VIDA DE GETÚLIO EM DEZ ANOS. Como isso foi possível? Porque, como o próprio Vargas afirmou em sua Carta Testamento, com seu suicídio, ele saiu da vida para se perpetuar na História. E, como tudo na História, a “perpetuação” é relativa e tem efeitos distintos ao longo do tempo. O suicídio de Getúlio – como o assassinato de Júlio César – definiu os destinos do país por alguns (vários) anos. Mas seu impacto foi diminuindo com o passar do tempo. Getúlio esteve realmente “presente e atuante” na política nacional apenas nos primeiros dez anos após sua morte.
Precisamos, agora, tentar entender os fundamentos dessa extraordinária concentração de poder no Executivo nesse período. Mas vamos começar pelo oposto: dialeticamente, o centro do poder no vasto período do Consulado Vargas padece de uma fragilidade crônica. AFINAL, O QUE MARCA, ACIMA DE TUDO, O CONSULADO VARGAS, É O PERMANENTE ESTADO DE INSTABILIDADE POLÍTICA, COM O GOVERNO NO PODER SUBMETIDO A UMA FORMA DE ESTADO DE SÍTIO POR PARTE DAS FORÇAS ARMADAS E PELO CONGRESSO. Desde logo, Getúlio assume o governo nacional em 1930 a partir de um golpe que só se viabilizou por uma conjunção de fatores muito peculiar: 1) o golpe de Washington Luiz sobre Antônio Carlos (Governador de Minas Gerais e pretendente ao cargo de Presidente da República na lógica do “café-com-leite”: uma vez São Paulo; outra vez Minas Gerais); 2) a crise de 1929 nos EUA, com forte impacto sobre o complexo cafeeiro paulista, justamente no momento em que Washington Luiz havia decidido romper com o programa de valorização desta commodity; 3) a emergência do Partido Democrático Paulista, de base urbano-industrial em São Paulo (em oposição ao Partido Republicano, de base rural); 4) o assassinato de João Pessoa, na Paraíba, candidato a Vice-Presidente na chapa de Getúlio Vargas; 5) o apoio dos herdeiros do movimento tenentista dos anos 20 nas fileiras do Exército brasileiro. Já em 1932, Getúlio enfrenta a Revolução Constitucionalista. Vence a oposição com dificuldade, concedendo a principal exigência dos revoltosos: o chamamento de uma Constituinte. A nova Constituição é votada em 1934 e a eleição presidencial é realizada, nesse ano, de forma indireta: o opositor de Getúlio vem a ser o seu mentor político: Borges de Medeiros, ungido por paulistas, mineiros e parcela expressiva de gaúchos. Em 1935, Getúlio enfrenta a Intentona. .... E isto é só o início da longa história de tentativas de golpe: de 1930 a 1964 poucos são os anos em que não há algum movimento com vistas a destituir o Presidente em exercício. O período menos tumultuado foram os anos Dutra. E não será gratuito. Apesar de ter sido apoiado por Vargas (na última hora), Dutra participou do golpe contra Getúlio em 1945 e era sujeito de confiança dos liberais de Gudin. Em todos os governos subsequentes – Vargas, Juscelino e Jango (Jânio se auto-golpeou-se a si próprio!) a crise era permanente.
Em suma: o “Consulado Vargas” NÃO FOI, DEFINITIVAMENTE, UM PERÍODO DE TRANQUILIDADE E EQUILÍBRIO. Não, obstante, foi um período de Executivo extraordinariamente Forte. Um Executivo que – como vimos antes – controlava o sistema financeiro (via Banco do Brasil), as políticas de crédito (com políticas setoriais preferenciais), as DIVERSAS taxas de câmbio (definindo, assim, a exposição competitiva de cada setor produtivo), os preços dos insumos produtivos fundamentais (energia elétrica, derivados de petróleo, insumos agropecuários, etc.), a taxa de salário mínimo, as tarifas de importação, os impostos impostos (com o perdão da cacofonia) aos mais diversos setores. Em suma: o Executivo definia todos os preços básicos da economia e, por extensão, a rentabilidade relativa de cada um dos setores produtivos.
Na verdade, as recorrentes tentativas de golpe com vistas a afastar Vargas, Juscelino e Jango do poder advinham EXATAMENTE do poder extraordinário concentrado no Executivo. CONTROLAR O EXECUTIVO, NAQUELE PERÍODO, ERA CONTROLAR O ESTADO. Por quê?
São inúmeras as determinações desse extraordinário – e, a princípio, irrecuperável! – poder do Executivo durante o Consulado Vargas. Mas algumas são mais importante do que outras e precisamos anunciá-las. Em primeiro lugar, este período tem início com uma CRISE SIMULTÂNEA do núcleo da burguesia nacional – o complexo cafeeiro – e das duas principais economias capitalistas e imperialistas do mundo: os EUA e o Reino-Unido. E esta crise se prolonga, na medida em que a superação de suas determinações iniciais – de ordem estritamente econômicas – se fazem acompanhar da emergência de determinações política e bélicas – que redundarão na Segunda Guerra Mundial. O término da Segunda Guerra corresponde – não gratuitamente – à queda de Getúlio e a ascensão de Dutra. Mas o fim da Segunda Guerra levará à emergência de uma nova polarização entre ocidente capitalista e oriente comunista. Na verdade, no imediato pós-Segunda Guerra essa distinção espacial sequer era muito clara: toda a resistência da Europa Ocidental ao nazismo foi capitaneada pela esquerda; e o esforço para excluir os Partidos Comunistas Francês, Italiano e Grego dos governos de reconstrução nacional foi muito árduo. Igualmente bem, o empenho para impedir que os socialistas tomassem o poder no Japão e em toda a Coreia foi enorme e custoso. E o apoio a Chiang Kai-Shek acabou por se mostrar infrutífero. Naquilo que nos importa: OS EUA NÃO TINHA OLHOS, TEMPO E RECURSOS PARA NÓS. A expressão maior dessa falta de olhos, tempo e recursos foi a criação da CEPAL. O que se faz quando não se sabe o que fazer? Cria-se uma Comissão para estudar o que, talvez, vir a fazer um dia.
Como se isso não bastasse, a nova ordem mundial que foi se criando não abria um espaço simples e imediato para a inserção do Brasil a partir de suas “vantagens competitivas naturais”. Os EUA eram (e são) grandes produtores agrícolas. Importavam café e algum cacau. E basta. Nossas tentativas de recuperar a produção açucareira e algodoeira não encontravam uma demanda externa sólida nos EUA, eles mesmos produtores de algodão, de milho (e seu melado) e de alguma cana. A Europa em reconstrução logo tomou por princípio a segurança alimentar. E os países situados para além da cortina de ferro encontravam-se fora de nossa alçada diplomática. Ou, antes: só eram visados como meios de negociação (em geral, pouco produtivas) com Tio Sam. O que importa é que OS MERCADOS EXTERNOS PARA A PRODUÇÃO AGRÍCOLA NACIONAL ERAM LIMITADOS. Mas o Brasil era um país agrícola e agrário. Como resolver a equação?
Que tal “pelo mercado interno”? Um país cuja “vantagem comparativa evidente” (nesse ponto, os liberais tinham TODA a razão!) era a agricultura, mas que não tem horizonte para expansão da produção agrícola, pois não encontra mercado para a mesma, precisa encontrar outra saída para “canalizar o excedente” (ou, se se quiser, a “mais-valia”). Lembremo-nos do início desse texto: o que faz o economista? Indica quais são os setores mais promissores de investimento. Bem, nessa quadra da nossa história era bem mais fácil ser economista. Bastava pensar assim: o mundo não quer (mais de) aquilo que podemos exportar (café, açúcar, algodão, milho, etc.). Como exportamos pouco, recebemos poucas divisas (leia-se, após 1945: dólar). Se temos poucos dólares, não podemos importar tudo o que queremos. Logo, teremos que produzir internamente.
O que vamos ter que produzir? Móveis, tecidos, roupas, louças, panelas, baldes, utensílios domésticos, enxadas, arados? Mas esses bens são produzidos de forma mais adequada e barata em condições industriais, não é mesmo? Isso envolve urbanização, não é mesmo? De sorte que vai emergir uma população urbana que irá demandar arroz, feijão, carne de sol, charque, açúcar, rapadura, pinga, vinho, suco de uva, chuchu, camarão e etc. e tal? Não é mesmo?
Amigo é coisa prá se guardar (Parte 2)
Enviei o texto acima para a avaliação de um amigo. E obtive um retorno “supimpa”. O que ele entendeu, expressou em uma pergunta.
Tu estás querendo dizer que, durante o Consulado Vargas, o apoio à industrialização interna era do interesse dos setores marginais (não exportadores) da agricultura nacional? Tu queres dizer que, com exceção dos cafeicultores, os demais proprietários agrícolas só teriam condições de ampliar o mercado (e a rentabilidade) para sua produção se o mercado interno se expandisse? E que a condição disso era a expansão da produção industrial?
Definitivamente, amigo é coisa prá se guardar. Conversamos longamente sobre sua leitura. E prometi cumprir com suas demandas no próximo texto. Lá explicarei algumas obviedades tão pouco percebidas pelos nossos desenvolvimentistas contemporâneos, que acreditam que tudo é uma questão de vontade política. Como, por exemplo, que, nos dias que correm, os interesses dos proprietários de terra na Metade Sul do Rio Grande Amado convergem com os interesses dos proprietários de terra do quadrângulo do MATOPIBA (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) e estes interesses se expressam numa palavra de ordem simples: TODO O APOIO AO AGRONEGÓCIO DE EXPORTAÇÃO; O MERCADO EXTERNO É TUDIBÃO, O MERCADO INTERNO É PAPO DE COMUNISTA.
E, além de tudo, meu querido amigo é um baita piadista. E conclui seus comentários dizendo.
Acho que a perda (gradual, lenta, mas seguríssima) de hegemonia por parte dos EUA e a ascensão da China (grande demandante de soja e demais commodities agrícolas e minerais) tem algo a ver com a perda de poder do Executivo no interior do Estado Brasileiro, certo Paiva? Acho que estou começando a entender as coisas. E é bom entender dessas relações entre política e economia. Se não fosse pela tua ajuda eu seria capaz de sair por aí dizendo a Dilma e o Lula só não adotaram políticas de taxas de câmbio múltipla e políticas monetárias e financeiras mais heterodoxas porque eram entreguistas e arregoes. Veja só como o mundo é complicado, né mesmo?
TO BE CONTINUED.
Leia A problemática estrujuntura brasileira (parte I).
*Carlos Águedo Paiva é Economista, Doutor em Economia e Diretor da Paradoxo Consultoria Econômica.
Ilustração de capa: IA
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