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Estatuto da Pessoa Idosa faz 20 anos e demanda revisão

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Estatuto da Pessoa Idosa faz 20 anos e demanda revisão
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Para pesquisadora, obrigações do Estado precisam ser reforçadas Da vida de jovem à terceira idade, foi como um instante. Na adolescência, a mineira Maria de Fátima Lopes sonhava ser professora, mas o pai proibiu. Ele disse à filha que, como mais velha, deveria largar a escola no ensino fundamental para ajudar a cuidar dos seus oito irmãos. Aos 21, pensou em voltar à escola. Dessa vez, a proibição veio do marido. Afinal, para ele, mulher tinha como primeiro dever ficar com os filhos. O primeiro trabalho foi aos 28 como doméstica. Ela nunca mais voltou à escola, a não ser para retirar o lixo dos outros, lavar o chão, limpar a lousa e a parede. Aos 60 anos de idade, a nova idosa, mulher negra, que se mudou para o Paranoá, uma região periférica do Distrito Federal, ainda tem sonhos. “Fico triste quando me chamam de velha”. Aos finais de semana – os raros dias em que não está trabalhando como auxiliar de limpeza para uma empresa em Brasília –, precisa cuidar dos netos. Durante a semana, ela vive sozinha em casa depois que volta da lida, trabalhando das 6h às 15h. “Tem hora que bate a solidão. Me arrependo em não ter cuidado um pouco mais de mim”. Aliás, cuidados e direitos são palavras que se repetem no texto do Estatuto da Pessoa Idosa, documento que completa, neste domingo (1º), 20 anos. Quando foi aprovado, a população idosa no Brasil era de aproximadamente 15 milhões. Duas décadas depois, são mais de 33 milhões de pessoas. Os desafios com pessoas em vulnerabilidade ainda são do tamanho de um país diverso como o Brasil, conforme explica a pesquisadora Ana Amélia Camarano, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). “A própria Constituição (1988) fala que os pais têm que cuidar dos filhos e os filhos devem cuidar dos pais. Mas, na verdade, o que se tem é que as mulheres são as principais cuidadoras. Mas, depois, não tem quem cuide delas”, afirma. Essa relação de gênero abrange disparidades e características próprias que expõem machismo e racismo na sociedade. “As mulheres, por exemplo, vivem mais do que os homens. Mas elas passam por um tempo maior de fragilidades físicas, mentais, cognitivas. As mulheres negras estão entre as mais vulneráveis dentro do grupo de idosos”, explica. Mesmo sendo muito importante como conquista, a pesquisadora defende uma revisão do estatuto em função das profundas mudanças da sociedade brasileira. Uma crítica que ela faz refere-se ao documento considerar a população idosa homogênea. “Diferenças por raça, gênero e classes sociais deveriam ser abordadas no estatuto”. Outra ponderação feita é que o documento atribui responsabilização criminal para famílias que não cuidam dos idosos, mas que não há a mesma eficácia para o papel do Estado. Uma década a mais Para exemplificar a diversidade de realidades, a pesquisadora Ana Amélia Camarano adiantou à Agência Brasil dados de uma pesquisa que ela está concluindo para compor o Atlas da Violência, a ser divulgado neste mês de outubro. “Com base nos dados de 2021, idosos não negros morrem 6,4 anos mais tarde do que os negros. Agora, se você considera uma mulher não negra, o homem negro vive 10,9 anos a menos. O Estatuto fala que os idosos têm direito à vida, mas o alcance a esse direito é diferenciado”. Ela acrescenta que a mulher negra morre 4,9 anos mais cedo do que a não negra. Além da população negra, a pesquisadora enfatiza que outros grupos vulnerabilizados precisam ser especialmente protegidos pelo Estado, como é o caso de idosos da comunidade LBGT. “As pessoas trans, por exemplo, precisam ser assistidas. Existe ainda muito preconceito e elas também vão precisar de cuidados. São populações marginalizadas a vida inteira que sofrem violências ao longo da vida”. Menos oportunidades O secretário da Pessoa Idosa, Alexandre Silva, concorda que o desafio do Estado está relacionado principalmente ao atendimento dos direitos dos mais vulneráveis. Ele sublinha que esse segmento é o grupo social que mais cresce em nosso país e que mais crescerá nos próximos anos. “O desafio maior é garantir que todos os grupos sociais, incluindo pessoas pretas, pardas, LGBTQIA+, ribeirinhas, quilombolas, ciganas, privadas de liberdade possam ter os mesmos direitos para envelhecer”. Para ele, o estatuto foi fundamental para garantir as políticas públicas vigentes e os programas de assistência aos idosos. “Falar da pessoa idosa, sem dúvida, é entender que há papéis que cabem aos governos federal, estadual e municipal, à comunidade e à família para atender melhor essa pessoa”. Silva entende que alguns grupos mais vulneráveis têm menos oportunidades de envelhecer com dignidade. A negação ao envelhecer, inclusive, começa muito antes, até na infância. O secretário também entende que deve ser considerada a possibilidade de uma revisão do Estatuto da Pessoa Idosa. “A gente tem, por exemplo, uma situação bem real do aumento da violência patrimonial e financeira, aumento da longevidade, desafios do campo profissional e necessidade de inclusão digital próprios de nossa época”, afirma Alexandre Silva. “É preciso avançar” Autor da lei aprovada em 2003, o senador Paulo Paim (PT-RS), admitiu, em entrevista à Agência Brasil, que é possível haver revisões do estatuto, mas ele crê que os parlamentares têm demonstrado atenção com as atualizações do documento. “Algumas questões foram aprimoradas e hoje entendo que está atualizado. Mas sempre digo que não tem política perfeita. Toda a ideia que venha para proteger o idoso é muito importante”. Ele cita a necessidade de valorização do salário mínimo, considerando que se trata de uma massa populacional que, em sua maioria, ganha no máximo dois salários. “É preciso avançar na defesa do estatuto e de todos os direitos que estão ali assegurados. O Brasil teve um aumento de 97% nos registros de violações dos direitos humanos contra a pessoa idosa no primeiro trimestre de 2023”. No entender do senador, isso ocorre pela maior possibilidade de realização de denúncias via ministérios públicos e o serviço do Disque 100. Para contextualizar, o parlamentar de 73 anos explicou que o Japão é um exemplo em que os direitos dos idosos são tratados intensamente com as crianças na escola. “A política de combate a todo tipo de preconceito em relação ao idoso e de violência tem que ser aprimorada. Eu diria que o estatuto trouxe luz a essa parcela da população que estava esquecida”. Matéria da Agência Brasil Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

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Conselhos Tutelares: eleição sob suspeita

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Conselhos Tutelares: eleição sob suspeita
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De MARCELO AULER* Marcadas para esse domingo (01/10) a eleição para escolha de 30,5 mil conselheiros tutelares em todos os municípios brasileiros já se encontrava sob suspeita antes mesmo da abertura das urnas eletrônicas, previstas para funcionarem entre 08h00 e 17h00. Graças a um acordo feito entre o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pela primeira vez esse pleito contará em todas as seções com o voto eletrônico. Apesar de nas últimas semanas ter crescido a mobilização de setores progressistas e democratas pelas redes sociais para atrair mais eleitores às urnas, a escolha dos novos membros dos mais de 6.100 Conselhos Tutelares ainda sofrerá influência do chamado “poder religioso”, isto é, das igrejas fundamentalistas. O mesmo que há quatro anos fez com que mais de 50% dos conselheiros eleitos em diversos pontos do país apresentassem perfil religioso. Em São Paulo, nada menos do que 53% dos conselheiros tutelares eleitos em outubro de 2019 (primeiro ano do governo Bolsonaro) eram ligados a denominações neopentecostais, segundo dados do próprio Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente da capital paulistana. No Rio não houve estatística oficial, mas levantamento feito por conselheiros eleitos a pedido do jornal El País indicou um percentual ainda maior: 65% dos eleitos estavam ligados às igrejas fundamentalistas. Campanha nas igrejas [caption id="attachment_11438" align="aligncenter" width="768"] Reprodução[/caption] Nesse domingo, a mobilização de setores progressistas pode minorar o problema, mas a influência deve se repetir. Em setembro a Igreja Universal do Reino de Deus já mobilizava seus fiéis nos cultos e por meio do jornal distribuído gratuitamente (veja foto). Prática que se repetiu em igrejas evangélicas de outras denominações como denunciou ao Ministério Público de Goiás, nesse sábado (30/09), véspera do pleito, o deputado federal Tarcisio Motta (PSOL-RJ), tal como postou no Instagram. Ele mostrou o deputado bolsonarista Gustavo Gayer (PL-GO) em campanha no culto religioso, algo ilegal: “Apresentamos uma denúncia no Ministério Público de Goiás pedindo a impugnação de candidatos a conselheiros tutelares que foram a um culto religioso fazer suas campanhas, junto ao deputado federal Gustavo Gayer. É ilegal e imoral fazer uso abusivo da fé para conquistar votos, conduta vedada como abuso de poder religioso por resoluções do Conselho da Criança e do Adolescente e também pela Lei das Eleições". É algo que está longe de ser fato isolado. Nos comentários da postagem do parlamentar, “pedrosouza”, um dos seguidores registrou: “Aqui na Zona Oeste do Rio tá pior, estão cercando as pessoas na frente das igrejas e clínicas da família”. O risco da interferência por abuso do poder religioso foi exposto por ofício encaminhado à Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do Rio de Janeiro (PRDC-RJ) pelos advogados Carlos Nicodemos e Maria Fernanda Fernandes Cunha. Em nome do Movimento Nacional de Direitos Humanos – MNDH, representado por sua organização afiliada, a Associação de Ex-Conselheiros e Conselheiros da Infância – AECCI, eles recorreram ao Ministério Público Federal (MPF) justamente por o problema se espalhar por todo o território nacional. Em busca de pautas conservadoras [caption id="attachment_11439" align="aligncenter" width="531"] Reprodução[/caption] Advertiram que “pesquisas e matérias jornalísticas recentes abordam a estratégia político-religiosa de grandes entidades religiosas – como a Igreja Universal – em influenciar os seus seguidores a participarem das eleições do conselho tutelar e de votarem em determinados candidatos que irão propagar os seus ideais religiosos em sua atuação como conselheiro tutelar”. Advertiram ainda que esse envolvimento possa ser compreendido como forma dessas igrejas manterem o poder dominador sobre grupos de conselheiros, em busca de pautas conservadoras que envolvam as crianças e adolescentes. Citam o que ocorreu em 2019, quando uma pesquisa feita pelo Face book identificou a candidatura de dezenas de pastores evangélicos em todo o país (veja ilustração). No documento, solicitaram urgência na apreciação da Representação, reforçando a necessidade de ser “expedida imediata recomendação para que o CONANDA e o TSE apliquem (durante o pleito) mecanismo de controle de forma a colherem provas que possam apontar eventual comprometimento da livre escolha da sociedade”. A Representação, por ordem do procurador da República Júlio José Araújo Júnior, responsável pela PRDC-RJ, foi protocolada como “Notícia de Fato”. Isso permite prever a instauração de um inquérito civil para investigar possíveis pressões religiosas sobre os eleitores. Em se tratando de Ministério Publico Federal, a investigação não se resumirá apenas ao Rio de Janeiro. “A partir daí, vamos trabalhar para ver com que DNA institucional ficarão os Conselhos Tutelares”, promete Nicodemos. Ele deixa claro, portanto, que correrão atrás de provas que confirmem o abuso do poder religioso dessas igrejas pentecostais para, em seguida, contestarem as possíveis eleições de seus fiéis. Pouco caso do CONDANA O procurador, ainda na sexta-feira, oficiou a Cláudio Augusto Vieira da Silva, Secretário Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC). Como tal, ele presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, órgão ao qual estão subordinados dos Conselhos Tutelares em todo o país. Júlio José pediu, no prazo de 24 horas, uma resposta com as providências adotadas já com vista às eleições desse domingo. O ofício, porém, não sensibilizou o secretário Vieira da Silva que sequer se preocupou em respondê-lo pessoalmente. Delegou a tarefa a Laurenice Alves de Castro, Secretario Executivo do CONANDA. Uma resposta que soou ao procurador como meramente protocolar, sem citar qualquer providência. Castro praticamente exime o CONANDA de responsabilidades. Alegou que as eleições são coordenadas pelos Conselhos Municipais. De forma jocosa, tentou jogar no colo do procurador uma tarefa que legalmente não lhe cabe: fiscalizar o pleito. Não bastasse, cobrou que ele saísse de seu gabinete para percorrer locais de votações, ao sugerir: “Ressaltamos que o Ministério Público, órgão incumbido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente da fiscalização do processo de escolha dos membros do Conselho Tutelar (art. 139, caput, ECA), também deve se fazer presente no dia da votação, exigindo de seus membros uma conduta ativa, e não apenas aguardar, em gabinete, eventual acionamento pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente – CMDCA, observadas a realidade local e a independência funcional de cada membro”. Faltou mobilização Foi uma vã tentativa de repassar responsabilidades. Na realidade, como define o ECA, a fiscalização do processo eleitoral conduzido pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente é do Ministério Público Estadual. Como procurador da República, Araújo Júnior pertence ao Ministério Público Federal. Na realidade, a menos de 48 horas do inicio da eleição pouca coisa poderia ser feita pelo CONANDA ou mesmo pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, comandado por Silvio Almeida. Mas isso não os exime de responsabilidade nesse pleito. Ainda que o ministro tenha, através de redes sociais, feito alguns vídeos conclamando a população a exercer esse seu dever/direito cívico, não houve nenhuma grande campanha do governo Lula para uma maior participação popular. Algo que poderia iniciar uma efetiva mobilização cívica, a se estender na defesa de outras bandeiras populares. Não foi só o governo que falhou. Com exceção de algumas poucas organizações sociais envolvidas na defesa dos direitos das crianças e adolescentes, na sua maioria, a sociedade civil – incluindo sindicatos e associações profissionais – tem passado ao largo da eleição dos Conselhos Tutelares. Da mesma forma que a chamada mídia tradicional, que praticamente nada fez para atrair o interesse do público pela votação desse domingo. O esforço por uma maior participação ocorreu via redes sociais e algumas poucas mídias chamadas alternativas, como o Brasil 247 que promoveu diversos debates sobre o tema. Uma maior mobilização ajudaria também na fiscalização da tradicional interferência religiosa nesse processo eleitoral. Algo que ainda pode ocorrer. Afinal, a partir da Representação dos advogados Nicodemos e Maria Fernanda, certamente a escolha dos conselheiros tutelares que assumirão seus postos no dia 10 de janeiro não se encerrará quando fecharem as urnas eletrônicas no final da tarde desse domingo. Como prometeu Nicodemos, de acordo com o DNA dos novos conselhos, muitos debates e até impugnações poderão acontecer. Ou seja, antes mesmo de iniciada, essa eleição já estava sob suspeita. *Repórter. Publicado originalmente no blog do autor. Imagem destacada: reprodução. Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para [email protected] . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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De como os chefes militares, em 11/11/22, vitaminaram o 8 de Janeiro

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De como os chefes militares, em 11/11/22, vitaminaram o 8 de Janeiro
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De LENIO LUIZ STRECK* Vamos lidar com dados objetivos. Fatos. Desde 2020 venho denunciando as hermenêuticas criminosas acerca do artigo 142 da Constituição. E alertei para o perigo de muita gente acreditar que as Forças Armadas eram o poder moderador. Publiquei na Folha, Zero Hora, O Globo apontando para esse risco. Não tenho dúvida de que a crença nessa torta leitura do artigo 142 incentivou a tentativa de putsch de 8 de janeiro. Mas teve mais. Em 11 de novembro de 2022, no auge dos acampamentos à frente dos quartéis e ao histerismo de radialistas espalhados pelo Brasil pregando que os militares assumissem o poder, os comandantes militares publicaram uma nota, espécie de "manifesto" interpretando (na verdade, distorcendo) a Lei de Defesa do Estado Democrático. Escrevi de imediato aqui na ConJur (ler aqui) que os comandantes estavam absolutamente equivocados — a palavra "equivocados" é generosidade. Porque a questão foi — e é — muito mais grave. Pois fatos posteriores deram uma tinta mais forte ao episódio de 11/11/2022. Por exemplo, a reunião no mesmo mês delatada pelo tenente-coronel Mauro Cid, dando conta de que o golpe foi, mesmo, discutido entre Bolsonaro e os três comandantes. Disse eu, em 16/11/2022, que os militares fizeram uma leitura seletiva da nova Lei 14.197/2021, que diz que "não constitui crime [...] a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais, por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais". Pela hermenêutica verde-oliva, eles, os militares, eram os defensores dos manifestantes que faziam manifestações pacíficas (sic). Diziam, no manifesto, que os protegeriam, desde que não fizessem arruaça. O que seria isto — "arruaça"? Qual é a parte que ficou de fora da hermenêutica curupira? Simples. O dispositivo da nova lei não foi feito para servir de haraquiri. Por isso foi posto, no final do artigo — eu ajudei a elaborar —, que as manifestações pacíficas seriam toleradas sempre que fossem com "propósitos sociais". Ora, não consta a ninguém — que seja minimamente racional — que movimentos que clamem pelo fim da democracia, com a intervenção dos militares, sejam considerados com "propósitos sociais". E não consta, em nenhuma hermenêutica, que "manifestação crítica aos poderes" possa significar "acabar com esses Poderes". Ora, essas movimentações pretendem sabotar a democracia. E vamos parar de brincar de democracia. A e(c)lipse verde-oliva Mas havia ainda uma outra coisa, digamos assim, "elipsada" (algo que fica escondido na linguagem) na nota. Qual é? Simples. A nota abria a porta para que o Congresso fosse para cima do Supremo. Esse é o busílis. O não dito. O silêncio eloquente. O "elipsamento". Ou e(c)lipsamento. Leiamos essa parte da nota: "Como forma essencial para o restabelecimento e a manutenção da paz social, cabe às autoridades da República, instituídas pelo Povo, o exercício do poder que 'Dele' emana, a imediata atenção a todas as demandas legais e legítimas da população, bem como a estrita observância das atribuições e dos limites de suas competências, nos termos da Constituição Federal e da legislação." O "Dele" é bem significativo. A nota faz um apelo ao Legislativo, o que de novo pode ser lido como um pedido para impedir as seguidas interferências — na concepção dos militares — do Judiciário em outros Poderes: "Da mesma forma, reiteramos a crença na importância da independência dos Poderes, em particular do Legislativo, Casa do Povo, destinatário natural dos anseios e pleitos da população, em nome da qual legisla e atua, sempre na busca de corrigir possíveis arbitrariedades ou descaminhos autocráticos que possam colocar em risco o bem maior de nossa sociedade, qual seja, a sua Liberdade." Portanto, há dois aspectos a serem ressaltados: o primeiro diz respeito à torta hermenêutica que os militares fizeram da Lei de Defesa do Estado Democrático, equiparando manifestações (golpistas) que pedem intervenção deles — militares — a "manifestações democráticas". Ora, não é disso que trata a lei. O segundo aspecto que exsurge da nota foi um "recado" (elíptico) ao Legislativo e reforçou, como efeito colateral, manifestações contra o TSE e STF, o que se pode ver inclusive nos eventos de Nova York e a cotidiana catilinária contra os ministros da Suprema Corte. Rádios e TVs Brasil afora estavam em campanha, por assim dizer. Esperava-se o firme posicionamento da Procuradoria Geral da República. Aliás, do MP como um todo. Afinal, na Constituição consta, com todas as letras, que o Ministério Público é o guardião e fiscal do regime democrático. E não consta que regime democrático seja algo que conviva com a sua antítese: o golpismo contra a democracia. Mas o MP nada fez. Quando os militares se transformam em "deuses intérpretes" da Constituição, há que se perguntar onde foi que erramos. Fracassamos mesmo? Em uma democracia, quem tem armas não decide e quem decide não tem armas. Caso contrário, se quem tem armas decidir, já não há nem mais quem decida. Esse meu alerta — acompanhado também do que disse o coronel da reserva Marcelo Pimentel (que chegou a ser punido por isso) — não provocou maiores reações. Nem, é claro, do Ministério Público. A coroação do cinismo veio com o inquérito feito pelo Exército encerrado em março de 2023, redundando na seguinte manchete da Folha de S.Paulo: "Inquérito militar livra tropas e aponta erro do governo Lula no ataque de 8/1" (ler aqui). A culpa foi da vítima — o novo governo. O que diz disso o ministro da Defesa? Sigo. Neste momento, com a delação do Cid, tudo fica mais claro. O manifesto foi, na verdade, um sinal para os golpistas. Foram incentivados. O inquérito confirma a tese inicial dos militares. Os comandantes devem ser chamados às barras da justiça. Bom um deles, segundo Cid, até aderiu ao golpe. Os demais, ao não denunciarem, prevaricaram. Simples assim. A inversão do sentido do parágrafo único que tratava da não criminalização de manifestações de cunho social beira deu gás para os golpistas. Vejo, agora, que o jornalista Cezar Feitosa, da Folha, escreveu dez meses depois e também descobriu o problema da nota (manifesto) dos comandantes. Que bom. Alvíssaras! Talvez pudesse ter dado um google e verificado que, no calor dos acontecimentos, algumas pessoas, como este escriba, já haviam "sacado" o busílis da coisa. Enfim, esperamos que os alertas feitos, somados agora com a reportagem do jornalista Cezar Feitosa, sirvam para mexer com esse fenômeno que ficou eclipsado. E que agora exsurge à luz dos novos fatos. O manifesto de 11 de novembro. Ali havia muito mais do que parecia. Poucos viram. Como dizia a mãe do meu querido amigo Vicente de Paulo Barreto, nem tudo que parece, é. Mas se é, parece. Sábia senhora. Post scriptum 1: Projeto Voz Humana — Para que que possamos dizer "Nunca Mais" Fernando Fernandes capitaneia o projeto Voz Humana, que pode ser visto no link anexado. Vem a calhar com o que escrevi acima. Excelente projeto. Merece ser visto e incentivado. Para que aprendamos. E possamos dizer "nunca mais". Cumprimentos Fernando e ao Instituto IDD8, sob a presidência do Florestam Fernandes Jr. Este escriba ocupa a vice-presidência. Post scriptum 2: O "fator puf" — e os bolinhos de chuva, vai um aí? Leio que a PGR fará curso de democracia para os golpistas de 8 de janeiro. Bingo. Que meigo. Fofo. Sugiro que todos sentem em um puf confortável para não machucar as espaldas. Os ministrantes ganharão bom cachê. Fico imaginando o conteúdo: caros golpistas: democracia quer dizer demo-cracia. Repitam comigo: demo – povo; cracia – força. "- Apresento-vos a Constituição..." E os golpistas sairão renovados. Novos democratas. Haverá rezas, ao que fiquei sabendo. Todos se darão as mãos. Esse Brasil... *Jurista, professor, doutor em direito e advogado. Publicado originalmente em ConJur. Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para [email protected] . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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ELIS & TOM : Feitio de Oração

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ELIS & TOM : Feitio de Oração
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De PAULO TIMM* “Elis & Tom” é um disco lançado em 1974 por Antonio Carlos Jobim e Elis Regina, pela gravadora Polygram, entre 22 de fevereiro e 9 de março daquele ano, no MGM Studios, de Los Angeles, EU. Tom já morava nos Estados Unidos e fazia um sucesso extraordinário, embora um pouco deslocado das paradas musicais no Brasil, depois do sucesso da Bossa Nova na década anterior. Em vários sentidos, 1974, que elegeria 18 senadores da Oposição, como resposta à primeira crise do petróleo no anto anterior e que elevou o preço do barril de US$ 2,5 para US $ 13, assustando a classe média autocentrada, anunciava um Brasil que começava a viver uma transição. Foram ficando para trás os “Anos de Chumbo”, abrindo-se, com a posse do General Geisel, um novo ciclo que culminará na Constituição de 1988. Elis já era uma cantora consagrada, de grande estilo, sem carreira internacional e mergulhada numa fase difícil no meio artístico, depois que aceitou marcar presença numa Olimpíada Militar. Oriunda do Rio Grande do Sul ela havia frequentado, no Auditório da Rádio Farroupilha. o “Clube do Guri”. (Fui testemunha, mas me penitencio de não guardá-la na memória; fascinado por rádio, eu frequentava os programas de auditório das rádios Farroupilha, Itaí e Gaúcha nas manhãs de domingo). Tom e Elis já se conheciam mas não se cultivavam. Tom, marcado pelo economicismo da Bossa Nova, não combinava muito bem com o estilo performático de Lis. Diziam as más línguas que ele achava a gauchinha apimentada ainda com cheiro de churrasco... Adveio, porém, a ideia do empresário dela de juntá-la ao Maestro para um novo disco, um relançamento. Elis, aliás, chegou a ser testada como sucessora de Celi Campelo, nossa primeira roqueira, mas não deu certo. Do encontro, enfim, de Tom e Elis, resultou o álbum excepcional, de grande alcance e destinado a se converter numa relíquia da música popular brasileira. Uma peça musical de qualidade inquestionável, fadado à imortalidade, mais além da Bossa Nova, ecoando até hoje como uma prece num momento em que o mundo se despedia do sonho da década anterior e se iniciava numa era de espetáculos estrondosos. Um verdadeiro “Feitio de Oração”... -“O sonho acabou”, sentenciou John Lennon, em 1970. Seria assassinado dez anos depois. Em 1973 o pérfido General Pinochet comanda o mais cruel golpe na castigada América Latina e soterra a experiência pioneira de Salvador Allende, no Chile, de construir o socialismo com Paz e Amor. Mas na América! América!, um novo estilo de vida emergia na Califórnia, nas pegadas de Woodstock, onde eles se encontram. Um encontro com obstáculos, mas de gênios fadados a se concertaram na procura da perfeição de tons, subtons e arranjos geniais. Saiu o álbum. Sucesso absoluto em vários países. O Brasil no mundo. Mas ninguém sabia, até pouco tempo, que tudo isso fora filmado, com imagens também memoráveis. Agora, as filmagens se convertem no magnifico filme, dirigido por Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay, com o mesmo nome do álbum para o deleite, tanto dos mais velhos que vivenciaram aquela épica, como dos jovens atuais e futuros que poderão conhecer de perto estes dois personagens históricos da nossa música. “ELIS E TOM, SÓ TINHA DE SER COM VOCÊ O filme mostra os bastidores e todos os dramas e tensões que cercaram as gravações a ponto de o projeto quase ser interrompido. No fim, no entanto, a força da música se sobrepõe e conduz Elis Regina, Tom Jobim e um grupo de jovens músicos talentosos a uma obra-prima. Na produção, o espectador é levado numa viagem no tempo, participando de momentos de conflito e também de pura alegria, revelando momentos íntimos do processo criativo e das personalidades extraordinárias desses artistas. A obra é também um emocionante reencontro do diretor com os artistas e o material filmado há quase cinco décadas.” Assisti ao filme, no Centro Cultural Mario Quintana, em Porto Alegre, e entre suspiros e furtivas lágrimas revivi um tempo em que, no vigor dos 30 anos iniciava minha vida profissional em Brasília, cheio de ilusões e amores. Recomendo. Não percam. Oportunidade única para se voltar a sonhar... *Economista. Imagem: Divulgação do filme. Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para [email protected] . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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