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Taxadd? – sobre críticas descabidas a Haddad

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Taxadd? – sobre críticas descabidas a Haddad
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Por PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.* Acordei hoje com vontade de defender o ministro Haddad. Não me ocorre sempre. Por diferenças de temperamento, fundamentalmente. A meu modesto juízo, Haddad peca por um espírito excessivamente conciliatório. Preocupado, às vezes um tanto demais, em atender a plutocracia local e o sistema financeiro, o ministro da Fazenda pode cometer enganos. Por exemplo, o governo foi colocado numa camisa-de-sete-varas, quando se propôs um arcabouço fiscal relativamente inflexível, com metas ambiciosas que agora cobram o seu preço. As metas para 2025 e anos posteriores foram flexibilizadas (acertadamente) e foram encontradas algumas válvulas de escape. Manteve-se, entretanto, a meta de déficit zero para 2024, com um intervalo de tolerância de apenas 0,25 ponto percentual do PIB para cima e para baixo. As novas projeções da Fazenda indicam um resultado primário no piso da meta, isto é, um déficit em torno de 0,25% do PIB. O problema permanece, portanto, induzindo o governo a bloquear ou reduzir gastos essenciais, notadamente investimentos públicos, o custeio da máquina federal e transferências sociais. O leitor ou leitora se for mais “realista” (ou mais “conformista”?) dirá que a “correlação de forças” na sociedade, na mídia e no Congresso não permite nada de muito diferente. Pode ser. Porém, “correlação de forças” não é um fato objetivo, fixado, que independa da ação dos governantes. Críticas despropositadas a Haddad Mas deixo de lado esses arroubos voluntaristas e entro no assunto que queria abordar hoje. É o seguinte: muitas das críticas a Haddad são descabidas. Inventaram agora que o ministro da Fazenda é um taxador inveterado, cunhando a expressão simplória – “Taxadd”. O objetivo evidente é atingir não só o ministro Haddad, como também o presidente Lula. Não vejo como sustentar essa crítica. Vamos dar uma rápida olhada em algumas estatísticas, sem a pretensão de esgotar o assunto e nem sequer de abordar todos os seus principais aspectos. A carga tributária global no Brasil (incluindo governo central, estados e municípios) tem oscilado entre 31% e 33% do PIB desde 2010. A do governo central, entre 21% e 23% do PIB. De 2022 para 2023, primeiro ano do suposto ministro “Taxadd”, a carga do governo central caiu um pouco, de 22,4% para 22% do PIB. Há razões para prever aumento do nível global de tributação em 2024? Não há clareza quanto a isso ainda. Sabemos que a arrecadação federal aumentou 8,7% em termos reais no período janeiro/maio relativamente ao mesmo período do ano de 2023 (incluídos fatores não recorrentes) e de 5,4% (sem considerar esses fatores). Esses fatores não-recorrentes incluem rendimentos da tributação de fundos financeiros exclusivos e no exterior e a calamidade no Rio Grande do Sul. Esse crescimento da arrecadação é um problema? Não me parece. Haveria por acaso condições de obter o ajustamento das contas do governo, pedido insistentemente pela mídia e pelo sistema financeiro, apenas cortando despesas? Sem aumentar a arrecadação e sem tocar nos juros da dívida? O que parecem querer a plutocracia e a mídia tradicional é que se faça o ajuste em cima das classes mais baixas, cortando transferências sociais como o benefício de prestação continuada para pessoas com deficiência, supostamente para coibir irregularidades. Gostariam, também, que os idosos pagassem a conta do ajuste, reduzindo a correção das aposentadorias e pensões. Porém, mantendo para os mais ricos as generosas isenções tributárias e generosos juros da dívida pública. Se Lula for por esse caminho, pergunto, não descumprirá a sua promessa de campanha de colocar o pobre o orçamento e o rico no imposto de renda? Privilégios dos ricos e super-ricos Isso leva diretamente a outra pergunta importante: sobre quem recai um eventual aumento de tributos? Estamos, obviamente, diante de uma questão distributiva. Os ricos e super-ricos querem manter os seus diversos privilégios – isenções, desonerações, baixa tributação do patrimônio e das altas rendas, pagamentos de juros exorbitantes, para mencionar os mais evidentes. Não querem ouvir falar em dar a sua contribuição. Quando se tenta corrigir a injustiça, ergue-se um coro nos meios empresariais e na mídia reclamando contra a “voracidade tributária” do governo. É exatamente o que está acontecendo com Haddad. Passos discretos que ele vem dando são recebidos a pedradas. Quem paga impostos no Brasil, recorde-se, são fundamentalmente os mais pobres, via impostos indiretos, e a classe média, via imposto de renda da pessoa física. Os ricos e super-ricos vivem num paraíso fiscal. Nunca foi implementado o Imposto sobre Grandes Fortunas, previsto na Constituição desde 1988. A tributação do patrimônio (terras, heranças e doações, entre outros) é baixa para padrões internacionais. E, graças ao tratamento privilegiado das rendas do capital no Imposto de Renda (lucros e dividendos isentos na pessoa física, tributação basicamente proporcional dos rendimentos financeiros, além de isenção para determinadas aplicações), a alíquota efetiva do Imposto de Renda sobre faixas mais altas de rendimento é pequena, inferior à que se aplica à classe média baixa. O governo Lula tem tentado enfrentar o problema. Elevou a faixa de isenção do Imposto de Renda para pessoas físicas, por exemplo. Taxou os fundos financeiros fechados e no exterior. Positiva também foi a iniciativa de Haddad de convidar o economista Gabriel Zuckman, especialista no assunto, para formular propostas ao G20 de tributação dos super-ricos em nível internacional. Mas é preciso fazer mais. O último ponto, por exemplo, não deve servir de argumento ou motivo para adiar o que se pode fazer, em nível nacional, para aumentar a tributação dos super-ricos brasileiros. A suposição de que eles fugiriam para outros países é duvidosa. Afinal, onde encontrariam no mundo um país que oferece remuneração financeira tão alta sobre ativos líquidos e sem risco real de crédito? Haddad gastou capital político do governo nos seus dois anos iniciais, encampando uma reforma tributária do consumo de tipo convencional, que já estava na pauta do Congresso. Ela tem seus méritos, mas não melhora significativamente a estrutura regressiva do sistema tributário e só tem efeitos positivos sobre a economia no longo prazo – no prazo em que, como dizia Keynes, estaremos mortos. Agora, o governo terá, talvez, dificuldade de propor e implementar uma tributação mais justa da renda e do patrimônio. Os privilegiados comemoram, em particular. Não reconhecem em público, porém. Ao contrário, promovem uma campanha para tachar Haddad de entusiasta do aumento da carga tributária... *** Uma versão resumida deste texto foi publicada na revista Carta Capital. *Paulo Nogueira Batista Jr. é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Publicou pela editora LeYa o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém, segunda edição, 2021. E-mail: paulonbjr@hotmail.com - X: @paulonbjr - Canal YouTube: youtube.nogueirabatista.com.br - Portal: www.nogueirabatista.com.br Foto da capa: Equipe Econômica - Presidente Lula se reuniu com a equipe econômica do governo 12-01-2023: Ministros Fernando Haddad (Fazenda), Rui Costa (Casa Civil), Simone Tebet (Planejamento e Orçamento) e Esther Dweck (Gestão e Inovação) - Foto: Ricardo Stuckert  Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaositered@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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A Enchente e a Falência do Modelo Neoliberal em Porto Alegre

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A Enchente e a Falência do Modelo Neoliberal em Porto Alegre
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Por ILTON FREITAS* Vamos direto ao ponto. O bloco neoliberal e bolsonarista liderado pelo prefeito Melo do MDB, no início do ano reunia certas condições para emplacar a reeleição para o governo municipal. A prefeitura era bem avaliada pelos setores médios e se vendia como a pedra de toque da modernidade com os empreendimentos no quarto distrito, abrangendo os bairros Floresta e São Geraldo. Com sua agenda neoliberal de estado mínimo e de demonização do setor público desinvestiram conscientemente na manutenção da cidade, privilegiaram as grandes empreiteiras e grupos econômicos às expensas do meio ambiente, privatizaram empresas públicas importantes como a CARRIS de transporte urbano, e se preparavam para vender o DMAE, a autarquia responsável pelo abastecimento, saneamento e drenagem de água.  No auge do delírio neoliberal e nos marcos do projeto de privatização do Cais do Porto, o prefeito Melo e seu comparsa ideológico o governador Leite (PSDB) defenderam a destruição do muro da Avenida Mauá em troca de um sistema mais “eficiente” de contenção de uma eventual inundação. [caption id="attachment_15260" align="aligncenter" width="2048"] Porto Alegre (RS), 3/05/2024 – CHUVAS - ENCHENTES - Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil[/caption] Pois bem, tudo seguia mais ou menos em acordo com os planos privatistas de Melo e cia. No entanto, não que tenham sido pegos de surpresa, o governo municipal teve que manejar as enchentes de maio e seu séquito de destruição que se abateu sobre pelo menos a terça parte da cidade.  De certo modo a enchente do rio/lago Guaíba estilhaçou o modelo neoliberal que governa a cidade desde 2005 (houve um certo interregno com o prefeito Fortunati entre 2013 e 2016, na época do PDT). As cheias do Guaíba demonstraram que um modelo radicado na especulação imobiliária desenfreada, no desinvestimento estatal, no extermínio das funções públicas do estado (caso do DEP) e do negacionismo climático não possuem nem presente, mas muito menos o futuro. Por seu turno na memória coletiva de uma cidade de um milhão e quatrocentos mil habitantes, difícil será isentar de responsabilidades o prefeito e sua trupe de neoliberais e bolsonaristas pela destruição parcial e as consequências habitacionais e econômicas de pelo menos a terça parte do município. Estou falando dos efeitos funestos da enchente nos bairros Menino Deus, Praia de Belas, o Centro Histórico, dos bairros São Geraldo, Humaitá, Sarandi, mais o extremo sul, Guarujá, etc. Não se exagera quando se afirma que a eleição em Porto Alegre será monotemática, ou seja, a enchente e o fracasso administrativo da prefeitura. Fracasso mais do que evidenciado na incompetência em manter e de fazer funcionar um sistema bem desenhado de prevenção de enchentes com o muro da avenida Mauá, os diques de contenção e os equipamentos de drenagem como as casas de bombas, condutos, etc. Esse misto de incompetência e descalabro administrativo foi carimbado na testa do prefeito e dos paspalhos diretores do DMAE e secretários. Portanto, em consideração as características dos pleitos municipais que priorizam as questões paroquiais, a enchente, suas trágicas consequências e o fracasso administrativo de Melo ocupará o centro do debate político/eleitoral. A tarefa da oposição de esquerda (PT/PSOL/PCdoB e aliados) liderada pela pré-candidata, a deputada federal Maria do Rosário (PT), consistirá em demonstrar a estreita vinculação da falência administrativa da prefeitura por ocasião da enchente, com o modelo neoliberal de desinvestimento estatal, absurda negligencia na manutenção dos equipamentos públicos, ausência de prevenção e com o negacionismo climático. Além de denunciar a incompetência intencional do prefeito Melo, a oposição popular deverá demonstrar aos eleitores porto-alegrenses as ações de reconstrução e de auxílio do governo do presidente Lula, sobretudo para aquelas pessoas que perderam tragicamente seus bens e que se viram afetadas material e moralmente com a inundação dos bairros, residências e demais dissabores ocasionados pela enchente. No fundamental é preciso demonstrar que o desastre ambiental se ampliou monstruosamente em nosso município, por conta de um modelo neoliberal/bolsonarista que faliu e contribuiu para a inaudita destruição de bairros populares e de classe média. E, no sentido inverso, ao fim e ao cabo foi o estado através das ações e programas do presidente Lula, é que está na vanguarda da reconstrução do município e no auxílio indispensável aos cidadãos direta e indiretamente vitimados pela catástrofe climática. *Ilton Freitas, doutor em Ciência Política/UFRGS Foto da capa: Juliano Verardi - Enchente em Porto Alegre/RS, Bairro Praia de Belas, Orla do Guaíba e Bairro Menino Deus - julianoverardi.com Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaositered@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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Os povos indígenas seguem invisíveis

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Os povos indígenas seguem invisíveis
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Por ANA INÉS ALGORTA LATORRE* Aconteceu durante a enchente. Segundo levantamentos feitos pelo CIMI, mais de oitenta aldeias indígenas, e mais de 8mil famílias indígenas, foram diretamente atingidas pelas chuvas do início de maio. Uma das aldeias guaranis atingidas pela cheia foi destruída por ação do DNIT, enquanto seus habitantes estavam refugiados em um abrigo. Aparentemente, houve a necessidade de consertar um duto que passava sob a aldeia. Porém, os indígenas não foram consultados ou avisados da destruição que aconteceria, e, quando as águas baixaram, não tinham mais suas casas para onde retornar. Com a catástrofe que o Rio Grande do Sul viveu, a questão dos animais domésticos e a condição em que são mantidos em nossa sociedade ganhou visibilidade. Nada mais justo. Muitos se mobilizaram: movimentos, grupos e pessoas individuais de todo o país vieram até o Estado auxiliar nos resgates e nos cuidados com os animais resgatados. Até hoje o tema permanece em pauta, pois são inúmeros animais que ficaram sem tutores. O poder público (ainda que menos do que deveria) tem promovido reuniões e debates, e tentado organizar grupos de trabalho para lidar adequadamente com a questão. Além de cães e gatos, o resgate de cavalos e outros animais chamou a atenção da opinião pública em nível nacional e internacional. O cavalo Caramelo, resgatado de cima de um telhado onde aguardou por alguns dias, tornou-se uma celebridade. Não se critica, aqui, a necessária mobilização em prol dos animais. Ao contrário, considero que essa mobilização vem tarde, respondendo a um problema que se arrasta há décadas (ou séculos?) sem a devida atenção do Estado e de boa parte da sociedade. Porém, em comparação com a comoção nacional e internacional que cerca a questão animal, percebe-se pouquíssima repercussão quanto à situação dos povos indígenas. Passada a fase aguda da enchente, e iniciada a etapa de reconstrução, já praticamente não se busca saber como estão as famílias indígenas e qual o tipo de apoio de que necessitam neste momento. A situação se agrava, quando, na semana passada, ataques concertados a várias aldeias indígenas pelo país têm como alvo, também, duas comunidades indígenas do Rio Grande do Sul. A comunidade Kaigang Fag Nor, acampada às margens da rodovia no Pontão, em área de domínio público, no Norte do Estado, sofreu um ataque a tiros durante a noite. Os tiros foram dados em direção aos barracos onde as famílias se abrigavam. Os indígenas buscam retornar a suas terras originárias, de onde foram expulsos por fazendeiros em 2014. Os tiros foram dados na noite de 10 de julho. Na madrugada de 14 de julho, um veículo da comunidade indígena foi incendiado. Na mesma noite, a Tekoha Pekuruty, em Eldorado do Sul, às margens da BR 290, a mesma comunidade que teve as casas destruídas por ação do DNIT durante a enchente, também sofreu um ataque com tiros contra os barracos, que partiram de uma caminhonete que parou perto do acampamento dos indígenas. Durante a tarde do domingo 14, grupos de fazendeiros armados atacaram comunidades Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul, baleando um homem indígena, em terra indígena cujo processo de demarcação se arrasta por inércia do Estado, sendo que já está identificada e delimitada. Os ataques têm acontecido aos olhos de todos e com a certeza da impunidade. Os indígenas temem por suas vidas. Nesta sexta-feira dia 19 de julho, grupos de fazendeiros armados cercaram a retomada tekoha Tatarendi, dos Avá-Guarani, no oeste do Paraná, próximo à fronteira com o Paraguai. A Força Nacional, presente no local, teve dificuldades em conter os fazendeiros, que estavam agressivos. E o Ministério dos Povos Indígenas também esteve no local para tentar mediar a situação. Os ruralistas se retiraram no início da noite, sem que tenha havido qualquer solução. Aparentemente, o confronto iniciou depois da entrega de um mandado de reintegração de posse aos indígenas por parte da Polícia Federal. [caption id="attachment_15256" align="aligncenter" width="800"] Denúncia apresentada pelas crianças durante a grande assembleia Avá Guarani / Foto: Diangela Menegazzi[/caption] O CIMI cobra das autoridades estatais que se concluam os processos de demarcação das terras indígenas, que as comunidades recebam a devida proteção e que os responsáveis por esses ataques sejam identificados e punidos. Não se está a falar de casos isolados. E sim de práticas que têm crescido à sombra de governos que pregaram a violência como forma de resolver os conflitos e impor as soluções dos mais fortes. Essas práticas têm feito muitas vítimas, várias delas apenas neste ano de 2024. Porém, esses atos criminosos não parecem comover a opinião pública. Já está naturalizado o fato de que, nessas disputas por terras, os indígenas são mortos covardemente. Isso não causa mais espanto. Antes de se chegar a esse terrível resultado, são colocados como menos humanos nas narrativas de diversos grupos (não esqueçamos aquele deputado gaúcho que se referiu a indígenas e outros gruops como “tudo o que não presta”, e que logo depois se elegeu deputado federal com significativo número de votos). Assistimos, nos dias atuais, a um fenôneno de “humanização” de alguns animais, enquanto povos indígenas e outros grupos racializados são des-humanizados. A falta de alteridade que leva a sua invisibilização nada mais é do que uma manifestação do racismo estrutural e do etnocentrismo de nossa sociedade, em que o modo de vida ocidental é tomado como regra e o homem branco europeu é tido como a referência de ser humano. E também da necropolítica, em que certos corpos que se afastam dessa regra são vistos como corpos “matáveis”, cujas vidas têm menos valor, ou nenhum. *Ana Inês Algorta Latorre, juíza titular da 2ª Vara Federal de Carazinho (RS), vice-presidente do Comitê Pan-Americano de Juízes de Direitos Sociais e Doutrina Franciscana (Copaju) Foto da capa: Indígenas Guarani-Kaiowá fortalecem reivindicação contra violação de direitos humanos em visita da Delegação da CIDH. Foto: Ascom – MPF/MS Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaositered@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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Realidades de um ano instável

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Realidades de um ano instável
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Por LÉA MARIA AARÃO REIS* Em meio à torrente de filmes brasileiros que chegam às telas dos cinemas, e alguns tentando subir nas plataformas de streaming, uma coprodução latino-americana, A Filha do Pescador, se incorporou à presente amostra do pacote de cartazes que procuram atrair o espectador durante essas pequenas férias de meio de ano. Na mesma embalagem são trazidos à luz das redes sociais e à reflexão nos debates, vídeos, filmes e filmetes realizados durante o período da ditadura civil-militar de 64. É preciosa memorabilia que apresenta às gerações dos jovens de hoje as sombrias realidades, em imagens, do tempo político de repressão, opressão, censura, violência, assassinatos, prisões, exílios e torturas, e de amplas redes de corrupção metodicamente organizadas pelos que exerceram indevidamente o poder; os incansáveis que até hoje procuram se reorganizar para desfecharem novos ataques golpistas. A Filha do Pescador é um desses filmes, uma coprodução latino-americana em cartaz com a chancela do Brasil, Colômbia, Porto Rico e República Dominicana. Dirigida pelo colombiano Edgar De Luque Jácome, conta a relação de um pescador bruto e insensível com sua filha transexual. “A Filha do Pescador é a história daqueles que precisam enfrentar seus demônios e resolver suas diferenças mais profundas, como no caso do filme, dentro de um quadro simples e poderoso como é a forte corrente do mar que os leva até a margem para uma segunda chance”, esclarece o diretor. https://youtu.be/Z_Kiz1ACbQ4 Em resumo: Samuel mora sozinho em uma ilha isolada do Caribe colombiano. Exímio mergulhador, vive da pesca submarina em mergulho livre. Um dia, o filho Samuelito, que ele não via há 15 anos, bate à sua porta. Agora transexual, e então conhecido como Priscila, Samuelito está em fuga e procura a casa paterna para se esconder e em busca de proteção. A Flor do Buriti, dos brasileiros Renée Nader Messora e João Salaviza, é outro cartaz dos mais procurados nessa temporada. Foi exibido em mais de cem festivais e é vencedor de catorze prêmios, entre eles o prêmio coletivo para melhor elenco na importante Mostra Un Certain Regard, do Festival de Cannes. O filme traz outro tema que é urgente e atual: a resistência das comunidades indígenas – no caso, os Krahô –, diante da invasão das suas terras por agricultores que se mantêm impunes pela (in)justiça do homem branco, e a firme determinação na luta desses povos diante do desrespeito aos seus territórios já demarcados. https://youtu.be/g1ICjw0mSEQ “As diferentes violências sofridas pelos Krahô nos últimos cem anos alavancaram um movimento de reivindicação da terra como um bem maior e uma prioridade para que a comunidade possa viver digna e plenamente a sua cultura”, comenta a diretora Renée Messora. A Flor do Buriti atravessa os últimos 80 anos dos Krahô desde um massacre, em 1940, quando morreram dezenas de pessoas. Perpetrado por dois fazendeiros da região, as violências praticadas naquele momento continuam gravadas na memória das novas gerações. A Flor do Buriti foi rodado no Tocantins durante quinze meses, em quatro aldeias dentro da Terra Indígena demarcada, Kraholândia. “Uma grande revolução seria ver filmes feitos por realizadores indígenas que conseguissem conquistar não só o Festival de Cannes, mas também os circuitos dos cinemas”, ressalta Messora. Assim como no filme anterior da mesma dupla de diretores, o festejado Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, a equipe da produção atual mesclava indígenas e não indígenas, relatos históricos baseados em conversas de contraponto à realidade atual da comunidade, que foram a base para a construção da narrativa. Já no filme Estranho Caminho, o pano de fundo é a recente pandemia. Um jovem cineasta visita sua cidade natal, precisa encontrar o pai e é surpreendido pelo rápido avanço do coronavírus. Assim como a personagem Priscila, de A Filha do Pescador, há mais de dez anos ele não fala com esse pai. Após o primeiro encontro entre os dois, coisas estranhas começam a acontecer e a trama vai se desenvolvendo em regime de suspense. O filme foi premiado no respeitado Festival de Cinema de Tribeca e selecionado para o Festival de San Sebastián, na Espanha. Estreia nos cinemas no dia 1º de agosto. https://youtu.be/GgHTQ4vJqbs Outra produção instigante é O Contato, que chegará dia 15 de agosto nas telas dos cinemas. Foi rodada em um município com 95% da população indígena e aborda o cotidiano de três famílias dos Yanomami, Arapaso e Hupda, vivendo em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, a região que concentra 23 etnias e 18 idiomas. A trama é conduzida por um grupo Yanomami que transporta um filme sobre eles próprios para ser exibido na aldeia; uma mulher Arapaso que viaja até a cidade para cuidar da filha sofrendo de depressão; e uma família Hupda desejando apresentar o filho mais novo aos seus parentes. Dirigido e roteirizado por Vicente Ferraz, o filme é dedicado à memória de Bruno Pereira, que chegou a colaborar no trabalho antes de ser assassinado, em junho de 2022, em Atalaia do Norte, no Amazonas. O Contato é falado em quatro línguas indígenas e estreou no Festival É Tudo Verdade de 2023, quando foi exibido também em Cuba, no Festival Internacional do Novo Cine Latino-Americano de Havana. Detalhe especial: a empresa produtora de O Contato contribuiu com projetos concretos para os povos que estiveram envolvidos no filme. Entre as suas iniciativas, financiaram a reforma de um centro social, a construção de uma escola e o fornecimento de equipamentos de tecnologia para escolas e para associações das comunidades envolvidas. https://youtu.be/ykITlrOmfxk Grande Sertão é uma livre adaptação de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, dirigido por Guel Arraes com roteiro de Arraes e Jorge Furtado, e interpretado por Caio Blat e Luisa Arraes. Nele, a comunidade Grande Sertão é controlada por facções criminosas, onde a luta entre policiais e bandidos se transforma em uma guerra. Riobaldo entra na luta para seguir Diadorim, cuja identidade e a paixão que ele sente são mistérios conflitantes em sua cabeça. https://youtu.be/O9Q-6VSzQCw O Clube das Mulheres de Negócios, coprodução Brasil-França, de Anna Muylaert, está por estrear, e O Estranho, dirigido por Flora Dias e Juruna Mallon, foi destaque no Festival de Berlim. Narra a história do aeroporto de Guarulhos a partir do fato de ter sido construído em território indígena por ancestrais de uma funcionária de empresa aérea. As memórias e o futuro da moça e de seus colegas estão permeados pelos rastros do passado em um território em constante transformação. https://youtu.be/I_RFXOR_ccw Essa efervescência cinematográfica traz assuntos urgentes, discutidos e pensados com frequência cada vez maior pela população em geral, incluindo em lugar de destaque e como fato novo os grupos de comunidades das favelas e das periferias dos grandes centros urbanos que se organizam e produzem audiovisual. Temas como o direito à escolha identitária, seja feminina, masculina ou bissexual. A perseguição impune a comunidades indígenas do país por fazendeiros e grupos do agronegócio. A lentidão na demarcação de terras indígenas e a fiscalização efetiva por parte do Estado para fazer respeitar esses marcos. O movimento feminista ampliado e consolidado no país, e o abismo por vezes aberto no diálogo entre os jovens de hoje e os idosos perdidos no novo emaranhado de costumes, valores e tecnologia. https://youtu.be/nNMjYPfW0Aw Questões do nosso tempo transformadas em conteúdos de filmes brasileiros que devem ser conhecidos, que são imperdíveis e nos aproximam de algumas realidades nacionais apresentadas nesse meio de ano particularmente instável e imprevisível lá fora. *Léa Aarão Reis é jornalista Ilustração Marcos Diniz Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaositered@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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CAPACETAÇO CONTRA FACADA: como a insegurança jurídica pode levar à violência

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CAPACETAÇO CONTRA FACADA: como a insegurança jurídica pode levar à violência
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Por LUIZ ALBERTO DE VARGAS* Os jornais dos últimos dias relatam dramático conflito entre três membros de uma família e um motoboy que resultou em ferimentos graves por arma branca no motociclista que, perseguido e atacado por supostas ofensas, defendeu-se aos ataques à faca esgrimindo o próprio capacete da moto, que, assim manejado, transformou-se também em arma branca. Por certo, especialistas em direito penal, sociólogos e psicólogos terão muito a dizer, mas reservo-me um espaço pequeno para tratar da questão por um ângulo inusitado: o de quanto a insegurança jurídica a respeito do vínculo de trabalho do motoboy pode ter contribuído para o lamentável episódio. Por certo, se poderia também encarar o problema da insegurança jurídica por outro lado, o da (i) responsabilidade da empresa com quem a família contratou o serviço de entrega (tema de direito do consumidor) ou, mesmo, colocar o tema em uma perspectiva ainda mais ampla, como pode ser o das incertezas em mundo cada vez mais imprevisível e o que teria isso a ver com as conhecidas ideias de Baumann sobre o chamado “mundo líquido’. Sendo da área do direito do trabalho, conformo-me a ver a vida da minha janela e, aqui, de partida, tenho de constatar que a vida dos trabalhadores motoclistas não tem sido das mais fáceis ultimamente. Jornadas de trabalho desumanas sem pagamento de horas extras, remuneração por tarefa condicionada ao pagamento pelo cliente, exigências de entrega em tempo exíguo sob pena de não-pagamento da comissão, não-cobertura dos riscos de acidente no trânsito, não assinatura da CTPS e não-reconhecimento dos direitos celetistas e previdenciários. Sem falar, é claro, do pagamento de uma exígua “taxa de entrega” que, calculada de forma contabilmente rigorosa, sequer cobre os custos do aluguel e da manutenção da motocicleta alugada. Mais: a própria imagem do entregador motociclista já está sendo irremediavelmente comprometida por um seriado cômico de televisão que, semanalmente, a pretexto de “homenagear” os motoboys, apresenta-os como ociosos que passam os dias nas calçadas, criando confusões de todo tipo. Talvez esse trabalhador esteja desmotivado, extenuado, sobrecarregado e, por falta de treinamento, não tenha mesmo desenvolvido a paciência e cortesia que, em geral, se espera de todos que trabalham no ramo do comércio. Claro que nada disso justifica que um motoboy ofenda quem quer que seja, muito menos o cliente que teria se recusado a pagar a mercadoria já entregue. Em mundo civilizado (menos líquido), dívidas contraídas com as empresas são pelas mesmas cobradas na justiça e não exigidas aos berros na frente da casa do devedor pelo empregado.  Também num mundo de maior “segurança jurídica”, ofendidos verbalmente não tomam a justiça nas próprias mãos e perseguem o ofensor de faca na mão. Em outros tempos, tudo se resolveria com um telefonema para a empresa, queixando-se da conduta do empregado. Ah! Pois é!  Ele não era empregado e a empresa sustenta não ter qualquer responsabilidade pelas condutas eventualmente lesivas aos seus clientes por seus “colaboradores”. Triste mundo em que, ao invés de procurar a Justiça, as pessoas buscam, cada vez mais, “meios alternativos para solução dos conflitos”, no caso concreto a golpes de facada e capacetaço. *Luiz Alberto de Vargas é Desembargador do Trabalho e membro da Associação de Juízes e Juízes para a Democracia Foto da capa: Motoboys durante manifestação no Rio de Janeiro - Reprodução/Redes Sociais Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaositered@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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