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O Brasil e a integração bioceânica

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O Brasil e a integração bioceânica
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Por WAGNER SOUSA* O território sul-americano tem características físicas que constituem uma verdadeira “barreira natural” entre o Brasil e seus naturais falantes de português e a maior parte dos países do subcontinente, falantes de espanhol e também dos três que falam outras línguas: Suriname (holandês), Guiana (inglês) e Guiana Francesa (francês), esta última um departamento (uma espécie de província) francês. Pântanos (o “Gran Chaco”, que estende-se entre Paraguai, Bolívia e Argentina e o Pantanal brasileiro), a Floresta Amazônica e a Cordilheira dos Andes ainda separam, em grande medida, o Brasil da maior parte de seus vizinhos. Dos 12 países com quem divide a região o Brasil não faz fronteira apenas com Chile e Equador. As elites brasileiras, como herança do período colonial português e sua economia extrativista dos ciclos do pau-brasil, cana-de-açúcar e ouro e, já como país independente, dos ciclos da exploração da borracha e da economia cafeeira, estiveram até então voltadas para a Europa e “de costas” para os vizinhos sul-americanos. Como explicitado no primeiro parágrafo, a realidade da geografia da região impôs um grande desafio para uma maior aproximação, porém os vínculos políticos e econômicos e também questões culturais (uma maior identidade dessas elites com a Europa e, após a Segunda Guerra Mundial, com os EUA) alimentaram a “vocação atlântica” brasileira. Apenas nas décadas finais do século XX, em especial após a redemocratização no Brasil e na Argentina, nos governos de José Sarney e Raul Alfonsín, iniciou-se processo de integração regional que redundou no Mercosul, em 1991, com quatro países e na Unasul, em 2008, com doze países. No entanto, já na década de 1970 existiram discussões sobre a integração física da região, com os chamados “Corredores Bioceânicos”, infraestruturas para conexões físicas com diferentes modais (rodovias, ferrovias, hidrovias) para transporte de cargas e passageiros entre o Pacífico e o Atlântico.  Apesar desses debates, um compromisso político para tanto foi assinado apenas em 2015. Segundo a especialista em Comércio Internacional, Antonella Lanfranconi, a respeito deste ponto: “Há registros de esforços nesse sentido desde 1975, quando o Grupo Empresarial Inter-regional do Centro-Oeste da América do Sul (GEICOS) iniciou ações de integração entre os dois oceanos, as quais foram retomadas pelo projeto denominado Zona de Integração do Centro-Oeste da América do Sul (ZICOSUR) no ano de 1997, agrupando iniciativas em nível subnacional. A assinatura da Declaração de Assunção sobre Corredores Bioceânicos, em 2015, marca pela primeira vez o compromisso de quatro países a avançar nessa iniciativa. Estes países instruíram seus Ministérios das Relações Exteriores a formar um grupo de trabalho para realizar estudos técnicos e formular recomendações pertinentes para a implementação do corredor.” A integração física da América do Sul através desses corredores reduz os custos de transporte e o tempo de deslocamento, tanto no que importa às relações econômicas internas como para as exportações. Para o Brasil, a principal economia e o país mais industrializado da região representa um ganho de competitividade em suas exportações (com predomínio de commodities) para a Ásia, em especial para a China, destino de quase um terço das vendas externas, como também no próprio subcontinente, para o qual predominam exportações de produtos industrializados. No entanto, a mesma China que impulsionou as exportações brasileiras de minérios e produtos agrícolas vem ganhando terreno do Brasil na América do Sul em relação aos produtos industrializados. A China também se tornou importante investidor global na área de infraestrutura e também está ocupando um espaço que já foi do Brasil, como demonstra a recente inauguração do porto de Chancay, no Peru. O comprometimento das grandes empreiteiras do Brasil pela Operação Lava Jato tirou do país um relevante instrumento em suas negociações com outros países, com importante perda de divisas com venda de serviços de engenharia no exterior. A China vem implementando na América do Sul, assim como no restante da América Latina, na Ásia, Europa e África a expansão da Belt and Road Initiative (“A Nova Rota da Seda”) com investimentos em portos, ferrovias, aeroportos, rodovias, usinas de geração de energia e redes de telecomunicações, parte do projeto global de expansão econômica e de influência política da China. O Brasil tem a China como maior parceiro comercial, assim como a maior parte das nações do mundo, e com este país o maior superávit comercial, mas também é um importante concorrente. A visita de Estado de Xi Jinping ao Brasil, logo após sua participação no G-20, em novembro de 2024, foi oportunidade para o governo brasileiro estabelecer negociações para parcerias que envolvam desenvolvimento tecnológico e investimento em infraestrutura e que mudem a relação bilateral atual na qual predominantemente o Brasil fornece produtos primários e importa produtos industrializados. É, portanto, interesse do Brasil e de países vizinhos, carentes de recursos financeiros, que a China participe como parceira nos investimentos em infraestrutura na região. E, da própria China, que busca conexões físicas com seus fornecedores e consumidores. Com o enfraquecimento, por diferentes razões, dos vínculos políticos brasileiros com a Argentina e a Venezuela, o projeto da Unasul, hoje com 7 países, se encontra paralisado e o Brasil se vê premido por repensar a sua inserção externa num ambiente muito mais conflituoso e instável. Não será possível, ao menos no futuro próximo, a retomada de um projeto de integração sul-americana liderado pelo Brasil que englobe toda a América do Sul, pelas razões expostas. É possível que o Brasil tenha que estabelecer uma espécie de “geometria variável” para suas relações com os vizinhos, que de forma realista busque fortalecer os vínculos políticos, econômicos e culturais de forma mais particularizada, bilateral e menos institucionalizada em termos regionais. E a integração física, na figura dos Corredores Bioceânicos, aparece como alternativa factível para a projeção dos interesses do Brasil entre os vizinhos e também de forma extra-regional, em especial para a região mais dinâmica do mundo, a Ásia.     Publicado originalmente em Observatório Internacional do Século XXI. *Wagner Souza é Mestre em Sociologia pela UFPR, Doutor em Economia Política Internacional pela UFRJ. Pós-Doutorando em Economia Política Internacional pela UFRJ. Idealizador e Editor do site América Latina www.americalatina.net.br. Colaborador do boletim Observatório do Século XXI. Foto da capa: IA Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.  

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A maior parte da riqueza dos bilionários foi tomada, não conquistada, demonstra relatório da Oxfam

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A maior parte da riqueza dos bilionários foi tomada, não conquistada, demonstra relatório da Oxfam
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Um mundo de duas camadas. Nunca foi um tempo tão bom para ser um bilionário. Suas fortunas dispararam para níveis jamais vistos, enquanto as pessoas que vivem na pobreza em todo o mundo continuam a enfrentar várias crises. De acordo com o relatório da Oxfam, As custas de quem? – A origem da riqueza e a construção da injustiça no colonialismo, lançado por ocasião da reunião do Fórum Econômico de Davos 2025, "a riqueza dos bilionários aumentou acentuadamente em 2024, com o ritmo de aumento três vezes mais rápido do que em 2023. Trilhões estão sendo doados como herança, criando uma nova oligarquia aristocrática que tem imenso poder em nossa política e em nossa economia". Enquanto "a riqueza dos bilionários aumentou em US$ 2 trilhões no ano de 2024, o número de pessoas vivendo na pobreza mal mudou desde 1990". Com base nessas constatações, a Oxfam pede aos governos que taxem os mais ricos para reduzir a desigualdade, acabar com a riqueza extrema e desmontar a nova aristocracia". Alguns dos principais destaques do relatório:   Sessenta por cento da riqueza dos bilionários agora vem de heranças, monopólios ou conexões com poderosos. A Oxfam prevê que haverá pelo menos cinco trilionários daqui a uma década. O 1% mais rico do Norte Global extraiu US$ 30 milhões por hora do Sul Global em 2023. 204 novos bilionários foram criados em 2024, quase quatro por semana. A maior parte da riqueza dos ricos dos bilionários foi tomada, não conquistada Para baixar o relatório completo, acesse o site da Oxfam. https://youtu.be/ezJD6ArE5ck?si=Ub0rP1TujEhA22u-  

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Trump e a Europa: certezas e incertezas

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Trump e a Europa: certezas e incertezas
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Por FLÁVIO AGUIAR*, de Berlim Nos últimos anos duas preocupações cresceram entre a maioria dos governantes na Europa, na União e fora dela. A primeira foi a tensão com a Rússia, provocada pela guerra na Ucrânia. Na esteira dos Estados Unidos e da OTAN, a maioria dos países europeus alinhou-se ao apoio financeiro e militar do governo de Kiev. A segunda foi a de que, com o crescimento dos partidos de extrema-direita, a pauta de quase todos os governantes e partidos europeus, da centro-esquerda à direita tradicional,       passou a assimilar de modo mais orgânico o repúdio a imigrantes e refugiados, sobretudo àqueles que vêm do antigo Terceiro Mundo, hoje Sul Global, e aos oriundos dos países muçulmanos. A Rússia, a “invasão” do espaço europeu por aqueles considerados como estranhos a seu universo cultural e até religioso, o suposto terrorismo importado dos países árabes: eis um coquetel explosivo que alimenta alguns dos pesadelos mais aterrorizantes de governantes e governados preocupados em preservar os valores tidos por eles                             como utenticamente europeus, em corno da democracia liberal e do liberalismo econômico. Agora um novo pesadelo veio se juntar aos já mencionados: a posse, a partir desta segunda- feira, 20 de janeiro, de Donald Trump em seu segundo mandato na Casa Branca. Jamais um presidente norte- americano acumulou tantos poderes. Ele tem a seu lado a maioria nas duas casas do Congresso em Washington, uma sólida maioria na Suprema-Corte, que lhe garantiu imunidade criminal enquanto estiver no cargo, e o alinhamento explícito de duas das maiores Big Techs mundiais, lideradas por Elon Musk e Mark Zuckerberg. Outras devem aderir a este verdadeiro consórcio digital, informativo ou des- informativo, conforme o ponto de vista favorável ou crítico a elas. Elon Musk já apontou suas baterias para a Europa, aliando-se explicitamente aos partidos de extrema-direita em alguns países, como o Reino Unido e a Alemanha. Zuckerberg promete suspender o sistema de verificação da credibilidade das informações que circularem na sua Big Tech. Os problemas europeus, entretanto, não têm raízes apenas em fontes definidas como externas. A própria Europa navega num mar de turbulências e incertezas. Os governos da dupla principal da União Europeia, França e Alemanha, estão fragilizados. Em 2024 a França teve quatro primeiros-ministros. O atual, François Bayrou, escapou de um voto de desconfiança na Assembleia Nacional fazendo concessões ao Partido Socialista, entre elas a de rediscutir a proposta de reforma de Previdência Social defendida pelo presidente Emmanuel Macron. Na Alemanha, o primeiro ministro social-democrata, Olaf Scholz, enfrentará uma eleição difícil em fevereiro. De momento as pesquisas de intenção de voto são amplamente desfavoráveis a seu partido. Partidos de extrema-direita estão no poder na Hungria e na Itália, e acossam os governos da Escandinávia, antes um verdadeiro santuário da social- democracia. Na Áustria o Partido da Liberdade, de extrema-direita, foi o mais votado na última eleição e agora tenta formar um governo de coalizão com a direita tradicional. O Acordo de Shengen, que prevê a livre circulação entre os países europeus, está ameaçado, porque vários deles estão restabelecendo controles policiais em suas fronteiras  terrestres. A economia da União Europeia está fragilizada. O alinhamento da Alemanha, que representa 30% do PIB da Zona do Euro, com o governo de Kiev terminou por provocar a interrupção do fornecimento do gás russo para o país. A indústria alemã entrou em recessão, acossada pela concorrência chinesa na produção de veículos elétricos e prejudicada pela turbulência no comércio mundial, graças à guerra na Ucrânia e o conflito no Oriente Médio. A Alemanha segue sendo a principal exportadora e importadora de produtos europeus. Uma crise nela atinge todo o continente. Até a recente assinatura do Acordo de Parceria entre a União Europeia e o Mercosul é fonte de desavenças, com a Alemanha.     *Flávio Aguiar é jornalista, analista político e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo). Foto de capa: Michael Reynolds/ EFE Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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Voltar para o trabalho de base. Qual base?

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Voltar para o trabalho de base. Qual base?
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Por JOSÉ FORTUNATI* Os resultados eleitorais advindos do processo eleitoral de 2024, que mostraram um fraco desempenho da esquerda em todo o país, levantaram um sério debate sobre a necessidade de um reengajamento dos partidos com as bases populares, preparando um novo enfrentamento com a extrema-direita no próximo ano, quando teremos uma nova polarização entre “bolsonaristas” e “lulistas”. A pergunta que não quer calar: que bases são essas que os partidos de esquerda deixaram de trabalhar politicamente? Tomo a liberdade de voltar no tempo, para a década de 1970, quando os movimentos sociais, sindicais e o mundo do trabalho estavam em outro patamar organizativo. Neste período participei ativamente do trabalho comunitário nas vilas da Grande Cruzeiro, especialmente na Vila Tronco, militei no Sindicato dos Bancários de Porto Alegre, onde fui presidente e ajudei a fundar e organizar o PT. Nas décadas de 1970, 1980 e 1990, o movimento sindical e as organizações comunitárias eram pilares fundamentais para a mobilização da esquerda. O mundo do trabalho era mais homogêneo, com uma grande concentração de trabalhadores em fábricas e indústrias, com servidores públicos mobilizados e com trabalhadores no setor terciário envolvidos com as lutas sindicais, o que facilitava a organização e a mobilização. As lutas pela redemocratização do país, por direitos trabalhistas, por melhores condições de trabalho e aumentos salariais eram centrais, e as forças de esquerda conseguiram conquistar diversos avanços significativos através de uma forte presença junto às bases. Foi neste momento que surgiram grandes lideranças como Olívio Dutra e Luís Inácio Lula da Silva, entre tantos outros. Naquele período a organização partidária se dava a partir da formação de núcleos de base por categoria de trabalhadores, por território ou por área de atuação. Desta forma surgiram os núcleos dos bancários, dos metalúrgicos, do Partenon, da Grande Cruzeiro, da cultura, da educação, entre outros. Eram verdadeiras organizações de base onde o militante, ou alguém interessado, podia expor a sua visão num debate aberto e fraterno. Os núcleos de base representaram a grande escola de formação política na formação do PT dos anos de 1980 e 1990. Independentes da estrutura burocrática partidária os núcleos de base foram responsáveis pela construção democrática do PT pois a convivência entre militantes oriundos das organizações revolucionárias da década de 1970, os “igrejeiros” advindos da Igreja Católica ligados a Teologia da Libertação, os “sindicalistas”, os “comunitários”, os originários das universidades (alunos e professores), entre tantos outros, era de uma tensão positiva que procurava qualificar o debate sem o receio das “patrulhas ideológicas” muito presentes nas “tendências/correntes” do partido. Atualmente, o cenário que encontramos no mundo do trabalho e nas vilas populares é bastante diferenciado. A precarização do trabalho, o crescimento do trabalho informal e a ascensão meteórica do empreendedorismo individual mudaram a forma como os trabalhadores se relacionam com a política e com as organizações de esquerda. Além disso, as forças conservadoras passaram a ter um desempenho muito mais forte e ousado no mundo da política, fazendo um enfrentamento direto, quer modificando a legislação trabalhista que atingiu em cheio a vida sindical, quer tendo uma presença muito forte nas mídias sociais, quer tendo uma participação contundente na política partidária com a eleição de vários representantes da extrema-direita no Congresso Nacional e na Presidência da República. Cito como um exemplo a categoria dos bancários, cujo sindicato tive o privilégio de presidir nos anos de 1984 a 1986. Neste período existiam no Brasil em torno de 850 mil bancários devidamente empregados no sistema financeiro nacional. Uma categoria extremamente organizada e mobilizada que servia de exemplo para outras categorias de trabalhadores. De lá para cá o sistema bancário brasileiro cresceu, se fortaleceu, com lucros cada vez mais exorbitantes, com a ampliação da oferta de serviços através dos caixas-eletrônicos, dos aplicativos, dos bancos digitais e do PIX. Em contrapartida, a automação bancária no Brasil, uma das mais potentes do mundo, terminou ceifando milhares de postos de trabalho e enfraquecendo a luta sindical. Hoje, a categoria bancária está reduzida pela metade e com uma jornada de trabalho que obriga ao cumprimento de metas draconianas que não permitem que o bancário tenha vontade de participar das lutas sindicais. Este é o novo contexto que encontramos no mundo do trabalho e na vida concreta de milhões de trabalhadores, o que nos obriga a repensar profundamente as estratégias de mobilização dos partidos de esquerda. Infelizmente, a maior parte da esquerda não entendeu ainda esta profunda mudança que aconteceu no país especialmente nos últimos 20 anos. Não desejo negar a importância do trabalho desenvolvido pelos sindicatos e pelas organizações comunitárias que continuam desempenhando um papel crucial na mobilização de base pois elas estão mais próximas das necessidades cotidianas da população e podem atuar como pontes entre os partidos de esquerda e as comunidades. Mas, não podemos deixar de considerar que, nos últimos anos, o Brasil tem testemunhado uma crescente tendência entre os trabalhadores pela adoção da “filosofia do empreendedorismo”. Essa mudança tem sido impulsionada por uma série de fatores econômicos, sociais e culturais, que vem transformando o tecido empresarial do país. O espírito empreendedor não é uma novidade no Brasil, pois desde os nossos primeiros passos como nação, os brasileiros têm demonstrado uma capacidade notável para a inovação e a criação de novos negócios. Prova disso é a permanente presença de brasileiros nas equipes da NASA, na criação de “big techs” ou nas empresas do Vale do Silício. Além, naturalmente, das inúmeras empresas existentes no Brasil, de todos os portes e tamanhos. A cultura das startups, com seu foco em inovação rápida e soluções disruptivas, ganhou terreno no Brasil, sendo que cidades como Porto Alegre, Florianópolis, Recife, São Paulo e Belo Horizonte tornaram-se centros vibrantes de empreendedorismo, atraindo investidores e talentos de todo o mundo. Naturalmente, temos que ter uma visão crítica sobre este processo pois nem todos os empreendedores têm acesso aos mesmos recursos e oportunidades, o que termina resultando em uma concentração de riqueza e poder em mãos de poucos. Mas, inegavelmente a “filosofia do empreendedorismo” tem cativado milhares de brasileiros. Sabemos que a proliferação de trabalhos autônomos e informais aumenta a precariedade e a insegurança no mercado de trabalho, mas não será combatendo este “espírito empreendedor” que conseguiremos dialogar com esta imensa base popular. Compete a quem está no governo investir em educação e capacitação para a promoção de um empreendedorismo inclusivo e sustentável. Programas de formação em habilidades empreendedoras, acesso a cursos de gestão e inovação, e o incentivo ao pensamento crítico e criativo desde a educação básica podem preparar melhor os futuros empreendedores. Políticas públicas eficazes podem criar um ambiente mais favorável para o empreendedorismo. Isso, obrigatoriamente, inclui a simplificação dos processos burocráticos, a oferta de incentivos fiscais, o apoio ao crédito e a promoção de parcerias entre o setor público e o privado. O Presidente Lula já percebeu que o governo precisa aprender a trabalhar com a nova população empreendedora ao afirmar na reunião ministerial, realizada em janeiro de 2025, que “é importante que a gente compreenda que o povo que nós estamos trabalhando hoje não é o povo dos anos 80. Não é o povo que queria apenas ter um emprego em uma fábrica com carteira profissional assinada. É um povo que está virando empreendedor e ele gosta de ser empreendedor e nós precisamos aprender a trabalhar com essa nova característica, com essa nova formação do povo brasileiro”. “O retorno às bases” deve ter como pressuposto, também, uma revisão de como uma parcela considerável da esquerda continua tratando de forma despolitizada, grosseira e agressiva os mais de 58 milhões de brasileiros que votaram em Jair Bolsonaro. Nos afastamos da “base” quando transformamos o debate político numa lista de impropérios chamando os eleitores de Bolsonaro de “gado”, “fascistas”, “minions”, “negacionistas” e outros adjetivos pejorativos e grosseiros. É um grande equívoco transformar o debate político numa troca de adjetivações pesadas que visam unicamente atacar todas as pessoas que tenham uma posição distinta da nossa, numa clara demonstração da soberba intelectual que se espalhou em parcela da militância de esquerda. Temos que compreender que são inúmeras as razões que os levaram a ter um voto distinto do nosso. É nosso papel fazer o bom debate, com argumentos e dados concretos, buscando o convencimento das pessoas, coisa que, infelizmente, as redes sociais não têm permitido. Não basta tentar “voltar às bases” através das redes sociais que impulsionam a discórdia, o confronto e a polarização política. Tenho consciência de que as mídias sociais são ferramentas indispensáveis para alcançar e mobilizar muitas pessoas. Elas permitem uma comunicação direta e rápida com as bases, além de possibilitarem a organização de campanhas e mobilizações de forma eficiente. Mas os partidos de esquerda devem investir na capacitação de seus membros para o uso estratégico das redes sociais com um linguajar claro e acessível, com mensagens curtas e precisas, sem “testões” ou “teses acadêmicas” incompreensíveis para a maioria da população. Um real retorno às bases significa ter que sair dos gabinetes, das salas com ar-condicionado, e ir para “a frente de batalha”, ou seja, pisar nas comunidades, esmiuçar os territórios, falar fente-a-frente com as pessoas, acolhendo os seus sofrimentos e queixas e organizando para que a situação concreta em que essas pessoas vivem possa ser realmente modificada para melhor. As pessoas têm que se sentir sujeitos ativos da política e não meros defensores de qualquer partido ou ideologia. A educação política feita de forma aberta, com um debate propositivo, é fundamental para conscientizar a população sobre os seus direitos e deveres, além de promover uma compreensão crítica da realidade econômica e social. Programas de formação política, debates públicos e presenciais podem ajudar a fortalecer a base ideológica e o engajamento político. O processo eleitoral de 2026 já começou e se não nos apressarmos numa maior organização desta base poderemos ter a mesma surpresa que os democratas tiveram nos EUA. Arregaçar as mangas e fazer o bom debate com a população como um todo, e não somente para a nossa “bolha”, é fundamental para o êxito eleitoral no próximo ano.     *José Fortunati, foi Prefeito de Porto Alegre (2 mandatos), Deputado Federal e Secretário de Estado da Educação do RS Foto da capa: IA Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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Posse Trump – Trump Inauguration Day

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Posse Trump – Trump Inauguration Day
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Por LUCIANA BAUER * Washington amanheceu fria, com -4 graus. Todos os blocos próximos à Casa Branca estavam hermeticamente fechados para carros. Perguntei ao funcionário do hotel se toda inauguração presidencial era sempre assim, e ele respondeu que não. Disseram que Trump já havia sofrido dois atentados e que toda essa segurança era devido ao risco de novo atentado. Estou em Washington a trabalho e sabia que iria passar o fatídico domingo aqui. Saí para fotografar a movimentação por volta das 10 da manhã. A posse acontece ao meio dia. Mas me surpreendi. Não há alegria nas ruas. Para falar a verdade, as ruas estão vazias. Estou retomando a fotografia e levei uma pequena Leica. Não há autorização para câmeras grandes sem apresentar credenciais ou dar explicações. Saí com essa pequena Leica e vejo pessoas cansadas. Não há absolutamente nenhum jovem ou grupo de jovens que poderiam ter votado no MAGA. Há pessoas velhas, que vieram no dia anterior de ônibus, muitos trabalhadores, crianças dormindo ou no colo dos pais, e algumas maiores brincando com as bandeiras. Há pouquíssimos negros e latinos. Uma senhora muito idosa passa com andador, ajudada pela filha, vestindo um pijama com a estampa da bandeira americana. Ela segue vagarosamente, numa parábola do que é a América neste dia de posse. Há alguns cosplays com muitos adereços. Passa um com chapéu de alce, chamando a atenção de dois jornalistas. Ele celebra a invasão do Capitólio como um ato de liberdade suprema. Eu e os repórteres que são franceses nos olhamos com extrema consciência do que estamos presenciando. Talvez o fato mais importante deste século. Trocamos algumas palavras em francês e vamos para lados opostos. Sabemos eu e eles que a democracia está nas mãos dos riots agora. A democracia que presenciamos que presenciamos é indiferente às mudanças climáticas, ao valor do salário mínimo congelado há vinte anos, à pobreza que as barracas de moradores de rua testemunham. A democracia capturada pelos algoritmos, pelo big oil, pelo capital e pelas corporações. A democracia da oligarquia, que Bernie Sanders denunciou há poucos dias. A democracia de Martin Luther King  - que tem hoje o seu dia - presencia a queda dos valores de tolerância e cooperação de forma acelerada. Estou na frente do restaurante Hamilton. Há um checkpoint calmo. As pessoas chegam e têm tempo de comprar bonés e camisetas. Estão felizes porque a América cindida, a América dividida, retornou com seu showman. Tiro algumas fotos dos apoiadores de Trump pelo reflexo dos letreiros deste restaurante. E penso: Hamilton e Madison foram os responsáveis por não se adotar a democracia total, mas a democracia parcial das elites e dos colégios eleitorais. Madison, com seu medo tremendo de que o povo empoderado dos novos estados fizesse, por exemplo, uma reforma agrária com as terras da maioria dos congressistas constitucionais, grandes latifundiários. O paradoxo da Revolução Americana de 1776 e da Constituição Americana, que garantiu que todos os homens eram livres, enquanto mantinha seus pés sobre as cabeças dos negros e indígenas que construíram esta nação. O que querem essas pessoas cansadas e empobrecidas que vejo nos checkpoints? Querem o retorno da meritocracia ou o privilégio branco? Querem se livrar da vida baseada em leasings e empréstimos infindáveis ou da dupla jornada? Querem se livrar do idioma espanhol ou chines que ouvem pelas suas ruas? Pensam que os anos de ouro do milagre econômico americano, no início do século passado, são possíveis e retornarão simplesmente anexando territórios como Groenlândia e Canadá? Essas pessoas não sabem, e nem lhes interessa saber, que as big techs têm muito a ver com os algoritmos que fizeram com que os Estados Unidos estivessem em seu estado de irreconciliabilidade. Em seu modo mais refratário aos ideais de liberdade e igualdade que moldaram pensadores como Rawls e Thoreau. Elas não sabem que uma elite muito mais poderosa que a Inglaterra colonial se apoderou do poder agora. Que brinda nos salões privados e chiques da capital norte americana a ascensão do projeto 2025, que vai desmontar o sistema de freios e contrapesos que Madison pensou para evitar oligarquias ou tiranias. O projeto que já deu certo na polonia e na Hungria de desmontar o Estado por dentro, retirando funcionários de carreira e colocando pessoas fieis ao ideal MAGA. E o Brasil é a próxima parada dessa oligarquia que abocanhou a democracia com seus algoritmos e poder econômico das corporações. A viralização do vídeo de um deputado federal contra o Pix demonstra que toda a máquina de moer democracias já se dirige para as cabeças dos BRICS. Os BRICS, que hoje são o único contraponto que temos para obstar a subjugação total do capital sobre a democracia real. De uma ágora real contra a ágora inventada pelo rolar da timeline. Como lidar com a indiferença à democracia é a grande pergunta que faço. A verdadeira liberdade ainda nos importa? O que Rawls ou Thoreau diriam de pessoas como Zuckerberg ou Musk, que cooptaram e se aliaram ao fascismo? Abandono as ruas vazias. A democracia vazia tornou-se indiferente ao futuro da humanidade. O mundo totalitário do século XXI não terá tortura, prisões políticas ou extermínio em massa. O mundo totalitário pós-Hannah Arendt, que tão bem descreveu o estado totalitário clássico, terá os algoritmos de persuasão certos. E alguns poucos, com cabeça de alce, para celebrar isso.   Luciana Bauer     *luciana bauer é advogada e fundadora do coletivo climático Jusclima. Professora de Filosofia do Direito e Direitos Climáticos. Foto de capa: Luciana Bauer Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.  

Eleições

Trump: a elite branca reage a um mundo multirracial

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Trump: a elite branca reage a um mundo multirracial
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Por RUDOLFO LAGO* do Correio da Manhã Tão essencial quanto "Como as Democracias Morrem", o segundo livro de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, "Como Salvar a Democracia", faz a análise perfeita do que acontece nos Estados Unidos com a nova vitória de Donald Trump. Da série de atos que Trump editou no seu primeiro dia após a posse, são aqueles voltados a conter a imigração o que melhor explicam como se deu a atual ascensão da extrema-direita norte-americana, personificada em Trump. Trata-se de uma forte reação da elite branca protestante ao crescimento de uma sociedade multirracial. Não é a primeira vez que esse tipo de reação acontece. A elite dos Estados Unidos parece só gostar de brincar de democracia quando essa democracia interessa somente a ela. Risco mundial Para o mundo, no entanto, o risco agora é que esse retrocesso coloca em perigo também outras democracias. Quando houve a primeira reação, como mostram Levitsky e Ziblatt, as democracias estavam ainda em formação. Não estavam amadurecidas. Multirracial No final do século 19, após a abolição da escravatura e a Guerra de Secessão, os Estados Unidos estavam caminhando para ser uma democracia multirracial. Na ocasião, a reação veio curiosamente do partido Democrata, que hoje defende os direitos civis. Eles impediram o avanço. Os republicanos hoje adotam discurso supremacista Sociedade americana se torna multirracial | Foto: Fotos Públicas   Ao longo do século 20, o quadro mudou. Os Democratas adotaram a defesa multirracial, especialmente depois da década de 1960, e os Republicanos é que foram se tornando supremacistas. O grande problema hoje é que mais ainda a sociedade dos Estados Unidos deixou de ser branca e protestante. Além da população negra, importada à força na escravidão, há hoje a pressão dos migrantes, do México e outros países latinos, mas também de países árabes e orientais. O auge do triunfo dessa nova sociedade multirracial talvez tenha sido a eleição de Barak Obama. Para a elite branca, impensável um presidente negro com esse nome. Minorias De acordo com um notícia publicada pelo Daily Mail em 2011, portanto há mais de dez anos, o número de crianças nascidas não-brancas já teria ultrapassado as brancas. Elas já são a maioria, estima-se, desde 2020. Cerca de 44 milhões da população fala espanhol. Força Os Estados Unidos têm uma grande quantidade de ferramentas contramajoritárias. Ou seja, aquelas que permitem vitórias mesmo contrárias ao sentimento da maioria. O Brasil também as têm. Nosso Senado, por exemplo, tem modelo contramajoritário. Defesa Essas ferramentas contramajoritárias até existem para proteger as minorias. O problema é que, nos EUA, elas têm funcionado para impor a vontade de uma elite que não mais representa o desenho da sociedade. Um país governado pela minoria não é uma democracia. Europa No fundo, é essa mesma pressão multirracial que explica também a ascensão da direita na Europa. O risco é que há hoje uma organização planetária desses movimentos. Que pressiona outros países. No Brasil, o risco não estaria na pressão migratória. Mas na ascensão social.     *Rudolfo Lago é jornalista do Correio da Manhã / Brasília, foi editor do site Congresso em Foco e é diretor da Consultoria Imagem e Credibilidade Publicado originalmente no Correio da Manhã Foto de capa: Trump: decretos são chave da reação supremacista |GOP/Fotos Públicas Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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