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A VIDA NUMA CARTA

A VIDA NUMA CARTA

Artigo por RED
22/10/2024 13:00 • Atualizado em 23/10/2024 16:16
A VIDA NUMA CARTA

Por NUBIA SILVEIRA*

Ocean Vuong, poeta norte-americano, nascido no Vietnã, onde viveu poucos anos, lançou o seu primeiro interessante e comovente romance, em 2020. Sobre a terra somos belos por um instante (Editora Rocco, 219 páginas) foi escrito em forma de carta. Uma carta endereçada à sua mãe, Rose, que jamais a leria. Ajudado pela ficção, Vuong conta como ele, sua mãe e avó materna, Lan, viveram nos Estados Unidos, aonde chegaram, vindos de um campo de refugiados nas Filipinas.

Lan casara com um soldado norte-americano, durante a guerra. Os dois se encontraram em Saigon. Paul não falava vietnamita, sabia apenas algumas palavras, o mesmo acontecia com Lan, que não sabia nada de inglês. Vuong explica a atração de um pelo outro, por serem ambos naturais de áreas rurais em seus países. Viveram felizes até Paul receber uma carta da família, informando que a sua mãe estava muito doente. Um inocentão, Paul caiu nas armadilhas da mãe e do irmão. Foi ficando nos Estados Unidos. Os anos passaram, a guerra terminou e ele não pode voltar para a sua família mista.

Com a tomada de Saigon pelos vietcongs e vietnamitas do Norte, Lan, as filhas, o genro e o neto precisaram abandonar o país. Rose, filha de um estrangeiro, era mais clara que seus compatriotas. Por isto, chamada de menina-fantasma. As crianças da aldeia corriam atrás dela, gritando: “Tirem o branco dela”. Fugiram com a ajuda da Cruz Vermelha, que deu notícias deles a Paul, já casado com outra mulher havia oito anos.

Vuong apresenta-se para mãe, na longa carta que lhe escreve: “Eu tenho vinte e oito anos, 1m62 de altura, 51 quilos. Sou bonito de exatamente três ângulos e horrível de todos os outros. Estou escrevendo para você de dentro de um corpo que era teu. O que é o mesmo que dizer: estou escrevendo como um filho”.

A família vietnamita se instalou num bairro pobre de Hartford, em Connecticut. Aos seis anos, Vuong começou a frequentar a aula de inglês para estrangeiros. Com seu pobre vocabulário vietnamita e o inglês rudimentar passou a exercer a função de intérprete da mãe e da avó. O pai abandonou-os. Quando não entendia o que elas queriam, inventava histórias. Estava acostumado a ouvir as que Lan lhe contava sobre a guerra, os costumes vietnamitas e a vida numa aldeia rural, em que plantavam e colhiam arroz, a base da alimentação do povo.

Um determinado dia, Vuong e Rose foram à loja de departamentos da Sears. Uma funcionária loira, achando que sua mãe era norte-americana, branca e linda, perguntou-lhe se o menino era seu filho ou adotado. Rose, com seu “inglês mutilado”, não conseguiu se comunicar. Vuong, sentindo que dominava o idioma, respondeu:

– Não senhora. Esta é a minha mãe. Eu saí da bunda dela e eu amo muito ela. Eu tenho sete anos. Ano que vem vou fazer oito. Eu estou bem, e você? Feliz Natal Bom Ano Novo.

O escritor explica que, nas conversas entre mães vietnamitas e seus filhos, sobre o nascimento deles, jamais referem os genitais femininos. Por causa deste tabu, Rose sempre lhe dizia que ele havia sido do seu ânus.

Ao nascer, no interior do Vietnã, Vuong recebeu do xamã, que lhe deu o primeiro banho, o nome que deveria carregar por toda a vida. Um nome que significava Líder Patriótico da Nação. Anos mais tarde, nos Estados Unidos, Rose decidiu mudar o nome do filho para Ocean, ao descobrir o oceano, uma imensidão de água. Durante a infância ele foi chamado de Cachorrinho. Supersticiosa, a avó lhe dera este apelido.

“Os espíritos malignos, vagando pelo local em busca de crianças saudáveis, bonitas, ouviriam o nome de algo medonho sendo chamado para o jantar e passariam por cima da casa, poupando a criança. Amar algo, portanto, é dar a ela o nome de algo tão sem valor que pode ser deixado incólume – e vivo. Um nome, tênue como o ar, pode também ser um escudo. Um escudo de Cachorrinho.”

O choque entre culturas, a comunicação truncada pelo não domínio do idioma provocavam situações hilárias, confusas e surpreendentes.

Vuong, ao longo do texto, fala com sua mãe. Conta-lhe o que acontece no presente. Recorda-a de fatos passados, como os tapas que ela costumava lhe dar e o bule de cerâmica que jogou contra ele. Também, recorda o conselho que lhe repetia toda vez que saiam à rua: “Lembre-se, não chame a atenção dos outros para você. Já basta você ser vietnamita”.

Aos 14 anos, Vuong conseguiu seu primeiro emprego, numa fazenda de tabaco. Não contou para a mãe, porque precisava pedalar por uma hora para chegar ao local de trabalho. Lá conheceu imigrantes ilegais e legalizados e fez amizade com Trevor, filho de Buford, dono das terras. A forte relação entre os dois percorre o livro até o final, quando Paul, Rose e Ocean viajam ao Vietnã para enterrar as cinzas de Lan em sua aldeia Go Cong.

Quando tinha 15 anos, Trevor fraturou o tornozelo. Para combater a dor que sentia, lhe deram oxicodona, que o tornou um dependente químico. Vuong não se omite e denuncia: “A oxicodona, produzida em escala comercial pela primeira vez pela Purdue Pharma, em 1996, é um opioide, basicamente heroína em forma de comprimidos. (…) Desenvolvida inicialmente como analgésico para pacientes com câncer passando por quimioterapia, a oxicodona, tanto a original quanto as genéricas, logo passou a ser receitada para todo tipo de dor no corpo: artrite, espasmos musculares e enxaquecas”.

Ocean Vuong escreve com a delicadeza de um poeta. Inclusive as cenas doloridas, como a morte de sua avó, são descritas de uma forma suave, que não agride o leitor. Em um momento apenas, precisei parar para repensar o que ele estava contando. Fiquei chocada com a cena descrita. Não pelas palavras usadas, mas pela ação, comum entre os vietnamitas. Outras cenas fortes, ao contrário de me impactar, me sensibilizaram. Uma delas foi a da troca de segredos entre mãe e filho.

Sobre a terra somos belos por um instante é um livro comovente, que nos leva por dois mundos diferentes. Nos mostra a realidade de um país em guerra e a pobreza e o preconceito existentes num país rico e desenvolvido.

*Nubia Silveira é jornalista

Foto: Divulgação

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