Artigo
O marxismo e as universidades
RED
Por MICHEL GOULART DA SILVA*
Os meios acadêmicos parecem ter escolhido o marxismo como um inimigo a ser combatido. Esse processo parece ter se intensificado nos últimos anos. Enquanto autores afinados com o nazismo ou com a extrema direita gozam de espaço e até mesmo servem de base para as teorias pós-modernas, como é o caso de Martin Heidegger, declara-se que o marxismo está ultrapassado, que possui uma natureza autoritária, que não é capaz de analisar fenômenos da cultura, além de outras acusações. Criam-se as mais variadas explicações para impedir que os jovens acadêmicos tomem contato com o marxismo e, caso se disponham a fazê-lo, tenta-se garantir que absorvam leituras permeadas pelos mais variados preconceitos e incorreções. Nesse cenário, observa-se também que setores políticos costumam falar em uma infiltração ou mesmo em um pretenso domínio do marxismo nos meios acadêmicos, o que prova a incapacidade de análise ou mesmo o grau de alucinação da extrema direita.[1]
Os poucos intelectuais presentes no meio acadêmico que se reivindicam inseridos na tradição marxista raramente fazem um efetivo combate contra as ideologias reacionárias que permeiam universidades e centros de pesquisa. Esses intelectuais, em sua maioria, apresentam o marxismo como uma das possíveis formas de interpretação da realidade, relativizando a produção do conhecimento e colocando-o no mesmo nível das correntes burguesas. Dentre os acadêmicos que reivindicam o marxismo são raros os que possuem uma efetiva prática política; quando muito o fazem dentro dos limites de seu próprio sindicato (e às vezes nem isso). O marxismo acadêmico, com raríssimas exceções, se insere nos muros das universidades, sem questionar a natureza reacionária do ambiente acadêmico e se colocando como mero observador da luta de classes. Nas universidades, é comum ver “personagens que, não podendo exercer a verdadeira função desbravadora que compete à ciência, acolhem-se à sua sombra, apropriam-se dos benefícios sociais e das honrarias acadêmicas que propicia”.[2]
Existe um absoluto isolamento da universidade em relação à luta política concreta dos trabalhadores contra o capitalismo. Os intelectuais pós-modernos, mesmo os que se dizem progressistas, são absorvidos pelas estruturas reacionárias dos espaços acadêmicos, tornando-se reprodutores da exploração de classe que se expressa nessas instituições. Quanto aos marxistas acadêmicos, em sua maioria, se limitam a um combate teórico em polêmica com seus pares dentro das universidades e, em paralelo, criam todo o tipo de explicações para neutralizar, criticar ou mesmo desqualificar as organizações revolucionárias dos trabalhadores. Criam-se polêmicas que não tem qualquer relação com a realidade concreta da classe e apresentam-se soluções reformistas para as contradições da sociedade.
Os representantes da intelectualidade acadêmica, inclusive a maior parte daqueles que se reivindicam marxistas, se colocam intencionalmente fora da luta de classes, muitas vezes até mesmo negando sua condição de trabalhadores. Numa postura messiânica, muitos desses intelectuais se consideram mentores que poderiam levar os trabalhadores ao caminho que consideram correto para a prática de suas lutas. Outros destes intelectuais resumem a exploração do trabalho e a luta de classes ao que chamam de “disputas de narrativas”, onde fragmentos identitários buscariam uma maior representatividade na sociedade. Os intelectuais acadêmicos procuram se isentar da luta de classes e da construção de uma estratégia política que coloque como centro a derrubada do capitalismo e de todas as instituições que o defendem. Mesmo que se apresentem como “promotores do avanço científico e técnico em geral, eles se identificam com os interesses do capital, uma vez que é o movimento geral deste que determina as prioridades acadêmicas”.[3]
Os intelectuais acadêmicos, ao limitarem sua atuação ao espaço universitário, são cooptados pelo elitismo acadêmico, considerando-se afastados ou mesmo acima de qualquer tipo de conflito e, por isso, os únicos capazes de indicar os caminhos corretos. Essa intelectualidade assume um completo preconceito em relação ao trabalho manual, como se os operários ou outras categorias de trabalhadores não tivessem capacidade para analisar e entender a exploração a que estão submetidos. Semeiam a crença de que somente os intelectuais acadêmicos, enclausurados em suas cátedras, poderiam olhar para os conflitos da sociedade e, a partir desse olhar que se pretende científico e objetivo, propor saídas que, necessariamente, passam pela conciliação entre as partes em luta.
Essa intelectualidade acredita na ideia de que o conhecimento científico é somente aquele legitimado pela burocracia acadêmica. Essa institucionalização do conhecimento científico faz com que os intelectuais acadêmicos sejam vistos como donos da verdade ou os únicos autorizados a discutir essas verdades. Essa é uma perigosa visão que faz com que somente uma elite esclarecida seja considerada dona do conhecimento científico, ignorando que este é uma produção social coletiva, datando de muitos séculos, que em muito ultrapassa um conjunto de artigos publicados em periódicos reconhecidos pelas instituições do Estado. Essa postura expressa, no campo científico, a decadência histórica do capitalismo, que “se manifesta como processo de fragmentação do conhecimento que o segmenta profundamente da realidade e de si mesmo”.[4]
Os fenômenos da realidade existem concretamente e sua análise, ainda que necessite de um domínio do método científico e do trabalho de pesquisa, não depende exclusivamente de um diploma universitário. Em milhares de anos a humanidade produziu e acumulou uma grande quantidade de conhecimentos, que deveriam poder ser acessados por quaisquer pessoas a qualquer momento, para compreender os mais variados fenômenos da realidade em que estão inseridos. Os métodos de pesquisa não são uma exclusividade das instituições universitárias, mas o produto de milênios de investigações, experiências e sistematizações realizadas pela humanidade. O papel central das universidades está em organizar, sistematizar e difundir esses conhecimentos, promovendo o desenvolvimento da produção do conhecimento.
Esses conhecimentos, independente da área de pesquisa, quando colocados nas mãos dos trabalhadores podem ser revolucionários. Vaso venham a ser efetivamente apropriada pela classe revolucionária, a produção do conhecimento pode não apenas desvelar os fenômenos da realidade, como superar os limites impostos pelo elitismo acadêmico e pelas necessidades do lucro capitalista. Nessa perspectiva, pode-se analisar os fenômenos em sua materialidade, não se colocando no círculo vicioso das “disputas de narrativas”, e compreendendo a impossibilidade da neutralidade dentro de uma sociedade dividida em classes antagônicas. Portanto, assumindo uma perspectiva revolucionária,
“[...] os marxistas colocam os sábios diante de suas responsabilidades. Eles não são a nova vanguarda da humanidade. Sua qualidade de sábios não lhes dá, em política, nenhuma competência particular. Mas importa-lhes, com a autoridade imensa que será então a deles, tomar suas responsabilidades – e por isso mesmo seu lugar no combate, ao lado da classe operária, por uma sociedade socialista sem classe”.[5]
Para os marxistas, não pode haver o apego às instituições existentes do Estado. O espaço acadêmico na sociedade capitalista está ocupado em produzir e colaborar com a ideologia das classes dominantes, sendo um entrave para os efetivos avanços científicos socialmente necessários. Esse problema não se deve a uma questão subjetiva dos pesquisadores acadêmicos ou dos gestores das universidades, mas à situação concreta do capitalismo, marcado pela “transformação das forças produtivas, das quais a ciência faz parte, em forças destrutivas”.[6]
O espaço universitário expressa as contradições da sociedade capitalista e, com mediações das mais variadas, a exploração de classe da burguesia. Entende-se que é a sociedade “que cria a estrutura de meios e fins, que relaciona, historicamente, a instituição com as necessidades sociais por ela atendidas”, determinando, “por sua estrutura e evolução típicas, os ritmos das instituições”. [7] Para responder aos interesses do capital, a universidade, ainda que pública e gratuita para os estudantes, precisa ser um espaço de liberdades democráticas restritas e que controla a participação política de trabalhadores e de estudantes. Esse modelo de universidade tem como tarefa mais evidente a formação de força de trabalho, também cabendo a essas instituições auxiliar o capital no processo de produção de mercadorias, desenvolvendo não apenas novas tecnologias, como também métodos de pesquisa e diagnósticos sobre diferentes aspectos da sociedade.
Os diferentes sujeitos que constroem a universidade devem discutir os problemas das instituições para além dos problemas conjunturais, compreendendo sua relação intrínseca com o sistema econômico. Os intelectuais marxistas podem colaborar nesse processo, na medida em que partem de um referencial teórico que coloca no centro da análise as contradições intrínsecas da sociedade e necessidade de sua superação. Esses setores precisam organizar-se como parte da classe trabalhadora no sentido de lutar por uma nova universidade, que expressa as transformações econômicas e políticas de uma nova sociedade.
[1] Esse suposto domínio do marxismo nos meios acadêmicos não tem comprovação na realidade. Um exemplo pode ser dado ao se analisar os artigos publicados na Scielo, uma das principais plataformas de periódicos do mundo e central para o contexto brasileiro. Nessa plataforma, cujo texto mais antigo remonta a 1921, considerando a presença de determinados termos em títulos, palavras-chave e resumos, “marxismo” aparece em 797 e o nome “Karl Marx” em 186. Comparativamente, “Max Weber” aparece 255 vezes, “Freud”, 1.048 e “Einstein”, 1.770. O mesmo ocorre com uma rápida busca no banco de teses e dissertações da CAPES, que disponibiliza trabalhos cuja data mais antiga é 1987. Nesse espaço de difusão das pesquisas realizadas na pós-graduação, “marxismo” aparece 1.339, “Karl Marx”, 554, “Darwin”, 538, “Freud”, 3.149, e “Einstein”, 1.427. Nesta plataforma, a expressão “materialismo histórico” aparece 6.842, o que até poderia parecer uma grande quantidade, mas que ainda é inferior a outras concorrentes teóricas, como “fenomenologia”, que aparece 7.992, e “estruturalismo”, que aparece 27.593. Esses dados estão inseridos num universo de 1,2 milhões de trabalhos, no caso da Scielo, e 1,6 milhões, no caso do banco da Capes, mostrando que o marxismo como objeto e como referencial teórico não ocupa sequer 0,5% das pesquisas acadêmicas difundidas no Brasil. Cabe ainda destacar que nesses números não se leva em conta uma análise do conteúdo, ou seja, ainda que faça menção a Marx e ao marxismo, muitos desses trabalhos podem ter posturas críticas a essa corrente e a esse pensador. Os dados dessas buscas se referem ao mês de dezembro de 2024.
[2] Álvaro Vieira Pinto. Ciência e existência: problemas de filosofia da pesquisa científica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 255.
[3] Maria de Lourdes Pinto de Almeida. A pesquisa acadêmica no século XXI. Campinas: Mercado de Letras, 2012, p. 81.
[4] Osvaldo Coggiola. Universidade e ciência na crise global. São Paulo: Xamã/Pulsar, 2001, p. 57.
[5] Gerárd Bloch. Ciência, luta de classes e revolução. São Paulo: Palavra, 1980, p. 71-2.
[6] Gerárd Bloch. Ciência, luta de classes e revolução. São Paulo: Palavra, 1980, p. 131.
[7] Florestan Fernandes. Universidade brasileira: reforma ou revolução? São Paulo: Expressão Popular, 2020, p. 153.
* Michel Goulart da Silva é doutor em história pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e técnico-administrativo no Instituto Federal Catarinense (IFC)
Ilustração da capa: Karl Marx - Redes Sociais
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