Por LINCOLN PENNA*
O governo do presidente Lula se encontra enredado por conta de um Parlamento que em nome de exercer a sua autonomia tornou refém o governo federal. Além de abocanhar um volume expressivo do orçamento da União através de emendas parlamentares destinadas aos redutos eleitorais e familiares à revelia de um programa de investimentos estratégicos e emergenciais por parte de quem deve governar os destinos desses recursos e dentro de um programa governamental, esse Poder Legislativo se arrogou agir para priorizar objetivos nem sempre em harmonia com o Poder Executivo, algo que agride frontalmente o presidencialismo.
A finalidade do Parlamento consiste em legislar e fiscalizar as ações do Poder Executivo, jamais usurpar os objetivos que devem ser exclusivos de quem exerce a gestão pública representada pelos governantes, sejam eles da União ou de estados federados e dos que respondem pela gestão municipal, respectivamente os governadores e prefeitos. O que temos assistido é uma governança partida ao meio na qual o Executivo nacional tem se tornado refém de uma base oposicionista que detém a faculdade de gerenciar grande parte de iniciativas nem sempre consoantes com a presidência da República, algo que só aconteceu com a instituição do Parlamentarismo quando da posse na presidência do vice João Goulart, em setembro de 1961, só retomando as suas prerrogativas presidencialistas por ocasião do plebiscito de janeiro de 1963. Foram 18 meses de um recurso usado para limitar os poderes de Jango, alvo de forte oposição de setores ultraconservadores que se integraram ao golpe de 1964.
O que ocorre desde o governo anterior de Jair Bolsonaro e se manteve e tem sido incrementado por razões políticas e ideológicas no atual governo é, de fato, uma cogestão do Executivo com o Legislativo em matérias que devem ser bem distinguidas se acatarmos os termos constitucionais. Situação que fragiliza a nossa já precária democracia, que vem se sustentando desde o término do regime ditatorial apenas ao nível da formalidade legítima das instituições políticas, sem investir no que se refere ao atendimento aos pleitos das camadas sociais mais vulneráveis.
O funcionamento dessa governança compartilhada tem causado uma semiparalisia no que diz respeito a iniciativas concretas voltadas para a implantação não somente de medidas previstas nos propósitos programáticos do governo federal, como tem dado prevalência a embates eminentemente protelatórios em nome de princípios supostamente democráticos, mas claramente direcionados para o campo ideológico. As pautas mais retrógradas visam exclusivamente instituir mecanismos que tendem a levar o país para um passado onde se cultuavam os valores tradicionalistas e, portanto, evocar uma política regressista.
Historicamente os representantes do Poder Legislativo tendem a ser mais conservadores na medida em que isso reflete a composição socioeconômica da população brasileira eleitora, sem levar em conta o peso do poder de financiamento eleitoral que mesmo após a adoção das verbas eleitorais para os partidos e seus candidatos continuam a favorecer aqueles que possuem fontes indiretas para engordar as suas campanhas. Assim, em geral, os eleitos para cargos executivos, com as exceções de regra, costumam ser mais atinados e de alguma forma mais comprometidos com as demandas do eleitorado mais necessitado de suas decisões.
Há, no entanto, algo a ser acrescentado nesse imbróglio Trata-se do ressurgimento da alternativa fascista. É ao mesmo tempo um novo surto do fenômeno fascista, que como fenômeno pode assumir formas distintas daquelas que surgiram nos anos 20 e 30 do século XX, acrescido de valores que dizem respeito à cultura política brasileira que foi sedimentada ao incorporar valores vindos da tradição escravocrata, do patrimonialismo e da resistência às mudanças como geradoras de transformações mais profundas nas estruturas arcaicas brasileiras, diante das quais reagem para mante-las intactas.
O enfraquecimento do Estado em seu papel de garantidor da ordem pública amparado por outro lado da tarefa fiscalizadora do Poder Judiciário representado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na defesa da Constituição forma o alicerce que sustenta a democracia no que diz respeito a garantias do cidadão e do cumprimento das leis no país. Limitar as funções do Executivo ou questionar sistematicamente a função corretiva do STF a ponto de cogitar intervenções nesse Poder é, objetivamente, tentar da forma mais solerte abolir o Estado Democrático de Direito. E isso não se faz por pura ignorância ou atitude impensada. Nunca é demais alertar que nem tudo na vida pública acontece por acaso. De uns tempos para cá o uso da inteligência a serviço de golpes de toda sorte tem sido cada vez mais usual em várias situações e esse uso ocorre na criação de situações que venham a favorecer objetivos inconfessáveis. Mais recentemente com a inteligência artificial de mão dupla, pois favorece o encontro de soluções que atendam a humanidade, porém pode ser utilizada para fins que atentam contra essa mesma humanidade a depender dos objetivos que se tenha em sua manipulação.
Deixar de lado o perigo de um retrocesso alinhado a teses totalitárias desse fenômeno inerente ao capitalismo em crise é positivamente contribuir ainda que não desejando para o ressurgimento de um novo retrocesso. Haja vista o que vem acontecendo nos primeiros dias de governo de Donald Trump para que tenhamos consciência dessa ameaça. Longe de ser um recurso meramente narrativo e muito menos a evocação de uma teoria da conspiração, o que se trata é a possibilidade real de uma nova derrota dos preceitos e dos valores democráticos, que no Brasil nos levaria ao mais desastroso destino em nome de fantasmas inexistentes.
Trump tem investido contra a autonomia das universidades, inclusive das mais importantes e consagradas do país dentro da lógica que preside o seu universo particular de que esses centros acadêmicos têm produzido quadros contestatórios ao que ele apelida de democracia americana. Na verdade, é o mesmo argumento do que se convencionou chamar de “marxismo cultural”, isto é, uma estratégia para difundir via os ambientes culturais e artísticos, vale dizer, os núcleos de formadores de opinião, onde entram as universidades, aqueles que contestam o seu governo. Basta lembrar que o fascismo destilava ódio à inteligência e ao saber.
Dessa maneira, dizer que o fascismo está à espreita não é nenhum exagero. Ele não precisa usar nome e sobrenome porque se adequa a situações caóticas e a configurações nas quais se situam os impasses e, com isso, subverte danosamente a democracia e a golpeia. Para tanto, usam apelos aparentemente justos para poder contar com a insegurança da cidadania, tais como a corrupção sem freios, a violência generalizada e a necessidade de um poder forte e capaz de dar tranquilidade ao povo, não importa como.
Afinal, foi dessa maneira e com outras especificidades que na Itália e na Alemanha devastadas pela Grande Guerra (1914-1918) surgiu o primeiro grande surto fascista, que não se limitaria ao período de entreguerras, mas como fenômeno político para convencer as grandes massas de populações submetidas às crises periódicas do capitalismo, seu surgimento não está descartado. Possibilidade que se torna ainda mais plausível quando não se investe na formação de uma consciência cidadã e se desdém dos valores minimamente democráticos como se fossem propriedade burguesa, Ledo engano aos que assim pensam.
A produção do caos é uma artimanha que o grande capital lança mãos para atemorizar as camadas médias e os que fazem parte do mundo do trabalho com vistas a não terem alternativa senão se unirem à soluções autoritárias na perspectiva de que o uso da força contra o fantasma de uma opressão muitas das vezes alimentada pelos que apostam na cooptação de parcelas do povo por vezes impotente diante de seguidas ameaças. Essa ingenuidade mal sabe que o que está por vir a ser verdadeiramente a instalação do terror baseado num poder acima de tudo e de todos, por sinal evocado não faz muito tempo entre nós
*Lincoln Penna É Doutor em História Social; Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos).
Foto de capa: : SA-Kuya
Uma resposta
Parabéns. Excelente texto. Quem conhece a história consegue prever aquilo que se anuncia claramente, mas que a maioria ingenuamente se nega a perceber.