A Era da Indiferença

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morte na sociedade capitalista

Por JORGE BARCELLOS*

Chama a atenção o detalhe comum. Tanto os demais corredores, como os turistas que faziam a trilha no vulcão, continuaram suas atividades como se nada tivesse acontecido.

“No fundo, no fundo, o olho não seria destinado a ver, mas a chorar.”
Jacques Derrida

Dois fatos recentes têm um detalhe em comum que me chamou a atenção. O primeiro foi no dia 7 de junho, sábado, quando o estudante João Gabriel Hofstatter De Lamare morreu após sofrer um mal súbito durante a Maratona Internacional de Porto Alegre. Ele comemorava seu aniversário de 20 anos, participava do primeiro dia de provas e teve um mal súbito na meia maratona. O segundo foi no dia 24, terça-feira, quando a brasileira Juliana Marins, de 24 anos, foi encontrada morta depois de cair durante uma trilha na sexta-feira anterior (20). Eles me chamaram a atenção não só pelas mortes terríveis que nos sensibilizaram, mas pelo detalhe comum que, após, segundo relatos, tanto os demais corredores, como os turistas que faziam o percurso no vulcão, continuaram suas atividades como se nada tivesse acontecido.

Penso nisso e lembro das cenas de seriados policiais. Sempre que alguém morre, vemos cenas de isolamento do local, investigadores concentrados em coletar evidências, analisar o lugar e interrogar suspeitos. Tudo é interrompido no lugar para procurar pistas e reconstituir o que levou ao crime ou acidente. Berna Reale (disponível aqui) aponta suas regras para estas situações. Tanto no caso do corredor da maratona, como no da viajante no vulcão, ela sugere que, ao ser constatada a situação, primeiro, tudo ao redor deveria imediatamente parar em sinal de respeito às vítimas; segundo, as autoridades deveriam ter isolado o local, o que envolve, entendo, suspensão de quaisquer atividades no espaço e as providências necessárias iniciadas. Aqui reflito sobre a ausência de interrupção tanto da corrida como dos passeios, o mínimo para as autoridades, sejam policiais, legistas ou socorristas, fizessem seu trabalho. Falarei adiante de outra razão, mais importante, para isso.

Parar tudo quando alguém morre

Reale também afirma que tanto o silêncio é importante para esse trabalho, como a necessidade de evitar alterar a cena do lugar. Não consigo imaginar que, com um morto no meio da pista, os demais corredores continuassem seu percurso, como no alto de um vulcão, continuassem os viajantes e mochileiros com seu burburinho e caminhada, mesmo com a consciência de que ali estava uma vítima da tragédia e que alguns deles tenham, inclusive, ajudado com imagens e primeiras comunicações com familiares. É que sou do tempo em que, se morria um aluno da escola, as aulas eram suspensas. Era um sinal de luto coletivo. Há histórias de outros corredores que morreram em maratonas, como Claire Squires, que morreu durante a Maratona de Londres, sendo a décima primeira participante a falecer desde o início da prova em 1981, assim como Melanie Bohner, que em 2024 morreu após cair durante uma escalada no Monte Anak Dara, em Sembalun, Indonésia. Esses casos já seriam suficientes para indicar procedimentos e cuidados a serem tomados pelas autoridades, espécie de manual de segurança holística que integrasse bem-estar, segurança e informação em práticas de caminhadas em qualquer lugar ou maratonas, o que aparentemente foi insuficiente nas duas ocasiões.

Se as pessoas conseguem continuar realizando suas atividades com um corpo, morto ou na iminência da morte, em seu raio de visão, é porque as linhas de tensão entre nós e o Outro se alteraram de alguma forma. Essas atitudes mostram como nos relacionamos com a morte, e entendo, fazem parte de uma forma patológica de viver o presente, sintoma da erosão da comunidade e produto do narcisismo coletivo. Em obras como Morte e Alteridade (Vozes, 2020), O desaparecimento dos rituais (Vozes, 2021), Capitalismo e impulso de morte (Vozes, 2021) e O Coração de Heidegger (Vozes, 2023) o filósofo coreano Byung0-Chul Han traz elementos que possibilitam ampliar o tema da subjetividade capitalística diante da morte.

A morte exige rituais

O tema tem origem no clássico de Philippe Ariès, História da Morte no Ocidente (Saraiva, 2012). Nele, o comportamento do homem diante da iminência da morte ou dela própria fala muito do tipo de sociedade em que se vive. Se no passado, o moribundo do século XIX não tinha pressa em morrer, com uma morte aguardada no leito de uma cama ao lado da família, mediada por ritos como o do lamento e o perdão dos companheiros até o sacramento, seguida da morte, cortejo e enterro, isto significava que a morte era algo público dentro de um lar com ritos que falavam da perda de um ente querido. A sociedade era familiarizada tanto com a ideia de morrer como com a morte. A partir do século XIX, devido à expansão urbana, os enterros deixam de ser no entorno das igrejas e passam para cemitérios, morre-se em hospitais e não em casa, a cremação se torna popular, isto significa que nos afastamos progressivamente da morte.

Han aprofunda essa tese, passando do campo histórico para o filosófico, o que permite explicar as cenas dos corredores que persistem na maratona como as dos viajantes que continuam a trilha do vulcão, mesmo com a proximidade de um corpo morto no lugar, com o modo como a sociedade capitalista trata a morte. Han, no Desaparecimento dos Rituais, diz que “a sociedade da produção é dominada pelo medo da morte. O capital opera como uma garantia contra a morte. É imaginado como tempo acumulado, pois com dinheiro se pode pôr outros para trabalhar por si, ou seja, comprar tempo. O capital infinito cria a ilusão de um tempo infinito. O capital trabalha contra a morte como prejuízo absoluto. Banir a morte da vida é constitutivo da produção capitalista. Separar a vida da morte é justamente nisso que consiste a operação do econômico – e resta uma vida residual legível a partir de então apenas nas expressões operacionais do cálculo e valor. Devolver a vida à morte é em que consiste a operação do simbólico” (p.82-83), citação inspirada em Jean Baudrillard, de seu A troca simbólica e a Morte.

Quando se separa a vida da morte

Esses viajantes e corredores que continuam em suas atividades, ao contrário das sociedades arcaicas, separaram a vida da morte. Passam por ela e não são afetados. No passado, rituais de iniciação e sacrifício marcavam a troca simbólica com a morte, e hoje, causa riso escondido a postagem nas redes sociais que sugere que Juliana morreu no vulcão como outra forma dos habitantes do local realizarem o sacrifício de seus antepassados. A metáfora não é totalmente falsa porque não se trata somente do que fazemos enquanto há, ao lado, uma morte real, mas como nossa ausência expressa a morte simbólica que há diante de nós. Nesse sentido, a postagem das redes sociais exige uma pergunta: mas quem faz o sacrifício? Simbolicamente, hoje, do modo como encaramos a morte, são esses passantes sem ritual algum. Se fizermos como no passado e prestarmos atenção na morte, faríamos um gesto perigoso para a sociedade hoje existente, pois na sociedade capitalista, é preciso estar voltado para o trabalho e a produção e não para a inatividade que o respeito aos mortos exige. Por isso também o suicídio é a negação mais radical da sociedade de produção, pois a desafia, exatamente como Jean Baudrillard fala do desafio do terrorismo islâmico ao poderio americano. Hoje o imperativo é que é preciso deixar que a relação entre a vida e a morte seja feita pela produção capitalista. Nosso sacrifício de “não parar” é a fuga à obrigação simbólica: a corrida não pode parar, como também os passeios no vulcão. “Viver não significa hoje outra coisa do que produzir” (p. 89).

Em O coração de Heidegger, Han reconstrói o pensamento do filósofo a partir do conceito de “Stimmung”, estado da alma, relacionando temporalidade, angústia e autenticidade. É, portanto, uma reflexão sobre a natureza do ser, tema central da filosofia, que em Han assume diversas expressões. Na seção que dedica ao luto e ao trabalho do luto, Han fala sobre a morte e sua relação com o desejo de ser imortal. “A morte obriga o homem a assumir o aí. Somente na corrida para a morte o homem se torna ser-aí” (p. 385). Isso significa que ser capaz de encarar a morte é ser capaz de realizar o luto. Os corredores que persistem na atividade enquanto há um cadáver ao seu redor não o fazem, exatamente como os viajantes que continuam seu passeio no vulcão. São incapazes de encarar o que a morte implica, uma tragédia que irrompe e interrompe a vida cotidiana. Elas fazem exatamente o que persegue o capitalismo, amortizam a dor como se fosse um investimento. Eles não param de capitalizar, de calcular enquanto um corpo já está morto ou na iminência da morte. “Por meio da superação, ela torna a morte rentável. Ela mata a morte.” Aqui, os tradutores lembram que o trabalho de luto, para Han, é retirado do contexto psicanalítico e inserido na filosofia de Hegel, outro apoio teórico do autor.

A necessidade do luto

O trabalho de luto generaliza, idealiza e interioriza a dor e a impossibilidade do ser que a morte representa. Nela, abrimos espaço na vida cotidiana para o outro e sua morte, que são lamentados, reprimidos e superados. Mas nem a metafísica pela qual Han analisa o trabalho de luto estava preparada para a dimensão indiferença, que a sociedade capitalista impõe. Se o trabalho do luto mata a morte porque a reelabora através dos ritos, o trabalho do capital a preserva pela indiferença.

Esquecemos a morte no capitalismo não pelo “trabalho de luto que devora o abismo que ameaça devorar tudo”, mas por uma economia dialética e superficial que coloca o produtivismo em evidência, o sublime objeto do passeio ou corrida acima da natureza. Mas, alerta Han, o trabalho do luto não pode ser excluído. Essa substituição superficial, espécie de autoconservação que o capital promove contra forças que nos aniquilam, como a morte, nos quer fazer sentir superiores à morte. Os viajantes olham a sublime visão que o vulcão provoca, como os corredores olham sua chegada na faixa final em primeiro lugar. É um uso da razão que “enfaixa a ferida da imaginação, cura, santifica a imaginação preenchida pelo medo da morte, evitando assim que a moldura se desfaça. Esse movimento dialético arruína a natureza, conduz o sujeito ainda mais fundo para a interioridade do ouvir-se falar, para o fantasma da “independência” absoluta” (p. 393). Não, aqueles que correm ou viajam não podem esconder a voz interior que diz que há um morto ali que merece respeito.

Se o “trabalho do luto produz um sujeito sem tristeza”, o trabalho do capital produz um sujeito triste. Todos nós entristecemos com a trajetória de Juliana Marins, acompanhamos o trágico e inexplicável relato de sua trajetória no vulcão, o que produz um sentimento de tristeza, forma de procuração não realizada: por que as autoridades não conseguiram salvá-la? Por que não havia equipamentos suficientes e necessários? Por que o parque sequer foi fechado (exceto dias depois) ao trânsito? Essa busca por razões é o lugar por onde se esvai a tristeza que sentimos por seu caso, exatamente como aquele que é incapaz de elaborar o luto. “É o que me dá vontade de chorar”, como diz Derrida, porque “as lágrimas liberam o sujeito de sua interioridade narcísica. Elas querem o “feitiço” que o sujeito lança sobre a natureza”, diz Han, inspirado em Adorno.

O capitalismo não quer a morte

O capitalismo não permite que nos abalemos com nada que não seja a produção. Choramos diante de um melodrama coreano, mas somos incapazes de parar para prestar atenção em alguém que está perdido em um vulcão ou morto na pista de corrida. Essas pessoas que continuam ali suas atividades não se abalam, não são capazes de escapar ao “princípio do eu” que rege o capital. Se sentimos verdadeiramente luto por aquelas mortes, devemos ser capazes de renunciar. “A renúncia repete em si um luto. É preciso transformar o luto em outro luto”, espécie de ruminar até a exaustão, diz Han, inspirado, desta vez, em Derrida, espécie de “reconciliação com a morte”. Não é possível ser insensível à morte do outro, não é possível ficar à distância.

Em Morte e Alteridade, Han trata da reação à morte, como a concebemos como extinção do eu e, para isso, usa a imagem notável de que a iminência da morte desperta o amor, empatia em relação ao outro que lhe promete sobrevivência. Han fala da consciência da mortalidade e tematiza a finitude partindo do drama de Ionesco, O rei está morrendo, a história de um rei moribundo que invoca a morte em protesto. “Todos vocês, incontáveis que morreram antes de mim: me ajudem. Digam-me como conseguiram morrer. Ajudem-me a atravessar a onda que vocês atravessaram. Como foi? O que lhes deu força?”. A história é a de um rei que se agarra a si mesmo, mas ela também não é o espelho invertido daqueles que passam pelos corpos sem vida de Juliana e de João, desses que no capitalismo “tudo que existe deve, segundo a estratégia de sobrevivência, tornar-se eu”?  Se frente à morte, o rei reage com representações narcisistas delirantes, essas não são da mesma natureza daqueles que assistem sem ver, a tragédia dos dois jovens? “A morte lhe parece o interiormente outro do eu. O eu cobre inteiramente tudo. Em todo o lugar, apenas eu” (p. 8), diz Han. É esse o lugar relegado aos passantes voltados para si mesmos e indiferentes à morte, verdadeira revolta contra a morte. “O outro é ou o espelho do eu, ou o não-eu que deve ser negado” (p. 9).

Voltar ao pó como metáfora

Enquanto o rei se agarra a tudo, Juliana não teve nada a que se agarrar. As condições inóspitas do vulcão não permitiam. Quando, ao final, ela se agarrava a uma pedra, o gesto é equivalente ao agarramento dos reis que, à beira da morte, “se agarram às paredes, às árvores, eles se agarram”: Ionesco diz que, “Ele tem o seu reinado inteiro em sua mão. Tudo isso é pó” (Han, p. 9). Talvez por isso, a imagem de Juliana no vulcão tenha tanta força, mais do que a do corpo de João estendido na pista de transporte. A metáfora do pó existe também na morte, é encontrada em textos religiosos e literários que sugerem que o corpo, após a morte, retorna ao pó do qual foi feito, imagem que está aí para nos lembrar da fragilidade da vida, da inevitável decomposição dos corpos, mas que também serve para nos lembrar da inevitabilidade do ciclo natural, imagem presente, por exemplo, nos sermões do Padre Antônio Vieira.

Han lembra que faz parte da revolta contra a morte esse se agarrar a tudo, como o rei. Contra a morte, os jovens se agarram a suas razões: estava já inscrito na corrida, ele morreu, que fazer? A vida continua. Outras razões: já estava com o passeio pago, a jovem morreu, alguém fará o serviço, o que fazer? Eles simplesmente, ao verem o corpo morto, simplesmente não param. Fazem isso porque, como o rei, frente à morte, são impotentes. “Nada e ninguém quer obedecer ao seu comando” (p. 10). Eles partilham do mesmo desejo de imortalidade do rei: “prometeram-me que eu só morreria quando eu mesmo o tivesse decidido” (p. 10). Por isso, eles não veem, ou fingem não ver, o corpo vítima da morte, seja no vulcão ou na maratona. Eles veem o morto, é claro, mas isso não os perturba em seu íntimo. É como se não o tivessem visto.

A invisibilidade dos mortos

Essa atitude é expressão da subjetividade capitalística, na visão de Han. Os mortos e moribundos são cada vez menos visíveis. Já havíamos alertado isso para os moradores de rua. Agora vemos se repetir no relato de que pessoas que estavam nas proximidades continuaram com suas atividades. A morte, contudo, não deveria ser algo para desaparecer tão facilmente. Diz Han: “Se, por ventura, não existir mais a fábrica, o trabalho está em toda parte. Se o sanatório mental desaparece, é porque a loucura se tornou normalidade. Com a morte se passa o mesmo. Se os mortos não são mais vistos, a vida está coberta por uma rigidez cadavérica. A vida se congela para sobreviver: ao recalcar a morte em sobrevivência, a vida mesma é apenas ainda uma sobrevida determinada pela morte.”

A economia capitalista é isso: ela vive de separar em nossa subjetividade, a vida da morte, criando a “vida-morta-viva”, mas o próprio Han é cuidadoso em relação ao conceito de morte que pretende invocar. Capitalismo e impulso de morte não é uma obra heideggeriana como as anteriores, pois no diálogo que estabelece com filósofos como Derrida, está preocupado com a metafísica da morte. Aqui, ele elabora sua visão a partir do impulso de morte freudiano, isto é, a partir de uma visão psicanalítica. Quer dizer, não se trata do campo do ser, mas do campo do desejo que o autor desenvolve o tema. Isto pode ser explicado porque as obras anteriores, especialmente O Coração de Heidegger e Morte e Alteridade, são estudos de formação; já Capitalismo e Impulso de Morte, por reunir estudos espaçados, é uma obra de divulgação. Han está preocupado em relacionar a destrutividade do capitalismo com o impulso de morte de Freud, mas não somente ele. ”A meta de toda a vida é a morte, de modo a retroceder; o inanimado já existia antes de existir o que é vivo”.

A apropriação da morte pelo capital

Colocado ao serviço do crescimento, o impulso de morte se torna força propulsora do capitalismo, afirma Han. “O capitalismo está baseado na negação da morte. O capital é acumulado contra a morte como prejuízo absoluto.  A morte cria a ocasião de produção e crescimento.” Adiante, Han completa: “O dinheiro acumulado confere ao seu proprietário um status de predador. Ele fica imunizado contra a morte. No plano psicológico mais profundo, persiste a crença arcaica de que a riqueza acumulada pode matar, a riqueza crescente de capital previne a morte” (p. 17).

Se o capitalismo tira sua força da morte, a quer substituir, por outro lado, a exposição ao perigo cobra um preço na indústria turística e esportiva. Vimos nas redes sociais e no noticiário as críticas à empresa contratada por Juliane, como vimos a disponibilização de segurança dos organizadores para a corrida em que participou João Gabriel. Ambos têm sua dose de responsabilidade nos eventos, ainda que pesem os argumentos de defesa. No capitalismo precário das regiões turísticas por onde passou Juliane, a falta de equipamentos e a precariedade de condições são da mesma natureza da precariedade dos serviços urbanos. Por que veríamos condições diferentes do trabalho precário que se manifesta em ambas as regiões? Por outro lado, os organizadores da Maratona de Porto Alegre garantem que exigências acima do padrão foram disponibilizadas para os corredores. Mas tais explicações sempre terminam colocando a culpa no destino, ou na vítima, não é mesmo? Nada é suficiente para prevenir a morte, assim como tudo é insuficiente para evitar o destino.

Matar a morte

Mas voltemos aos demais turistas e corredores. Se eles continuavam a fazer o que faziam mesmo com a morte de alguém ao redor, é porque já estavam participando da subjetividade capitalista que separa a morte da vida, que abole a revolta moral que acompanha a morte, pois esta revolta é mortal para o sistema capitalista. “Ao entrar a morte, a revolta mortal rompe o sistema capitalista que nega a morte, interrompendo a troca simbólica com a morte” (p. 23). Han inspira-se em Baudrillard, para quem ninguém, nem mesmo o sistema capitalista, pode escapar à obrigação simbólica de troca com a morte, simplesmente porque “em reação ao desafio múltiplo da morte e do suicídio, o sistema deve matar a si mesmo”. A revolta dos mortos não é perigosa porque é inspirada pela morte – e aquele que corre ou continua no vulcão não está morto – ela é perigosa porque pode destruir o sistema capitalista. “Toda revolução política deve anteceder uma revolução de consciência que restitua a morte à vida. A rejeição da morte destrói o presente vivo”, diz Han. “Tudo é nivelado em forma de consumo e de gozo. Negatividades como a dor são postas de lado em nome da positividade da satisfação das necessidades. A morte é a negatividade por excelência. A coação de produção a abole. A vida que nega a morte, nega a si mesma. Apenas uma forma de vida que devolve a morte à vida nos livra do paradoxo da morte-vida: somos demasiado vivos para morrer, e demasiado mortos para viver” (p. 30).

Escutar o outro

Entretanto, Han não nos diz como conquistamos a forma de vida que nos livra do paradoxo da morte-vida, não nos diz o caminho a seguir, somente indícios de um caminho em sua obra “A Expulsão do Outro” (Relógio d’Água, 2018). A obra trata dos efeitos da globalização e das consequências do fim das diferenças entre as pessoas. A ideia de Han é que, se todos forem iguais, o sistema capitalista funciona melhor, pois é mais veloz a circulação do capital, mercadorias e informação. “Os tempos em que existia o outro estão a passar”, é uma notável imagem para sugerir a necessidade da empatia, caminho que entendemos satisfaz as exigências de um caminho a seguir. Antes, Han prefere o termo escutar, e sentencia: “no futuro haverá, possivelmente, uma profissão a que se chamará ouvinte. Mediante pagamento, o ouvinte escutará um outro, atendendo ao que este diga. Recorreremos ao ouvinte porque, exceto ele, quase mais ninguém haverá que nos escute. Hoje, perdemos cada vez mais a capacidade de escutar” (p. 87).

Juliana gritou por uma ajuda que não chegou a tempo e João não foi capaz de gritar por ajuda. Ambos tinham voz e um corpo que emitiu sinais de que estavam no limite da vida e da morte, mas não foram escutados. Aqueles que continuaram o que estavam fazendo mesmo com sua dor são mais do que aqueles que são vítimas da sociedade capitalista, são produtos dela pois permitem que o progressivo narcisismo se instale em suas consciências, que os faz focalizar em seu próprio ego o mundo. Nossa relação com os celulares, já diz Han, é o protótipo dessa formação de subjetividade.

É que, para Han, escutar é um comportamento ativo. Não é qualquer um que escuta alguém. Daí a existência da psicanálise. Mas o fato é que, para escutar, é preciso, primeiro, afirmar a alteridade do outro. “Em certo sentido, a escuta antecede a fala. É unicamente escutar o que faz com que o outro fale. A escuta convida o outro a falar. O outro se liberta falando.” (p. 87). Não se trata de culpar Juliana por não ouvir os alertas, se trata de perguntar se os passantes estavam realmente ouvindo o pedido de socorro; não se trata de culpar João Gabriel por prestar ou não atenção aos sinais de seu próprio corpo, mas se os organizadores ouviram o exemplo dos acidentes graves em maratonas. Esses silêncios são diferentes do de um analista, diz Han, porque este não é um ouvido hospitaleiro, mas um ouvido que anota para depois analisar: “a escuta pode bastar-se a si mesma para curar” (p. 89).

Escutar precisa de respiração

Han diz que não escutamos direito porque não respiramos direito. Ele cita um personagem de Elias Canetti, Herman Broch, o ouvinte perfeito, que emitia apenas pequenos gemidos e sons a cada frase pronunciada, sinais de hospitalidade, reação mínima que não emite juízos. Aquelas pessoas que corriam a maratona estavam com a respiração em outro lugar; as pessoas que estavam na trilha de Juliana também, fazendo ambos os esforços para sobreviver.  Esvaziavam-se enquanto ouvintes, incapazes de ter a atitude paciente para prestar atenção nos gritos ou sinais. O que faltou a esta escuta era ficar à disposição: sabe-se, segundo o laudo, que Juliana veio a óbito momentos depois da queda. Mas aqui, nos termos de Han, trata-se de apontar naquela situação, a condição dos presentes, cujo “ego não é capaz de escutar”.

Han diz que isso acontece porque a comunicação mudou. “Na comunicação analógica, temos em geral um destinatário concreto, um interlocutor pessoal. A comunicação digital, pelo contrário, propicia uma comunicação expansiva e despersonalizada que não necessita de interlocutor pessoal, nem de olhar, nem de voz” (p. 91).  Estamos perdendo a capacidade de nos relacionarmos com pessoas concretas porque passamos a falar para as redes sociais, deixamos registros na nuvem. “Não se referem a ninguém concreto”, diz Han. Essa falta de contato pessoal, de preocupação com o outro que as mídias digitais possibilitam, nos isola, destrói a distância. Fim da relação: há só conexão.

A empatia como arte de viver

Han não avança em relação ao escutar porque não explora o conceito que Roman Krznaric explora em seu Sobre a Arte de Viver (Zahar, 2013). Ele diz que o passado, sim, como Han, continua ajudando a entender o presente. A obra, em diversos capítulos, procura elucidar as bases de uma arte da vida. Além de amor, família, trabalho, dinheiro, sentidos, viagens, natureza, crença, criatividade e morte, temas da maioria dos filósofos – Han inclusive – Krznaric destaca um: a empatia.

Para ter empatia, é preciso ouvir. Mas o que é empatia? De uma maneira simples, ele define como “a arte de se pôr no lugar do outro e ver o mundo de sua perspectiva. Ele requer um salto da imaginação, de modo que sejamos capazes de olhar pelos olhos dos outros e compreender as crenças, experiências, esperanças e os medos que moldam suas visões de mundo” (p. 69). Eu entendo que faltou empatia aos viajantes que continuaram a caminhada na montanha tanto quanto aos corredores da maratona que fizeram o mesmo. Kznaric diz que a empatia vem naturalmente, mas não é exatamente assim, não é? O mínimo que uma pessoa com empatia faria é parar tudo que está fazendo por uma curiosidade pelo outro, e a ausência disto o autor chama de déficit de empatia, termo que o Kznaric atribui a Barack Obama.

Por isso, para ele, uma das razões pelas quais estudamos economia está errada. Deveríamos estudá-la não para enriquecer, mas para ajudar o Outro. Kznaric lembra que foi justamente Adam Smith, o pai do capitalismo, o mundo onde só o interesse pessoal vale, que criou a noção de Homo empathicus. É que, dezessete anos antes da publicação de seu livro A riqueza das nações, Smith escreveu A teoria dos sentimentos morais, hoje obra praticamente esquecida e que diz logo nas primeiras linhas: “Por mais egoísta que possamos considerar o homem, há evidentemente alguns princípios em sua natureza que o levam a se interessar pela sorte dos outros, e tornam a felicidade dos outros necessária para ele, ainda que nada ganhe com ela, exceto o prazer de contemplá-la” (p.73). Quer dizer, embora um autor associado à emergência do capitalismo ávido por lucro, ele é também o autor que se preocupou com as instituições que, no século XVIII, preocupavam-se com o abandono de crianças, escravidão, crueldade com animais, ideias que foram ignoradas pelos economistas. Preocupou-se com a empatia social.

Por isso, para concluir, talvez o exemplo do grupo de voluntários, liderado pelo alpinista Agam Rinjani, seja o exemplo de empatia no caso de Juliana. Ele mobilizou-se nas encostas do Monte Rinjani para resgatar o seu corpo morto. Ficou horas para que ele não despencasse ainda mais. Kznaric finaliza: “Se quiséssemos reescrever a história da perspectiva da empatia, teríamos de incluir outros exemplos de florescimento empático coletivo. Teríamos também de documentar tragédias históricas de fracasso empático coletivo. Com isso, chegaríamos, pouco a pouco, a ver a história não apenas através da lente da ascensão e queda das nações, ou da emergência de novas religiões ou tecnologias, mas através das revoluções periódicas das relações humanas em que explosões em massa de empatia – ou sua ausência – alteraram a vida das pessoas” (p.90). Esta é uma lição que o detalhe das tragédias que terminaram em morte nos ensina.


Publicado originalmente Sler.

*Jorge Barcellos é graduado em História (IFCH/UFRGS) com Mestrado e Doutorado em Educação (PPGEDU/UFRGS). Entre 1997 e 2022 desenvolveu o projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal. É autor de 21 livros disponibilizados gratuitamente em seu site jorgebarcellos.pro.br. Servidor público aposentado, presta serviços de consultoria editorial e ação educativa para escolas e instituições. É casado com a socióloga Denise Barcellos e tem um filho, o advogado Eduardo Machado. http://lattes.cnpq.br/5729306431041524

Foto de capa:  Reprodução do Youtube

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Uma resposta

  1. Muito triste, as pessoas se tornaram apenas peças de uma engrenagem confusa. È como se a humanidade estivesse minguando, enterrando seus valores na indiferença que cega e destrói. Mulheres morrem de feminicio e os assassinos continuam sua vida buscando outras mulheres. Por trás um capitalismo violento que lucra com o horror. Um momento de encruzilhada. Não parece ter saída pelos humanos,

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