Opinião
A presença de Picasso
A presença de Picasso
De LENEIDE DUARTE-PLON*, de Paris
50 anos depois de sua morte, dezenas de exposições no mundo homenageiam o maior artista do século XX
Em sua longa vida, Pablo Picasso foi amigo de muitos intelectuais, escritores, artistas, colecionadores, galeristas e críticos de arte.
Colecionador e curador de exposições, o crítico de arte inglês John Richardson, morto em 2019, aos 95 anos, foi um dos mais assíduos frequentadores das casas e ateliês do artista. Um dos maiores especialistas da obra picassiana, Richardson deixou uma biografia monumental do catalão em quatro tomos.
Vida de Picasso – que começa na infância até os períodos azul e rosa (1881-1906), segue com o período cubista (1907-1917), o sucesso (1917-1932), seguido de Guerra da Espanha e a segunda guerra mundial (1933-1943) – foi definida como uma obra “magistral e definitiva” por Michiko Kakutani, editora da rubrica literária do New York Times, quando o livro foi lançado, em 2007.
Richardson não teve tempo de acabar o quinto tomo que trataria dos 30 últimos anos do artista, que ocupou com sua arte quase todo o século XX.
O mundo inteiro relembra com exposições e documentários os 50 anos da morte de Pablo Picasso, em 8 de abril de 1973. O canal franco-alemão Arte programou um dia inteiro de homenagem com documentários variados sobre o pintor, que nasceu catalão e morreu catalão, apátrida, depois da vitória do fascismo de Franco sobre os republicanos espanhóis.
Devorador de mulheres
Em uma crônica do jornal Libération de 11 de abril, o jornalista Luc Le Vaillant lembra que o pintor vem sendo alvo de feministas que atacam o devorador de mulheres, o minotauro que teve filhos de várias companheiras e esposas e representou artisticamente seus dramas em quadros, esculturas e cerâmicas.
De Dora Maar – a fotógrafa com quem ele viveu antes da segunda guerra e que o incentivou a pintar Guernica, sua obra-prima – ele fez diversos retratos como a mulher que chora. De Olga, sua primeira mulher, ele criou um retrato clássico, antes de representá-la como uma jumenta que se agarra ao minotauro para impedi-lo de partir com sua nova presa. De cada nova musa e companheira, Picasso se inspirou para retratos cubistas ou clássicos. Nem todas foram felizes com o artista, que pintava como quem respira e que produziu milhares de obras.
A fantástica energia criativa do mais prolífico artista plástico do século XX resultou em desenhos, quadros, esculturas e cerâmicas. Picasso produziu perto de 50 mil obras: 1885 quadros, 1228 esculturas, 2880 cerâmicas, 7089 desenhos, 242 tapeçarias, 150 cadernos de croquis e 30 mil estampas (gravuras e litografias).
A diabolização de Picasso por feministas radicais não impediu que no mundo inteiro dezenas de exposições fossem programadas para marcar os 50 anos de sua morte.
Os governos francês e espanhol organizaram uma comissão binacional reunindo as instâncias culturais e diplomáticas dos dois países para a Célébration Picasso 1973-2023. O museu Picasso de Paris é um dos iniciadores, juntamente com Bernard Ruiz-Picasso, co-presidente da Fundación Almine y Bernard Ruiz Picasso para el Arte e José Girão, ex-ministro da Cultura do governo espanhol, organizador da comemoração na Espanha, falecido em julho de 2022. Instituições de renome na Europa e nos Estados Unidos participam do programa com 50 exposições que traçam uma visão historiográfica da obra de Picasso.
Na Espanha, haverá 16 exposições; na França, 12; nos Estados Unidos, 7; na Alemanha, 2; na Suiça, 2; em Mônaco, 1; na Romênia, 1; e na Bélgica, 1.
Picassando
John Richardson resumia a pulsão devoradora de Picasso dizendo que ele “picassava” as pessoas. “Picassar” significava para o inglês fagocitar, devorar, modificar nos quadros e na vida. Alguém observou que Richardson se deixou “picassar” como ninguém pois dedicou sua vida ao artista. “Para biografar tal monstro, era preciso uma combinação exata de masoquismo, de tenacidade, de desinteresse e de intrepidez”, resumiu o crítico de arte do Washington Post, Sebastien Smee, em 2022.
Em 5 de outubro de 1944, antes do fim da guerra, o artista aderiu ao Partido Comunista Francês e fez algumas viagens para encontros políticos na Europa.
Quando pediu a naturalização francesa, que lhe foi negada, em 1940, Picasso era o autor de um dos maiores quadros do século XX, Guernica (1937), pintado depois do bombardeio da pequena cidade espanhola pelos aviões alemães da Legião Condor, aliados de Franco, que assumiu o poder em 1939.
A um oficial alemão veio vê-lo em seu atelier e lhe perguntou apontando o quadro: “Foi você quem fez isso ?”, o artista teria respondido: “Não, foram vocês”.
Conta-se que ele distribuía aos alemães que vinham vê-lo no seu atelier cartões postais com a reprodução do quadro Guernica, dizendo: “Souvenir, souvenir“.
Em janeiro de 1943, a Gestapo (polícia secreta criada pelos nazistas com o objetivo de monitorar e perseguir indivíduos e grupos que pudessem representar alguma “ameaça” para o Estado) chegou ao atelier tratando-o de comunista, de degenerado, de judeu. “Eles chutavam meus quadros e me insultavam”, contou o artista. Em julho do mesmo ano, os alemães queimaram nas Tulherias quadros de Picasso, de André Masson, de Mirò, de Klee, de Léger, de Ernst. Picasso era regularmente atacado pela imprensa petainista e controlado de perto pela Gestapo por suas simpatias comunistas. A nacionalidade francesa teria protegido de certa forma o artista apátrida que jurou que seu quadro Guernica só seria visto num museu espanhol depois da volta da democracia.
Picasso morreu em 1973, sem poder ver o fim de Franco e do fascismo na Espanha, em 1975.
Para assinar as obras que habitam diversos museus pelo mundo, o artista teve que reduzir seu nome, optando pelo sobrenome materno, Picasso, abandonando o paterno, Ruiz, assim como todos os outros nomes que compunham uma lista quilométrica: Pablo, Diego, José, Francisco de Paula, Juan Nepomuceno, María de los Remedios, Crispín Cipriano de la Santísima Trinidad Ruiz y Picasso.
Dossier Picasso
A exposição Picasso, o estrangeiro (Picasso, l’étranger), inaugurada no Musée National de l’Histoire de l’Immigration no ano passado, teve como curadora a escritora e historiadora Annie Cohen-Solal, autora do livro que resultou de seis anos de pesquisas: Un étranger nommé Picasso, de 748 páginas. Ela ressalta que o artista foi sempre visto pela polícia francesa como um perigoso esquerdista.
A mostra coincidiu com o momento da campanha eleitoral para presidente da República, na qual dois candidatos de extrema-direita, Marine Le Pen e Éric Zemmour, estigmatizavam os imigrantes e pregavam o fechamento das fronteiras.
Se fosse vivo, Picasso – que declarou em entrevista: “A pintura não é feita para decorar apartamentos. É uma arma de guerra ofensiva e defensiva contra o inimigo” – estaria pintando para combater o neofascismo que gangrena a França.
O “dossier Picasso” mostrado na exposição Picasso, o estrangeiro era composto de relatórios da polícia francesa que detalham aspectos artísticos, fiscais, bancários e policiais do investigado. No primeiro relatório policial do artista, de 1901, pode-se ler que ele era um tipo suspeito: próximo de estrangeiros anarquistas, era hospedado por um catalão, Pedro Mañach, considerado anarquista e violento, e pintava “mendigos, saltimbancos e moças de ‘mauvaise vie’”.
Naquele ano, o artista espanhol nascido em Málaga se instalou em Montmartre, na casa de Mañach. Montmartre era um bairro proletário, de má reputação política desde a Comuna de Paris (de 1871).
Em 1944, quando aderiu ao Partido Comunista Francês, Picasso escreveu : “Minha adesão ao Partido Comunista é a consequência lógica de toda minha vida, de toda minha obra. Porque digo com orgulho que jamais considerei a pintura como uma arte de decoração, de distração: quis com o desenho e com a cor, minhas armas, penetrar cada vez mais no conhecimento dos homens e do mundo afim de que esse conhecimento nos liberte a todos cada vez mais. Tentei dizer, a meu modo, o que considerava mais justo, mais verdadeiro, melhor. Penso que era naturalmente o mais belo, os maiores artistas o sabem. Sim, tenho consciência de ter sempre lutado pela minha pintura como um verdadeiro revolucionário. Mas compreendi agora que isto não é suficiente; estes anos de opressão terrível da guerra me mostraram que eu devia não somente combater com minha arte, mas com todo meu ser. Esperando que a Espanha possa enfim me acolher, o Partido Comunista Francês me abriu os braços e encontrei nele aqueles que admiro, os maiores sábios, os maiores poetas e todos os rostos dos insurgentes parisienses tão belos que vi durante os dias de agosto, da Libération. Estou de novo no meio de meus irmãos.”
Poucos anos antes de morrer sem ter podido voltar à Espanha franquista, reconhecido e adulado no mundo inteiro, o artista recebeu do presidente Georges Pompidou, um apaixonado por arte moderna, a proposta de se tornar cidadão francês.
“Non, merci“, respondeu o orgulhoso catalão que viveu e morreu apátrida na França.
*Jornalista internacional. Co-autora, com Clarisse Meireles, de Um homem torturado – nos passos de frei Tito de Alencar (Editora Civilização Brasileira, 2014). Em 2016, pela mesma editora, lançou A tortura como arma de guerra – Da Argélia ao Brasil: Como os militares franceses exportaram os esquadrões da morte e o terrorismo de Estado. Ambos foram finalistas do Prêmio Jabuti. O segundo foi também finalista do Prêmio Biblioteca Nacional.
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