Triunfo ideológico concede poderes ampliados ao presidente, mas o eleitorado ausente revela fragilidades no modelo liberal emergente
No domingo (26 de outubro), a Argentina realizou suas eleições legislativas de meio de mandato, renovando metade da Câmara de Deputados e um terço do Senado. O resultado confirmou uma vitória expressiva do partido do presidente Javier Milei, La Libertad Avanza (LLA), que obteve cerca de 40,7% dos votos válidos, segundo dados oficiais.
Mas essa conquista vem acompanhada de uma estatística simbólica: o índice de participação ficou em apenas 67,85% — o mais baixo registrado em eleições nacionais desde o retorno da democracia em 1983. Isso indica que mais de 32% do eleitorado habilitado ficou de fora, mesmo em país de voto obrigatório, sugerindo uma mistura de desconfiança, desencanto ou cansaço com o debate político vigente.
O novo mapa de forças no Congresso
- Com cerca de 40,7% dos votos, LLA amplia fortemente sua bancada, triplicando sua presença na Câmara de Deputados e ganhando senadores adicionais.
- O peronismo, reunido sob a coalizão “Fuerza Patria”, ficou em segundo lugar, com aproximadamente 31-32%.
- Em províncias tradicionalmente peronistas, como Buenos Aires, LLA conquistou vitórias apertadas, revertendo alguns prognósticos favoráveis à oposição.
Com isso, Milei obtém mais poder para sustentar vetos presidenciais e influenciar a aprovação de medidas de sua agenda ultraliberal — embora ainda dependa de alianças pontuais para aprovar reformas mais radicais.
A abstenção: um recado do eleitorado silencioso
A elevada abstenção — mais de 1 em cada 3 eleitores habilitados não compareceu — é um ponto que não pode ser ignorado. Em um momento de polarização extrema, esse dado revela que parte significativa da população não se reconhece nos blocos dominantes, ou opta por um silêncio político como forma de protesto.
Para alguns analistas, a baixa participação reflete uma fadiga política profunda e o desgaste de promessas não cumpridas, especialmente após medidas de austeridade, cortes nos serviços públicos e impacto social visível. Outros apontam que, com campanhas concentradas nos extremos, muitos eleitores moderados acabaram marginalizados e desmotivados.
A abstenção, portanto, emerge como um elemento de dualidade: legitima, aos olhos dos vencedores, a vitória de Milei, e ao mesmo tempo lança uma sombra sobre o alcance real desse apoio no terreno social.
O que justifica e os riscos da guinada liberal
A vitória de Milei foi construída sobre duas frentes centrais:
- Austeridade radical e diminuição do Estado — medidas abruptas de corte de subsídios, demissões no setor público e flexibilização regulatória foram justificadas como necessárias para conter o colapso econômico.
- Alinhamento estratégico com os EUA — o apoio condicionado de Donald Trump, por meio de promessas de linha de crédito e swap cambial avaliado em até US$ 40 bilhões, teve peso simbólico e real na campanha.
Mas o triunfo também expõe vulnerabilidades: Milei não conquistou maioria absoluta, o Senado permanece dividido, e seu estilo confrontador pode gerar embates institucionais contínuos. Seus decretos presidenciais, por exemplo, já vêm sendo alvo de restrições no Congresso, como aprovado em 8 de outubro um projeto que limita o uso desses instrumentos.
Além disso, derrotas recentes, como a revogação de veto presidencial em benefício dos direitos das pessoas com deficiência pelo Senado, mostram que a oposição ainda detém poder para conter parte dos excessos do Executivo.
Vozes críticas e alertas da oposição
O peronismo reagiu com pragmatismo e autocrítica. Axel Kicillof, ex-governador da província de Buenos Aires, acusou os EUA de interferência direta e afirmou que a vitória de Milei reflete uma combinação de medo e alternativas fragilizadas.
Analistas oposicionistas apontam que o triunfo de Milei representa menos uma adesão ampla ao projeto ultraliberal do que uma rejeição ao ciclo peronista degenerado por corrupção, inflação e instabilidade. A divisão interna no peronismo, somada à falta de uma narrativa alternativa clara, contribuiu para o êxito do rival.
No entanto, muitos alertam: “Ele venceu as eleições, mas não venceu a economia”, dizem críticos. A moeda local está sob forte pressão, e cortes drásticos já afetaram os serviços públicos mais sensíveis.
O que muda — e o que está por vir
Com esse novo cenário, Milei tem o mandato político e eleitoral para avançar sua agenda: reformas tributárias, flexibilização trabalhista, privatizações, cortes de gastos e liberalização cambial estão no forno legislativo.
Mas o governo caminhará sobre um fio:
- Vai precisar negociar com partidos de centro-direita e dissidentes para garantir votos no Congresso.
- Enfrentará pressões sociais por aumentos de tarifa, desemprego e ruptura no acesso a serviços básicos.
- A abstenção expressiva e o desgaste erguerão uma crítica permanente à legitimidade de um modelo de profundo impacto social.
Se sua vitória marca a consolidação de um novo ciclo político, é a eleição dos ausentes, silenciosos e desencantados que lança a interrogação: esse modelo neoliberal radical conseguirá resistir à reação que se formará?
Imagem destacada: Javier Milei em plenária sobre reforma das instituições no G20 – Tânia Rêgo/Agência Brasil




