Tecnofeudalismo versus Capitalismo: modelos em confronto

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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

No seu livro O que Matou o Capitalismo, publicado originalmente em 2023, a hipótese central de Yanis Varoufakis é o capitalismo ter morrido e substituído por algo fundamentalmente diferente, chamado de tecnofeudalismo. Isso não é meramente mais uma das muitas transformações impressionantes do capitalismo, mas sim uma superação por uma realidade social “muito, muito mais feia”.

Segundo Varoufakis, o que matou o capitalismo foi o próprio capital, mas em uma nova forma mutante, surgida nas últimas duas décadas, muito mais poderosa diante a sua predecessor. Dois desenvolvimentos principais causaram essa transformação: primeiro, a privatização da internet pelas Big Tech da América e da China; segundo, a maneira como os governos ocidentais e bancos centrais responderam à grande crise financeira de 2008.

Ele descreve o tecnofeudalismo como uma forma tecnologicamente avançada de feudalismo, onde o poder está nas mãos de ainda menos indivíduos possuidores de um novo tipo de capital: o capital nuvem. Esta tese estampa a ironia de “o capital em si matou o capitalismo”.

Entre os argumentos, dados e fatos apresentados em defesa dessa hipótese como uma tese questionável incluem a ascensão do capital nuvem. Varoufakis argumenta, de maneira simplória, entrar em plataformas como amazon.com significa sair do capitalismo e entrar em um reino sem sequer poder ser considerado um mercado, mesmo digital.

Ele compara essa dinâmica a um “feudo digital” pós-capitalista, onde o proprietário da plataforma (como Jeff Bezos) possui algoritmos receptores de uma parte de cada venda e serem capazes de decidir o que pode ou não ser vendido, de forma não muito diferente de um suserano concedendo feudos a vassalos em troca de uma porção da produção, policiado por Senhor de Guerra. O poder concentrado do capital nuvem é descrito como o “toque de finados” para a ideia de mercado.

Sob o tecnofeudalismo, a nova classe dominante extrai poder da propriedade do capital nuvem, cujos tentáculos envolvem a todos, contrastando com o feudalismo (poder da propriedade da terra) e o capitalismo (poder da propriedade do capital). Essa nova classe dominante é chamada de cloudalists.

Diferentemente dos feudalistas, nascidos com o poder de extrair rendas da terra, os cloudalists tiveram de criar esse poder do zero, investindo enormemente em sua tecnologia. O dinheiro sério é agora feito cobrando rendas-nuvem.

Elon Musk justifica sua compra do Twitter para transformá-lo em um “aplicativo para tudo”. É apresentado como um exemplo da lógica tecnofeudal em ação, buscando construir um feudo-nuvem proeminente para ingressar na nova classe dominante tecnofeudal.

O capital-nuvem é visto como um “meio de produção produzido”. Evoluiu para um “meio de modificação de comportamento produzido”.

A forma como os governos e bancos centrais responderam à crise de 2008 contribuiu para a morte do capitalismo. Os maciços resgates estatais aos bancos não ressuscitaram o “Minotauro Global” (uma fase do capitalismo descrita por Varoufakis), mas sim criaram uma “bancocracia”, onde os banqueiros falidos foram salvos.

Isso resultou na combinação letal de “socialismo para banqueiros e austeridade para quase todos os outros”. Essa combinação estagnou as economias e financiou a ascensão dos cloudalists.

Varoufakis observa, por volta de 2007, a soma das apostas no mercado de ações global cresceu enormemente (mais de 1000%), impulsionada por instrumentos financeiros como opções (derivativos), que se tornaram “armas de potencial destruição financeira em massa”. Na realidade, o afrouxamento monetário colocou a taxa de juro em certas economias até em nível negativo, desestimulando as aplicações em renda fixa (como títulos de dívida pública) e estimulando as especulações em renda variável (como ações).

Após 2008, o dinheiro dos bancos centrais substituiu os lucros capitalistas como o combustível do sistema. A ocorrência conjuntural de taxas de juro negativas em larga escala após a crise de 2008 é apresentada por Varoufakis como prova de o mundo do dinheiro se desacoplou do mundo capitalista.

Esse dinheiro, resultante da política monetária frouxa. fluiu não para investimentos sérios ou bons empregos, mas para a compra de ativos como terras, arte etc., beneficiando acionistas e executivos. Varoufakis argumenta com base em um fator passageiro (como a política econômica pós-pandemia para combater a inflação comprovou), os dois grandes pilares do capitalismo – lucro e mercados – estarem sendo substituídos.

A hipótese imaginada por Varoufakis é original, porém sua regressividade histórica com base em tecnologia não convence. Para ele, os mercados estão minguando (“wither markets”) e dando lugar a “feudos nuvem” (“cloud fiefs”) com suas rendas-nuvem por arrendamento a comércio eletrônico e operações bancárias.

Plataformas digitais, como as das “Sete Magníficas” (Magnificent Seven) – grupo formado por Alphabet, Amazon, Apple, Meta, Microsoft, Nvidia e X –, não permitem a comunicação autônoma entre compradores e vendedores. Algoritmos ditam/sugerem o possível de cada um ver ou fazer, ao contrário dos mercados tradicionais. A renda nuvem se torna a principal forma de extração de valor, em contraste com o lucro no capitalismo e a renda da terra no feudalismo.

A privatização da internet pelas Big Tech também na China (como Alibaba, Tencent, Baidu) é identificada como um dos dois principais impulsionadores do tecnofeudalismo. A China construiu suas finanças-nuvem (“cloud finance”) com um sistema de pagamento global alternativo.

Os cloudalists chineses, ao contrário dos capitalistas chineses, não veem o possível fim do reinado do dólar como uma ameaça. Já têm um sistema alternativo.

As ações dos EUA, como a proibição da Huawei e restrições ao TikTok, e as tensões subsequentes, motivaram capitalistas e rentiers de todo o mundo, incluindo a Europa Ocidental, a buscar a finanças-nuvem da China (Renmimbi digital é o CBDC chinês) para superar futuros obstáculos de pagamento.

As analogias com o passado remoto para análise do contexto histórico atual parece deslocado. Varoufakis usa comparações históricas para explicar sua tese.

Ele contrasta a forma de poder no feudalismo, capitalismo e tecnofeudalismo. A dinâmica de suseranos e vassalos sob o feudalismo é usada como analogia para a relação entre os donos de plataformas e os vendedores.

Ele narra a história das “metamorfoses” do capitalismo, incluindo a Era Bretton Woods e a fase do Minotauro Global. Esta fase refere-se a um período na economia global, desde o início dos anos 1980 até o colapso financeiro de 2008, caracterizado por um sistema econômico centrado nos Estados Unidos e sua crescente dívida, sustentado por fluxos de capital de outros países.

Yanis Varoufakis, em seu livro O Minotauro Global (2016), descreve esse período como um “monstro motor”. Impulsionou a economia global, com os Estados Unidos como um grande deficitário no balanço de transações correntes e dependente das compras de seus títulos de dívida pública para as reservas internacionais dos demais países. Os Estados Unidos consumiam e o resto do mundo financiavam. Havia a integração Chimérica.

A dualidade, um tema introduzido através de Hesíodo, é aplicada ao trabalho, capital e dinheiro no capitalismo para explicar a origem dos excedentes, e à natureza dual do dinheiro para explicar paradoxos como taxas de juro negativas. Ele se baseia em economistas clássicos como Smith, Ricardo e Marx, bem como Keynes, Galbraith e Minsky, situando sua análise em uma tradição do pensamento econômico marginalizada como heterodoxa.

Em suma, Varoufakis afirma a confluência do poder das Big Tech (capital-nuvem) e a resposta política e financeira à crise de 2008 resultaram em um sistema onde as dinâmicas capitalistas de lucro e mercado foram substituídas por um sistema baseado na renda-nuvem, extraída pelos cloudalists. Leva à morte do capitalismo e ao nascimento do tecnofeudalismo. Só.

Essa hipótese é criativa, mas questionável. Afinal, “os arrendatários”, em última instância, são os milhares de acionistas por meio dos grandes investidores institucionais globais. Estão sujeitos ao custo de oportunidade das taxas de juro…


*Fernando Nogueira da Costa é Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com

Foto de capa: Reprodução

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