Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*
Vale a pena organizar uma sequência de exemplos históricos breves sob forma de um fio narrativo para mostrar a transição da riqueza brasileira — de terra e escravidão até o sistema financeiro indexado e o Estado como devedor.
A riqueza antes da existência da moeda nacional, emitida por um Estado Republicano, se caracterizava por um patrimônio composto por terra e escravos no Brasil Colonial e, depois, Imperial. No século XIX, a riqueza no Brasil era fundamentalmente fundiária e escravista.
A propriedade da terra, concentrada por meio das sesmarias e depois da Lei de Terras (1850), consolidava o poder das elites. Escravizados eram contabilizados como parte do patrimônio, funcionando literalmente como “ativo” de acumulação. O capital financeiro ainda era incipiente: empréstimos vinham sobretudo de casas bancárias inglesas.
Adveio a crise do patrimônio imobiliário e os limites da riqueza fundiária com a abolição da escravidão (1888) e a urbanização inicial. Criaram pressão sobre a estrutura fundiária. Grandes propriedades agrícolas se viram endividadas e vulneráveis às crises de preços internacionais, especialmente, no caso do café.
Nas cidades, a terra urbana valorizava, mas a riqueza permanecia pouco líquida: imóveis eram ativos pouco móveis e dependentes do crédito hipotecário. O patrimônio fundiário enfrentava limites para servir como base de um capitalismo mais dinâmico.
Na Reforma Financeira de 1964, houve a invenção da riqueza monetária indexada. A reforma do sistema financeiro (Lei 4.595 e Lei 4.380) introduziu instrumentos favoráveis à financeirização da acumulação de capital.
O mecanismo-chave foi a correção monetária. Permitiu títulos e contratos preservarem o valor real em contexto inflacionário e evitou a fuga para o dólar.
Criou-se um novo ativo: a riqueza monetária indexada, mais líquida e mais rentável diante a posse de imóveis. Essa inovação marcou a passagem da centralidade do patrimônio imobiliário para a financeira.
Com a correção monetária e a riqueza pós-fixada, nessa nova acumulação, o papel-chave é do Estado nacional. Passou a emitir títulos indexados, absorvendo poupança privada e garantindo proteção contra a inflação. Para o investidor, juros compostos reais tornaram-se fonte de acumulação exponencial. O sistema financeiro nacional expandiu-se como mediador entre o Tesouro e a sociedade. Essa engenharia financeira deu segurança ao capital financeiro, embora, ao mesmo tempo, tenha aumentado a vulnerabilidade fiscal do Estado.
O Estado brasileiro atua como devedor sistêmico na Previdência Social e com títulos de dívida pública sob o baixo risco soberano, propiciadores de rendimentos financeiros. A expansão da Previdência Social e das políticas sociais exigiu financiamento público constante.
O Tesouro tornou-se devedor sistêmico, emitindo dívida pública. Ela se converteu no principal ativo da nova oligarquia rentista. Fundos de pensão, bancos e investidores privados passaram a ter no Estado a fonte garantida de renda.
A lógica da política econômica deslocou-se. A meta de estabilizar preços com juros internacionalmente disparatados tornou-se prioridade para preservar esse arranjo.
Em comparações internacionais com os Estados Unidos, França e América Latina fica evidente a particularidade do modelo econômico brasileiro. Nos EUA, há forte tradição de ações (equity culture), pois no século XIX o governo federal não era grande emissor de dívida e as empresas recorreram ao mercado acionário.
Na França, houve a predominância histórica da dívida pública como ativo de referência desde o século XIX, antecedendo o caso brasileiro. Na América Latina, existem padrões híbridos. Por exemplo, no México e na Argentina, crises de dívida externa mostraram a fragilidade de estruturar riqueza financeira sem moeda nacional ser reserva de valor (aplicada em títulos) e unidade-de-conta.
O Brasil, com a correção monetária, criou um mecanismo sui generis de acumulação financeira em economia periférica. As séries históricas desde a riqueza fundiária (terra) até o Tesouro Direto (1871–2025) comprovam isso.
- 1871: Censo registra maioria da riqueza em terras e escravos.
- 1930s: urbanização acelera, imóveis urbanos ganham peso.
- 1964: reforma financeira cria ativos monetários indexados.
- 1980s: regime de alta inflação reforça o papel da correção monetária.
- 2002–2025: consolidação do Tesouro Direto como instrumento de popularização da dívida pública.
A trajetória mostra a passagem da terra para imóvel e daí para título público indexado como eixo central da acumulação de riqueza no Brasil. Houve implicações sociais e políticas devido à nova oligarquia rentista.
A oligarquia antes fundiária transformou-se em oligarquia financeira. A renda financeira passou a disputar prioridade com gastos sociais no orçamento.
Política monetária de juros elevados consolidou o rentismo como a maior base da desigualdade social atual. A democracia representativa tornou-se tensionada por esse arranjo: enquanto a maioria depende do Estado como provedor, a elite depende dele como devedor.
Portanto, a financeirização no Brasil não eliminou a herança fundiária, mas a subordinou a uma nova hierarquia rentista. O Estado social-desenvolvimentista, distinto do neofascista, ao mesmo tempo promove inclusão social, via previdência e políticas sociais, e sustenta a reprodução do capital financeiro.
Essa ambivalência mostra a desigualdade estrutural não ser apenas econômica, mas política. O Estado é, simultaneamente, uma garantia da cidadania e um lastro da renda financeira concentrada.
No capitalismo periférico, a transição da terra para o Tesouro não dissolveu o poder das elites, apenas o reconverteu em outra forma de dominação, agora financeira. Aliás, assemelha-se ao capitalismo central: neste sob renda variável (ações), naquele sob renda pós-fixada (títulos de dívida pública e privada).
*Fernando Nogueira da Costa é Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com.
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