Por LÉA MARIA AARÃO REIS*
O filme de Paul Schrader atualmente em cartaz nos cinemas termina ao som do hino nacional canadense, Oh! Canadá, reverenciando o ‘Verdadeiro Norte Forte e Livre’, como está na sua letra, e encerrando com ele, em um belo ritmo de soul, o excelente trabalho de um dos mais brilhantes diretores da geração de realizadores norte americanos dos anos 60/70, da chamada ‘nova Hollywod’ .
O diretor de Oh! Canadá, de 78 anos, escritor Russell Banks, falecido aos 84, em 2023, e o ex Gigolô Americano, Richard Gere, de 75, estão reunidos nessa produção, uma das poucas, hoje, que honram a lembrança da idade de ouro do cinema estadunidense.
Oh! Canadá retrata um personagem criado por Banks, o professor e documentarista Leonard Fife, que na sua última entrevista diante de uma câmera, pouco antes de morrer de câncer, faz uma retrospectiva inesperada da sua vida. O ator e modelo australiano Nathaniel Elordi, nesse momento em moda em Hollywood, faz o personagem alter ego de Gere quando jovem, e, junto com a atriz Uma Thurman, interpretando a mulher de Fife já idoso, arremata o brilhante elenco do filme.
O roteiro é um mergulho magistral na cabeça e na alma do cineasta em seu leito de morte, sua memória e lembranças estilhaçadas. Nesse roteiro, não há linguagem acadêmica nem retrospecto da vida de Fife que seja convencional.
São associações livres, confissões heterodoxas, pequenas e grandes traições cometidas ao longo de uma vida, omissões e eventuais covardias, os lances expostos da trajetória de um profissional de prestígio e de sucesso.
A entrevista se dá sem filtros, para a câmera e para a equipe de um ex-aluno de Fife, Malcolm (ator Michael Imperioli), um documentarista, que, para além da morte, também ele trai o seu ídolo, gravando, sem a licença dele e da sua mulher, os últimos suspiros de Fife/Richard Gere já na cama, fora da cadeira de rodas, em seus momentos finais.
A fuga do jovem Fife (Nathaniel Elordi) para o Canadá, se recusando a servir na guerra do Vietnã, como ocorreu com centenas de jovens norte americanos durante os anos 60, é uma das chaves do percurso do entrevistado. Uma das cenas mais inesperadas do filme é a de um rapaz que vem ao encontro de Fife em uma ocasião festiva em sua homenagem e lhe diz, gentil e candidamente: ‘’ Lembra de mim? Eu sou seu filho’’, ao que Fife responde duro, depois de meio segundo de hesitação: ‘’Não o conheço. Eu não tenho filhos’’. Tinha: o rapaz que o aborda.
O reencontro de Paul Schrader com Richard Gere nesse retrato de um artista quando jovem que não se pretende convencional ocorre 40 anos depois de fazerem juntos American Gigolo. Pouco antes o galã fizera Uma Linda Mulher quando foi catapultado para a galeria e para a carreira de homens bonitos do cinema; apenas um extraordinário belo perfil, com um sorriso irresistível e cativante.
A força do tempo, no entanto, nesse caso de Richard Gere, conta a seu favor. Seu desempenho de Leonard Fife quase octogenário, embora alguns críticos não vejam assim e até desgostem do filme Oh! Canadá, é forte e seguro, convincente na figura de um homem autoritário, ás vezes um pouco confuso, sempre rabujento e mal humorado.
Fife reconhece, na presença da sua companheira de vida amorosa e profissional, Emma (Uma Thurman), algumas passagens obscuras da sua história que ela não conhecia, e desconstrói a ideia de super homem cuja reputação teria sido, na realidade (ou não?) construída e determinada por meias verdades.
A sequência final do filme de Schrader, com o carro de Leonard Fife/jovem seguindo as curvas das estradas que correm entre as belas florestas canadenses, ao som de Oh! Canadá é uma despedida perfeita. Há pouco mais a dizer sobre esse filme imperdível.
Em tempo: a versão em francês do livro O Canadá, (Foregone), da Editora Babel, é de 2022. Lançado um ano antes da morte do autor.
Léa Maria Aarão Reis é jornalista.
lustração de capa: Reprodução
Respostas de 5
Muito bom
Obgdo, Léa Maria, por mais um de seus artigos brihantes, que coincide em gênero, número e grau – a partir da feliz apropriação no título de citação de passagem da letra do hino nacional canadense que de fato capta a alma daquele país – com a minha memória afetiva daquele país-continente, em que passei três felizes anos (1971/74) quando era Primeiro Ministro o pai do atual Chefe de Governo.
Mais uma vez, tu me mostras o caminho para ver um bom filme. Te agradeço, Léa.
Obgdo, Léa Maria, por mais um de seus artigos brihantes, que coincide em gênero, número e grau – a partir da feliz apropriação no título de citação de passagem da letra do hino nacional canadense que de fato capta a alma daquele país – com a minha memória afetiva daquele país-continente, em que passei três felizes anos (1971/74) quando era Primeiro Ministro o pai do atual Chefe de Governo.
Excelente resenha de um belo filme.