Por CARLOS ÁGUEDO PAIVA*
Estou na terra, no céu ou no inferno?
Dormindo ou acordado, louco ou bem aconselhado? William Shakespeare, Uma Comédia de Erros.
A Economia Gaúcha sob a égide da “acholocracia”: uma tragédia de erros
No ano de 2001, a Federasul promoveu um debate entre economistas com experiência em planejamento econômico do setor público para tratarem de um tema crucial: “qual a estratégia mais vantajosa para o desenvolvimento econômico estadual? Atração de investimentos externos ou apoio e promoção das empresas e sistemas produtivos já estabelecidos no território?” Desde logo, todos os presentes manifestaram acordo num ponto crucial: essas estratégias não são excludentes, mas complementares. A questão legítima é apenas uma: qual delas deve ser priorizada?
A Federasul convidou quatro palestrantes para “abrir e animar o debate”. Fui um dos convidados e, para minha felicidade, dividi a mesa com o amigo Cézar Busatto, de saudosa memória. Busatto tinha ocupado a Secretaria da Fazenda durante o Governo Antônio Britto e saiu em defesa da política adotada nessa gestão, marcada por um movimento audacioso – e custoso! – de atração de investimentos. Eu divergi e defendi o ponto de vista de que os benefícios – por unidade de custo – obtidos com o apoio às empresas já instaladas no RS são, em geral (e com raras exceções), muito superiores àqueles obtidos com a atração de investimentos. E argumentava que, se o Governo Britto tivesse concedido a empresas e cooperativas gaúchas (como Marcopolo, Randon, SLC, Todeschini, Oderich, Azaleia, Cotrijuí, CCGL, Santa Clara, Piá, Languiru ou Dália) a METADE dos benefícios que concedeu à GM, à Dell, à Philip Morris e Souza Cruz, o RS estaria muito melhor do que estava na entrada do século XXI. Quando eu fiz essa declaração, Cezinha pegou o microfone e disse algo que ficou gravado na minha memória para sempre:
– Paiva, por favor, raciocina comigo! O RS é o maior produtor de tabaco de todo o Brasil; respondemos por mais de 50% da produção total. Mas não tínhamos uma única fábrica de cigarros! Você realmente acha que o governo do Estado deveria ficar parado diante de um absurdo deste?
A pergunta do amigo Cézar me deixou surpreso. Não me parecia crível que ele desconhecesse a resposta para sua própria pergunta. Cheguei a cogitar em não tratar da questão em público e conversar com ele após o debate. Mas o tema era sério demais. E tive que responder:
– Meu caro Cézar, por que nunca perguntaste aos dirigentes da Souza Cruz e da Philip Morris o motivo deles não terem plantas industriais no RS? Você acha que essas empresas não contam com economistas capazes de analisar as vantagens e desvantagens das diversas opções de localização? … Cézar, uma carteira de cigarro é uma folha de tabaco cheia de ar; um contêiner de tabaco seco e prensado se transforma em dez contêiners de cigarro. Não faz sentido produzir cigarro no RS e vender para o Pará!
Em defesa do amigo Busatto devo dizer que a política de atração de investimentos do Governo Britto não era definida dentro da Secretaria da Fazenda. Ela era articulada diretamente no centro do governo (Palácio Piratini), com apoio da Secretaria de Desenvolvimento (SEDAI). Mais: Busatto era um homem íntegro e um economista competente, que deu grandes contribuições ao RS, seja como cientista social, seja como agente público. Mas é justamente por isso que, ainda hoje me pergunto: como meu amigo pode ter concordado com as exorbitantes concessões feitas à Philip Morris e à Souza Cruz sem questionar o custo-benefício das mesmas? Afinal, mesmo sem ter participado das negociações iniciais, a concessão das vantagens fiscais passava pela Fazenda!
Vale notar que, quando o cigarro é produzido noutro Estado, ao ingressar no RS, a Fazenda estadual aufere parte do ICMS; vale dizer: o Governo do Estado tinha um rendimento líquido não desprezível ao importar os cigarros produzidos no Sudeste. Com o “Fundopem Turbinado” de Britto, a Fazenda renunciou a TODO o ICMS, cedeu terreno e ofereceu financiamento com juros subsidiados. Mas, findo o programa de vantagens fiscais, as empresas abandonaram o Estado. É tão difícil de acreditar que eu vou insistir. SIM, VOCÊ ENTENDEU BEM: AS RECEITAS DO GOVERNO DIMINUÍRAM, SUAS DESPESAS AUMENTARAM (PARA APOIAR AS EMPRESAS) E, PASSADOS POUCOS ANOS, ELAS FORAM EMBORA!
Eu poderia contar inúmeras histórias como essa. Inúmeras. Sobre a laminadora que nós NÃO temos. Sobre o apoio exorbitante à planta da Nestlé em Palmeira das Missões; que já foi embora, deixando um rastro de falências nas pequenas cooperativas produtoras de laticínios. Sobre leilões e concessão de rodovias pedagiadas, que elevaram nossos custos logísticos sem trazer qualquer melhoria nos serviços. E várias outras histórias. Mas creio que o exemplo das exorbitantes concessões às fábricas de cigarro – que foram aceitas até por um economista da estatura de Busatto – é suficiente para demonstrar o meu ponto. Qual seja:
O PLANEJAMENTO PÚBLICO DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO DO RS PASSA POR UMA CRISE PROFUNDA E ASSUSTADORA. E ESSA CRISE É UM DOS PRINCIPAIS DETERMINANTES DO PÉSSIMO DESEMPENHO DA ECONOMIA GAÚCHA
Na verdade, trata-se de uma via de mão dupla: o desempenho medíocre da economia do RS nos últimos anos – especialmente quando comparado ao elevado dinamismo de nossos vizinhos, SC e PR -, gera um profundo desconforto e uma aflição legítima. A busca por explicações, a ansiedade por respostas, alimenta a emergência de propostas carentes de fundamento teórico, que passam a ser aplaudidas e apoiadas sem qualquer avaliação criteriosa, sem qualquer crítica técnica e científica. Há alguns anos, a crítica corrente – e, em grande parte, legítima – ao planejamento público era do abuso de critérios “técnicos” na definição de prioridades, e, por extensão, na desvalorização dos elementos “políticos, sociais, culturais e ambientais”. Hoje, o problema é oposto. Depois da (contra)Revolução Pós-Moderna e da emergência das redes sociais (onde qualquer opinião vale tanto quanto qualquer outra), saímos da “tecnocracia” para cairmos na “acholocracia”: não preciso esgrimir qualquer argumento técnico para defender minhas propostas. Acho, logo sei. E, se tiver poder, imponho aquilo que acho!.
O problema é que o Rio Grande do Sul não tem mais o direito de errar. Já erramos demais. Por demasiado tempo. E vimos errando há muito tempo. E corremos um sério risco de incorrermos em um erro ainda maior do que que cometemos com a atração das fábricas de cigarros. CORREMOS O RISCO DE AUTORIZAR A CONSTRUÇÃO DO PORTO DE ARROIO DO SAL. …
Acho que o ex-Governador Antônio Britto até ficaria feliz se isso viesse a acontecer. Pois as consequências perversas de um eventual Porto em Arroio do Sal serão tamanhas para TODO O RS (a começar pelo Litoral Norte) que as perdas financeiras derivadas da atração da Souza Cruz e da Philip Morris irão virar uma mera nota de pé de página no (grosso) Almanaque das Loucuras Gaudérias.
O Negacionismo Progressista: o outro lado da mesma moeda
Estou longe de fazer parte do fã-clube de Jornada nas Estrelas. Sempre preferi o estilo cômico e despretensioso de Perdidos no Espaço. Mas há um episódio de Star Trek que é absolutamente memorável. Todos os tripulantes da USS Entreprise foram duplicados; e o foram de tal forma que as dimensões “boas” e “más” de cada personagem se corporificavam em versões distintas dos “clones”.
O Capitão Kirk “do mal” era autoritário, paranoico, decidido, voluntarioso, mulherengo e assediador. O Capitão Kirk “do bem” era democrático, ingênuo, indeciso, dócil, assexuado e respeitador. … A ironia é clara: não há só negatividade no “mal”; nem só positividade no “bem”. O Kirk “do bem” tinha tanto medo de errar e de desrespeitar os demais tripulantes, que, por vezes, negava a existência de problemas. E acabava colocando os tripulantes em tantas enrascadas quanto o Kirk “do mal”. Esse último, por oposição, estava sempre convicto de suas teses. E quase abre uma guerra entre as duas USS Enterprises quando o Kirk “do bem”, do alto de sua ingenuidade, recebe uma missão dos Klingons para negociar um tratado de não agressão.
Creio que o roteirista de Star Trek jamais visitou o RS. Mas, se tivesse vindo aos pagos, eu teria certeza de que esse episódio foi baseado em nós. O divisionismo é uma constante em nossa história. Não importa o tema, não importa a causa: temos que ter dois lados, precisamos de oposição: Farrapos x Monarquistas; Chimangos x Maragatos; Gringos x Pelo Duro; Sulistas x Nortistas; Gremistas x Colorados. E tudo é motivo para uma “boa guerra”.
Houve um tempo, é verdade, em que o Rio Grande se dividia em dois, mas os Capitães Kirks dos dois lados eram íntegros em suas características “positivas” e “negativas”. Tudo mudou após a (Contra)Revolução Pós-Moderna. A crítica ao conhecimento científico e à tecnocracia também vai se impor no campo da esquerda. A diferença entre os dois padrões críticos encontra-se no fato de que, enquanto a direita cultua a achologia do líder, a esquerda tem certeza de que todas as achologias de todas as pessoas têm o mesmo valor e só podemos decidir qual o caminho tomar quando emergir um consenso ou uma clara maioria. E, até lá, nada deve mudar. E para justificar a inação emerge o negacionismo: não há pressa, pois, na essência, tudo vai muito bem obrigado.
O Capitão Kirk “do mal” tem consciência de nossos problemas e é ansioso por mudar tudo a toque de caixa, subsidiando fábricas de cigarro ou promovendo a instalação de um Porto em Arroio do Sal. De outro lado, o Capitão Kirk “do bem” não quer mudar nada enquanto não houver consenso. E acalma a “malta” dizendo que o RS vai muito bem, que nossos problemas são menores. Afinal, somos uma economia industrializada, temos um dos maiores IDHs do Brasil, temos o maior número de bacharéis, Mestres e Doutores per capita do Brasil, nossa população é muito culta, temos as melhores Universidades do país, temos os melhores Parques Tecnológicos. Enfim, somos tudibão!
Pergunta que não quer calar: se a turma “do bem” prefere negar o óbvio, como impedir que a malta caia nas cantilenas e fantasias salvacionistas daqueles que produzem (falsas) “soluções” aos borbotões? Mais uma pergunta “incalável”: será que a alcunha de “caranguejos” dada à turma do “do bem” é tão injusta assim?
As perguntas acima são retóricas. Eu mesmo não tenho dúvida alguma de que as recentes conquistas políticas da turma do “Kirk do mal” e o aplauso generalizado aos seus planos mirabolantes de atração de “grandes empreendimentos” para salvar o Rio Grande Amado é indissociável da falta de propostas da turma do “Kirk do bem” e suas tentativas de afirmar que “tudo vai bem e nada precisa ser mudado”. Entre o voluntarismo e o negacionismo, a malta opta pela primeira alternativa. E tem razão de fazê-lo. Pois o tempo urge e
O Rio Grande Amado vai muito mal, obrigado! (Mas o Litoral AINDA vai bem)
Na entrada do século XXI, em 2002, o RS respondia por 40,92% do PIB da Região Sul do Brasil; o PR respondia por 36,53% e SC por meros 22,55%. Em 2023 (último ano para o qual temos dados consolidados), o RS respondeu por 35,27% do PIB (uma perda de 5,65 pontos percentuais!); o Paraná consolidou-se como a maior economia da Região Sul, respondendo por 36,17% do PIB regional (variação de 0,36 pontos percentuais); e Santa Catarina passou a responder por 28,56% do PIB da região (avanço de 6.01 pontos percentuais).
Ainda mais expressiva e preocupante são as diferenças na dinâmica demográfica dos três Estados do Sul, representadas no Quadro 1, abaixo.
Quadro 1: Evolução da População em Territórios Selecionados

Fonte: IBGE – Censos Demográficos
O primeiro a notar é que a taxa de crescimento da população gaúcha é muito inferior à taxa nacional e à dos demais Estados do Sul. Mais importante ainda: essa taxa vem declinando. Na primeira década do século, a população do RS cresceu em pouco mais de 500 mil pessoas. Já, entre 2010 e 2022 (ou seja: em 12 anos), a população gaúcha cresceu menos de 200 mil habitantes (1,77%). Nesse último período, a população do PR cresceu cinco vezes mais que a população do RS (999.854 pessoas; taxa de 9,57%), enquanto a população de SC cresceu em 1.361.925 (21,8%). Se tomamos por referência o período entre 2000 e 2022, a população de SC cresceu estonteantes 42,04%; enquanto a população gaúcha cresceu apenas 6,82%. O resultado desses diferenciais de crescimento populacional é muito similar ao resultado dos diferenciais de crescimento do PIB: no início do século, o RS respondia por 40,57% da população da Região Sul, enquanto SC e PR respondiam, respectivamente, por, 21,34% e 38,09%. Em 2022, o RS passou a responder por 36,35% da população (-4,22 pontos percentuais), SC por 25,42% (variação de 4,08 p.p.) e o Paraná passou a ser o Estado mais populoso, respondendo por 38,23% da população total (variação de 0,14 p.p.).
Por que a dinâmica demográfica é tão importante? Porque ela não reflete apenas o crescimento vegetativo, mas, igualmente bem, os fluxos migratórios. O IBGE ainda não liberou dados oficiais para os fluxos migratórios interestaduais. Mas, se tomamos por referência os dados de crescimento vegetativo da segunda década desse século, concluímos que o RS expulsou entre 300 e 400 mil pessoas de seu território; enquanto SC recebeu entre 700 e 800 mil pessoas de outros Estados da Federação. Ora, a principal determinação dos fluxos migratórios é a busca de melhores condições de vida, o que envolve variáveis como oportunidade de emprego, renda do trabalho assalariado, segurança e estabilidade nas ocupações e qualidade dos serviços públicos básicos (saúde, educação, segurança etc.).
Mas ainda mais preocupante do que o baixo crescimento da população do RS como um todo é a disparidade regional da dinâmica demográfica. Observe o Mapa 1, abaixo.
Mapa 1

Fonte: IBGE
Todas as regiões que estão hachuradas de vermelho vêm apresentando decréscimo populacional: a cada ano que passa, diminui o número de domiciliados nesses territórios. Em “economês” chamamos esse tipo de evento de “circuito de causação circular cumulativa”. Quando a população diminui, cai o número de consumidores; o que leva à depressão da demanda sobre o segmento econômico mais empregador: o comércio e demais serviços. A depressão do consumo leva à queda do faturamento das empresas desse segmento. As mais frágeis, abrem falência e demitem seus funcionários. Os novos desempregados buscam alocação produtiva em novos territórios, aprofundando a migração e a crise do comércio e dos serviços. E esse ciclo só tende a se aprofundar.
As regiões hachuradas em amarelo ocre são aquelas que ainda não apresentam decréscimo populacional, mas seu crescimento é tão pequeno que é inferior ao padrão do RS. As regiões hachuradas em verde, apresentam crescimento populacional superior à média do Estado, mas inferior à média brasileira. Entre 2010 e 2022, apenas três regiões do RS apresentaram crescimento populacional acima da média do país: Litoral, Hortênsias e Vale do Taquari. Essa última região foi a mais atingida pelas enchentes de 2024, e todos os dados estatísticos apontam para uma perda populacional acelerada ao longo do último ano. É muito provável que ela passe a ter uma dinâmica demográfica bastante insatisfatória de agora em diante. O que nos deixa com apenas duas regiões que absorvem população acima da média brasileira: HORTÊNSIAS E LITORAL.
O que essas duas regiões têm em comum? Elas são regiões turísticas, onde parcela expressiva da população da Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA) e da Região Metropolitana da Serra Gaúcha (RMSG) mantém uma segunda residência. Com o envelhecimento da população do RS – que tem sido acelerado, dado o abandono da população mais jovem, que migra para outros Estados em busca de emprego e renda -, essas regiões vêm se transformando no domicílio principal de aposentados de renda alta e média-alta. Essa transumância é visível em dois dados: 1) na diminuição da população da RMPA (veja o Mapa 1 acima); 2) na depressão da taxa de crescimento populacional da Serra, que até pouco tempo era a região com melhor desempenho demográfico do RS.
Atualmente, a única região do Estado que apresenta um desempenho demográfico superior a Santa Catarina é o Litoral: entre 2010 e 2022 o número de domiciliados no Corede Litoral passou de 296.083 para 372.693, um crescimento de 76.610 pessoas (taxa de 25,87%). Se o leitor se der ao trabalho de voltar ao Quadro 1 acima, verá que o crescimento da população do RS nesse mesmo período foi de 189.036 pessoas. O que isso significa? Que a variação da população do Litoral respondeu por 40,53% do crescimento da população gaúcha. Imagine, agora, que, ao invés de ir se estabelecer no nosso Litoral Norte, essa população migrasse para o Litoral de Santa Catarina. As consequências seriam dramáticas!
Por quê? Porque o aposentado é um agente demandante absolutamente ímpar: ele NÃO entra no mercado disputando com os agentes produtivos já existentes; ele não oferta nada – nem mão-de-obra, nem produtos, nem serviços – ele apenas demanda. E sua demanda mobiliza o comércio e os mais diversos serviços. E essa mobilização atrai produtores, agentes em idade ativa, que, por sua vez, mobilizam a construção civil, os negócios imobiliários e as atividades financeiras. Mais: ao demandarem bens e serviços, os aposentados não alimentam apenas a geração de trabalho e renda: eles geram impostos, que sustentam as (deficitárias) Receitas Estadual e Municipais. … Esse grupo social é um verdadeiro “Tesouro Riograndense”. E precisa ser tratado com todo o carinho e cuidado. Se essa população se evadir do RS, se ela buscar abrigo em outras regiões – no Litoral de Santa Carina, no Litoral do Uruguai, ou na bela Serra Catarinense – o RS poderá vir a apresentar taxas negativas de crescimento populacional. E nossos graves problemas fiscais vão se tornar ainda maiores. Pois o Estado continuará pagando a aposentadoria de boa parte dos migrantes. Mas a arrecadação fiscal irá diminuir. E o circuito de causação circular cumulativa vai levar o Rio Grande Amado à bancarrota.
Uma última observação antes de adentrarmos no tema “Porto de Arroio do Sal”. A despeito da migração para o Litoral, a maior parte dos novos moradores mantém vínculos de demanda com a RMPA. Entre 2010 e 2022, apenas o município de Porto Alegre perdeu 76.781 domiciliados; praticamente o mesmo número de pessoas que adotaram o Litoral como novo domicílio. Não obstante, dada a proximidade da RMPA com a Conurbação do Litoral Norte, a maior parte dos migrantes preservam relações de demanda com os serviços da RMPA, a começar por um dos setores mais importantes e qualificados da economia metropolitana: os serviços de saúde. Essa relação, contudo, não poderá ser sustentada se a população que, hoje, vive no Litoral Norte, se evadir para Santa Catarina. O ponto para o qual quero chamar a atenção é simples: o impacto de uma eventual migração da população que, hoje, vive no Litoral Norte para Santa Catarina não se dará apenas sobre o comércio e os serviços locais. Todo o setor de serviços complexos da RMPA será abalado se a atratividade do Litoral Norte for abalada. Toda a economia da RMPA se ressentirá.
A peculiaridade do litoral gaúcho e o Porto Impossível
Reza a lenda que Deus teve um cuidado todo especial ao planejar o território que viria a ser o Brasil, oferecendo um clima prazenteiro, água em abundância, terras muito férteis e o mais lindo litoral do mundo. Mas, enquanto desenhava as baías e enseadas da nossa costa, o Senhor pegou no sono justo quando ia desenhar o litoral da República do Piratini. E sua mão escorregou, num traço reto. Por isso, herdamos um litoral carente de baías e entrâncias. … A lenda é linda. Mas a geografia e a geologia dão uma explicação distinta. A verdade é, que na costa atlântica do RS encontram-se e confrontam-se duas correntes marítimas extremamente violentas: a Corrente das Malvinas, que vem do sul, e a Corrente Equatorial do Brasil, que vem do norte. Ao se encontrarem, a corrente das Malvinas, mais fria, descende e escava o solo arenoso, jogando areia para os dois lados. O resultado é essa extensa faixa litorânea arenosa e carente de baías, de ancoradouros e portos naturais. Em priscas eras passadas, a costa oceânica do RS correspondia à costa oeste da Lagoa dos Patos. Mas a “briga” das correntes marítimas nos deu essa longa área extra, arenosa e repleta de lagoas, lagos e lagunas.
A “luta” entre as duas correntes marítimas torna o nosso “mar de fora” extraordinariamente revolto, com alterações abruptas nos depósitos de areia e na profundidade da beira mar. Como se isso não bastasse, o RS encontra-se numa área de anticiclone. Vamos simplificar ao máximo a explicação do que isso significa. Perdoem-me os geógrafos e geólogos: é preciso ser simples para ser entendido. No popular: é como se tivéssemos um ventilador no céu voltado para baixo, espalhando vento nas mais diversas direções. O que torna nosso mar ainda mais revolto.
Como a Lagoa dos Patos se estende de norte a sul ao longo de quase toda a nossa costa, ela criou uma espécie de barreira no acesso ao mar. O resultado foi que apenas as porções ao norte e ao sul da Lagoa vieram a consolidar balneários atrativos aos veranistas. E em função da proximidade com a RMPA e com a RMSG, a orla norte veio a se tornar a sede dos balneários mais demandados e urbanizados. A distância entre Quintão (balneário no sul do litoral Norte, que já se encontra no estreito entre o Atlântico e a Lagoa dos Patos) e Torres (o balneário mais ao norte da orla, vizinho a Santa Catarina) é de pouco mais de 100 km. Não existe uma única enseada e toda a região encontra-se conurbada; vale dizer, trata-se de uma aglomeração urbana contínua, com raríssimas áreas que ainda não se encontram totalmente urbanizadas. Na verdade, há duas faixas de baixa ocupação, que geram descontinuidade na conurbação: a faixa entre a praia do Magistério (ao sul de Pinhal) e Quintão; e a faixa entre Cidreira e Nova Tramandaí (os Lençóis Cidreirenses). Não obstante, essas duas áreas ainda não ocupadas foram descartadas para a instalação do “Porto Impossível”. Por quê?
A justificativa fornecida pelos defensores do “Porto Impossível” é a batimetria, que teria sido realizada pela Marinha e que teria identificado Arroio do Sal como o balneário com maior profundidade na orla norte. Mas há dois problemas nesse argumento. O primeiro deles é que, em função das correntes marítimas “em luta” no nosso litoral, a profundidade do mar ao longo da costa é objeto de alterações contínuas e abruptas. O segundo problema é que a alegação dos proponentes do Porto de Arroio do Sal contradita com os estudos do Instituto de Oceanografia da Fundação Universidade de Rio Grande. Malgrado a instabilidade que caracteriza a profundidade do mar em nossa costa, após anos de estudos, a FURG apresentou o mapa batimétrico “normal”, que está reproduzido abaixo. Ele reproduz a batimetria de toda a costa gaúcha. Mas solicito seu foco na porção norte do Mapa 1.
Mapa 2: Batimetria do Litoral do RS com respectivas isóbatas

Fonte: FURG – Plataforma Continental do RS
Acompanhe, por favor, a primeira isóbata, que registra a região em que a profundidade alcança 20 metros. Ela faz uma curva em direção à costa e se aproxima desta no território entre a Lagoa Itapeva (ao norte) e a Lagoa do Quadros (ao sul), onde está situado o município de Terra de Areia. O que isso significa? Que a profundidade de 20 metros está mais próxima da costa em Terra de Areia; e não em Arroio do Sal. Na verdade, a isóbata de 20 metros sofre uma forte inflexão para leste, afastando-se da costa em direção ao mar a partir da latitude -29,613320; no extremo sul da Lagoa da Itapeva. Na área destinada (segundo o projeto) ao Porto Meridional em Arroio do Sal (vide Foto 1, abaixo), a isóbata de 20 metros encontra-se a mais de 5 kms da orla. Como se isso não bastasse, ao contrário de Terra de Areia – onde não há qualquer obstáculo geográfico no trânsito entre a BR-101 e sua orla – o acesso à área destinada ao Porto de Arroio do Sal é cerceado pela Lagoa de Itapeva. Pergunta-se: qual o real motivo da opção por Arroio do Sal? …
Não sabemos. Só podemos especular. Mas há um elemento interessante que, talvez, possa contribuir para o esclarecimento dessa charada: a dificuldade de acesso à orla em Arroio do Sal em função da Lagoa da Itapeva determinou uma pequena descontinuidade na conurbação litorânea entre Terra de Areia e Torres. Essa descontinuidade pode ser observada na foto, abaixo, extraída do Google Maps. É exatamente nesse ponto que está prevista a instalação do Porto Meridional.
Foto 1: Área de Arroio do Sal destinada ao Porto Meridional

Fonte: Google Maps
Ora, isso já é, em si mesmo, um problema. De acordo com os dados da FURG, a opção pela área não foi derivada de qualquer vantagem na profundidade do oceano nesse ponto. A opção adveio da existência de um pequeno “vazio” na conurbação do litoral norte. Um vazio que se explica exatamente da dificuldade de acesso à área. E é ali que se planeja construir um Porto que deverá receber centenas (ou milhares) de caminhões a cada mês! … Hellooooo! Pliss!
Como se isso não bastasse, há um outro problema que é comum à toda a nossa costa “arenosa e lacustre”. Entre Torres e Pinhal existem aproximadamente 40 lagoas cujas águas se comunicam por baixo do solo. Todo o terreno é hidratado e instável. Para que se construa um retroporto nessa área capaz de sustentar inúmeros containers empilhados não bastaria “pavimentar” o terreno: ele terá que ser reconstruído, ele terá que ter fundações profundas. Os custos de uma tal obra de engenharia vão muito além dos custos financeiros: ela irá afetar todo o sistema de comunicação e trocas das águas subterrâneas, com consequências ambientais imprevisíveis.
Como se isso não bastasse, há um desdobramento ainda mais perverso. Como a área de retroporto é limitada (em função da Lagoa de Itapeva) e como os custos de pavimentação do retroporto serão extraordinariamente elevados, é de se esperar – caso o Porto venha a ser instalado e alcance a movimentação de carga necessária para se viabilizar economicamente – que emerja um descompasso entre a oferta de carga e a capacidade de estocagem do Porto. Esse é um problema comum e recorrente em portos das mais distintas dimensões. E não há por que esperar que seja distinto numa instalação com limites estreitos para a construção de um retroporto. Qual a consequência disso? Simples: os caminhões impossibilitados de realizar as entregas em tempo vão se acumular no entorno.
Muitos daqueles que defendem o Porto de Arroio do Sal tomam como exemplo e referência o Porto de Itapoá, no norte de Santa Catarina. Creio que uma visita à Itapoá seria de grande utilidade para que se pudesse entender o absurdo da comparação. Desde logo, o Porto de Itapoá não é um porto localizado em mar aberto: ele se encontra dentro da Baía de Babitonga, numa região de águas tranquilas. Não há como comparar com nosso mar aberto e agitado. Além disso, o Porto encontra-se a grande distância do Balneário de Itapoá, que está voltado para o mar. A distância viária entre o Porto e o centro do Balneário é de aproximadamente 10 kms (há duas rotas). Mais: por se localizar numa baía, o retroporto de Itapoá é amplo e o terreno é firme.
Porém, a despeito de todas as diferenças, há um elemento central facilmente perceptível por qualquer visitante da região portuária: há um enorme acúmulo de caminhões estacionados no entorno do Porto à espera de realizar a entrega dos containers. Esses caminhões ocupam as vias laterais ao porto. Alguns condutores usam os veículos como dormitório improvisado e transformam as calçadas (quando as há; o que é raro!) ou o entorno do “estacionamento” em espaço doméstico, cozinhando alimentos e fazendo a higiene pessoal ao ar livre. É bem verdade que esse não é o caso geral. Outros tantos se acomodam em pensões e pousadas de baixo custo e fazem suas refeições em bares e restaurantes de custo ainda menor. De qualquer forma, o entorno do Porto de Itapoá não difere em nada do entorno de inúmeros outros portos; sejam nacionais, sejam estrangeiros.
Enquanto coordenador do Grupo de Pesquisas do Litoral Norte do RS (UFRGS-FACCAT-CNPq), conduzi uma pesquisa sobre a viabilidade do Porto de Arroio do Sal e, entre as atividades, visitei o Porto de Itapoá. Nessa visita, conversei com diversos moradores do município que mantinham residência na Baía (por oposição ao balneário propriamente dito, voltado para o mar aberto). Não encontrei um único relato destoante: o porto trouxe benefícios para os pequenos comerciantes e malefícios para os moradores que buscavam a tranquilidade e segurança. Houve uma escalada nos furtos, na prostituição e no tráfico de drogas. O preço dos imóveis cresceu, num primeiro momento, juntamente com os aluguéis. Mas, pouco tempo depois, veio a “ressaca”. Com o término das obras, muitos trabalhadores foram demitidos, a demanda pelos imóveis caiu, a insegurança aumentou e inúmeros moradores optaram por vender suas residências. Alguns foram para o extremo norte da orla (fora da baía), outros foram para São Francisco do Sul (do outro lado da Baía) e outros, ainda, migraram para as praias do Paraná.
É importante entender que essa dinâmica se deu a despeito do Porto de Itapoá encontrar-se distante do balneário, fora da área de veraneio e a despeito desse porto contar com uma vasta área de retroporto; e poder expandi-la a baixos custos. Pergunto: o que acontecerá com os imóveis dos balneários mais “gentrificados” do Litoral Norte do RS – Torres e Capão da Canoa – se for inaugurado um Porto a pouquíssimos kms da sede desses dois municípios? Um porto em mar aberto, no centro do balneário de Arroio do Sal? Pensem comigo: o que aconteceria com os imóveis e com a atratividade de Camboriú se fosse criado um Porto bem no meio do balneário? Com caminhões estacionados pelas ruas, tal como acontece em Itapoá? Pior: imagine uma lagoa atrás de Camboriú e um retroporto mínimo com engarrafamento de caminhões para descarga. Deu para imaginar? Então me digam, você continuaria veraneando lá? Você acredita que o preço do seu imóvel permaneceria o mesmo?
A pergunta é, mais uma vez, retórica. Mas, mesmo assim, vou respondê-la: um porto em mar aberto no coração da conurbação do Litoral Norte do RS vai promover o abandono desse território pela maioria daqueles que o elegeram como espaço de lazer, descanso, tranquilidade e segurança. O RS já apresenta as menores taxas de crescimento demográfico do Brasil. Só nos resta uma região com crescimento demográfico expressivo. Mas a turma do Capitão Kirk “do mal” tem convicções e certezas. E, como tantas vezes antes, vai dar mais um tiro no pé do Rio Grande Amado. Um pé que já não aguenta mais de tanto balaço!
Não bastam convicções, é preciso ter provas!
Vamos começar pelo final: por que há tantos adeptos do projeto do Porto de Arroio do Sal? Donde emerge tanta “convicção” de que ele é a “salvação da lavoura gaudéria”? … Nós já apontamos alguns elementos acima: o desempenho econômico e demográfico medíocre do RS vem alimentando uma ansiedade por mudanças, por novos projetos, por novos investimentos, por soluções. Entre o negacionismo da turma do Capitão Kirk “do bem” – que se recusa a ver o óbvio por medo de tomar decisões – e a ousadia da turma que propõe mudanças, a segunda opção parece melhor. Mas há um elemento a mais que precisa ser reconhecido: o projeto do Porto do Litoral Norte busca responder a demandas absolutamente legítimas de enfrentamento dos sérios gargalos logísticos do RS.
Na verdade, em função dos inumeráveis equívocos das políticas públicas dos últimos anos, a economia do RS está sufocada por inúmeros gargalos. O logístico é apenas um deles. Mas é um gargalo importante e que precisa se enfrentado. E temos de fazê-lo com a máxima urgência. O problema é que essa proposta de enfrentamento é totalmente equivocada. E não só porque ela vai gerar uma grande perda de bem-estar e qualidade de vida para a população da conurbação litorânea e estimulará a migração para Santa Catarina, impondo o aprofundamento da crise econômica do Estado. O problema é ainda maior. Explico-me.
Por incrível que possa parecer, os Governos Temer e Bolsonaro nos legaram um referencial primoroso para a avaliação dos custos e benefícios de empreendimentos com grande impacto social. Em 2018, durante o Governo Michel Temer, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) publicou o Avaliação de Políticas Públicas: Guia Prático de Análise Ex Ante. E em 2021, a Secretaria de Desenvolvimento da Infraestrutura, ligada ao Ministério da Economia, sob direção de Paulo Guedes, produziu um documento intitulado Guia Geral da Análise Socioeconômica de Custo-Benefício de Projetos de Investimento em Infraestrutura. Se fossem seguidas as orientações desses dois guias, não haveria polêmica alguma: estaríamos unidos lutando pelo enfrentamento dos gargalos logísticos do Estado da forma consistente. Quais as orientações presentes nesses dois guias? São fundamentalmente três as orientações:
- Após anos de pesquisas e acompanhamentos realizados nos mais distintos países do mundo, demonstrou-se que as previsões de custo dos projetos de infraestrutura são sistematicamente subestimadas; via de regra porque são deixados de lado obras complementares que, “se supõe”, serão realizadas por outros agentes, sejam públicos sejam privados. É necessário impor um multiplicador de “risco” aos custos projetados pelos agentes para que se possa chegar ao valor mais próximo da realidade;
- As avaliações de custo-benefício só são consistentes se levarem em consideração as alternativas existentes; o fato de um empreendimento qualquer apresentar um custo “x” e proporcionar um benefício “2 x” não é suficiente para sua aprovação. Para tanto é preciso demonstrar que não existe uma alternativa que, com o mesmo custo “x”, gere um benefício de “3 x”. Se houver essa é a alternativa de maior benefício por unidade de custo e é ela que deve ser implementada;
- Na avaliação do custo, é preciso incorporar todos os impactos negativos impostos pelo projeto a todos os agentes sociais e essa avaliação tem que ser feita de forma pública e amplamente divulgada para que a sociedade possa avaliar sua pertinência e, eventualmente contestá-la, se porventura estiverem sendo desconsiderados impactos social e economicamente perversos.
Ora, nenhuma dessas regras foi seguida no Projeto do Porto de Arroio do Sal. Comecemos pela primeira delas. Sabemos bem que os principais agentes envolvidos na defesa e promoção do Porto do Litoral Norte são agentes ligados à produção industrial e agrícola dos Coredes Serra e Produção. Estes interesses são legítimos e pertinentes. Mas cabe uma pergunta: qual a rota que será utilizada para que exportadores e importadores da Serra e do Planalto acessem o Porto do Litoral Norte? Seria a Rota do Sol? … Não pode ser, pois a Rota do Sol conta com uma legislação rigorosa para o tráfego de caminhões. Além de haver uma tonelagem máxima, há horários específicos em que os caminhões menores podem trafegar. E esses horários são muito restritos durante a alta temporada de veraneio, entre 1º. de dezembro e 31 de março. Por onde, então, os caminhões trafegarão? Num debate realizado recentemente, ouvi de um ardoroso defensor do Porto de Arroio do Sal que as duas principais rodovias de acesso seriam a RS-122 (para atender os importadores e exportadores da Serra) e a RS-020 (para atender os produtores localizados ao norte de Passo Fundo). Qual o problema? Simples: a RS-122 não é duplicada, é de mão única. Segundo o interlocutor, ela será duplicada com recursos da CSG, Concessionária Caminhos da Serra Gaúcha. …. Será mesmo? E se não for? Este é exatamente o caso previsto nos Guias dos Governos Temer e Bolsonaro: não é possível asseverar que um investimento será rentável se ele depende de inciativas de terceiros para se viabilizar. O caso da RS-020 é ainda mais grave: ela sequer está asfaltada atualmente. Supondo que ela venha a ser asfaltada, ela deverá seguir a mesma legislação da Rota do Sol, pois grande parte da rodovia margeia os cânions que separam RS de SC, o que impõe uma declividade que torna o trânsito de caminhões extremamente perigoso. E isto para falar do básico. Mas ainda há mais perguntas. Quem arcará com os custos de alteração do sistema viário para garantir o acesso ao Porto? Seriam necessárias modificações profundas na BR-101. Os administradores do Porto arcarão com essas alterações? Ou o ônus irá para o Tesouro do Estado? O acesso ao retroporto será pelas cidades vizinhas? Ou haverá um viaduto sobre a lagoa de Itapeva? Quem arcará com essa obra? Haverá um viaduto sobre a Estrada do Mar? Será o Porto que vai construí-lo?
O segundo quesito tampouco foi contemplado. Qual é o problema do uso do Porto de Rio Grande? Os defensores do Porto do Litoral Norte alegam que o principal problema é a distância. Bem, existe um projeto federal de construção de uma ferrovia ligando o norte do Estado ao Porto de Rio Grande, a ferrovia Norte-Sul. As obras do braço sul dessa ferrovia – que cortará PR, SC e RS – devem ser iniciadas brevemente. E o planejamento é que as obras comecem pelo PR. Mas isso não é impositivo. Se houvesse uma mobilização coletiva pela construção do segmento do RS antes de suas extensões para o norte, as obras poderiam ter início em nosso Estado. Argumentos não nos faltam. O governo federal tem uma dívida histórica com o RS em termos de infraestrutura. E o Estado passou por sérias intempéries climáticas que abalaram a estrutura viária do Estado. Os custos de produção de um tal sistema logístico ficariam a cargo do governo federal. Por que não estamos nos mobilizando por essa alternativa ao invés da construção do Porto do Litoral Norte?
Sobre o terceiro quesito já falamos o necessário. Aliás, eu venho falando sobre os impactos perversos do Porto para o bem-estar da população lá domiciliada há anos. Mas a impressão que tenho em cada debate que participo com aqueles que defendem a construção do Porto em Arroio do Sal é a de que os debatedores nunca ouviram falar em tais impactos, que desconhecem completamente os riscos que o Porto impõe para a economia do litoral e por extensão, para toda a economia gaúcha. O que se extrai daí? Que esses elementos não foram levados em consideração, que os custos associados a um movimento migratório em direção às praias de Santa Catarina não foram incorporados à análise. Mas se é assim, só podemos concluir que toda a avaliação de custo-benefício foi malfeita.
Em suma
Haveria muito mais a dizer sobre o Porto, inúmeros outros argumentos para contestá-lo. Toda a discussão com a sociedade foi malfeita, mal encaminhada. A cada debate emergem novidades. Por exemplo: num debate recente do qual participei fui informado por um dos mais ardorosos defensores da empreitada que minhas críticas às restrições do retroporto em função da estreita faixa de terra entre a Lagoa de Itapeva e a orla estavam equivocadas, pois a intenção seria a de aterrar uma parte da orla, tal como foi feito recentemente no Balneário Camboriú. O fato de que isso ampliará os custos do empreendimento, o fato de que a viabilidade dessa proposta é duvidosa (tendo em vista as características peculiares do mar na orla do RS), o fato de que uma tal estratégia ampliará ainda mais os impactos ambientais da obra não parecem causar qualquer preocupação ou constrangimento. A cada vez que se levanta uma questão, uma dúvida, um problema, surgem soluções mágicas e – do meu ponto de vista – algo mirabolantes. Que ferem totalmente os critérios vigentes para a avaliação do custo-benefício de obras de grande impacto social, econômico e ambiental. Quanto mais “esclarecimentos” eu recebo nos debates dos quais participo, mais eu me convenço de que o projeto está assentado primordialmente em desejos, em anseios, em vontade. Mas não se sustenta em pé. Não se tomarmos os critérios estabelecidos pelas normativas sobre avaliação de custo-benefício dos governos Temer e Bolsonaro.
Eu consigo entender a demanda dos empresários. E tenho todo o respeito pela pressa, pela urgência de soluções. A Economia Gaúcha vai mal. As empresas gaúchas precisam de apoio. E quando emerge uma esperança, é normal, é legítimo, se apegar a ela. Mas cabe aos gestores públicos e às suas equipes, aos técnicos em Planejamento do Governo Estadual avaliar as propostas com rigor. Não é preciso inventar a roda para fazer essa avaliação. Os guias para avaliação de projetos existem e estão disponíveis para todos. Por que não são utilizados? Por que vivemos nesse reino da “acholocracia”? Por que tanto amadorismo em um Estado que foi o berço do Planejamento Público no Brasil? Por que decaímos tanto? Como foi que chegamos a esse patamar?
*Carlos Águedo Paiva é Economista, Doutor em Economia e Diretor da Paradoxo Consultoria Econômica.
Ilustração de capa: IBGE
Respostas de 5
Excelente e correta análise baseada estudos técnicos.
Excelente reflexão – Lembrando que o Kirk do bem e o Kirk do mal habitam irmamente os três poderes da república!
Caro Doutor Paiva, seu estudo e argumentação enriquecem o debate de qual projeto o RS e a Federação devem se empenhar, e o quanto a população gaúcha deve ser informada sobre os impactos que o Porto em Arroio do Sal e consultada sobre apoiar ou não! As externalidades apresentadas devem ser amplamente debatidas, pois o econômico, o social e o ambiental precisam estar alinhados! Parabéns pelo seu trabalho e visão ampla que nos oferece!
O que não se vê nos últimos anos é justamente a busca pelos estudos técnicos antes das decisões do poder executivo. Nem falo do legislativo, visto as barbaridades aprovadas.
O litoral norte gaúcho sempre foi explorado e urbanizado sem projetos em Capão da Canoa aterraram o arroio da pescaria e mudaram sem curso natural…