Jornalismo, violência e verdades incômodas

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De SANDRA BITENCOURT*

Na semana que passou foi comemorado o dia do Jornalista. Dizem, aliás, que abril tem o dia da mentira e o dia da verdade, considerando a principal atribuição desses profissionais.

Desde 1931, a data de 7 de abril é comemorada em homenagem a Libero Badaró, médico e jornalista assassinado pela luta contra o império português no século XIX. Sua morte precipitou acontecimentos como a abdicação de Dom Pedro I e marca no seu tempo a transformação e modernização profissional dessa atividade indispensável para a qualidade democrática. Séculos depois, podemos dizer que o jornalismo se encontra em uma encruzilhada de muitos paradoxos. Seu modelo de negócios é incapaz de sustentar o papel indiscutível que tem (ou tinha): narrar (muitas vezes com exclusividade) os fatos do mundo. O contrato social no qual foi parte soberana por décadas parece solicitar uma revisão urgente e a conquista de novas credenciais de credibilidade e ética.

Muito da autoridade nas funções de formação de opinião, esclarecimento e objetividade informativa foi substituída pela celebridade ou influência de nichos que proliferam nas redes abertas e fechadas da infosfera digital. O gênero jornalístico precisa atender a uma nova lógica em que a reportagem de campo, a apuração minuciosa e o preparo profissional compõem, ou dão lugar ao entretenimento, apelos e recursos que gerem cliques, engajamento e notoriedade instantânea.

Como ensina o professor e pesquisador Martín Barbero, a sociedade da informação é algo impensável em termos de “mera técnica” -instrumentos, máquinas, aparelhos- nem em termos de espaço/ tempo da sociedade nacional. Portanto, nossa reflexão precisa se centrar na universalidade e extensão de um fenômeno que demanda lutar para reconstruir e melhorar uma sociedade democrática, na qual a cidadania precisa ser alimentada de uma consciência. Que tipo de consciência cidadã fomentamos, nós os jornalistas?

A data – de reflexão sobre verdade e papel do jornalismo frente a um ambiente cada vez mais caótico de informação – foi dolorosamente marcada por tragédia de magnitude inigualável. O assassinato brutal de crianças pequenas numa creche de Blumenau ainda nos atordoa pela violência estarrecedora. Atordoa o jornalismo também, implicado em mostrar – ou não – os detalhes da chacina e os nexos dessa barbárie com o ambiente doentio fomentado nos últimos anos no país. Desde o terror até aqui, houve uma escalada de violência e desinformação.

Cabe ao jornalismo, em suas parcelas informativas e de opinião, no modo como organiza suas atitudes argumentativas e seu posicionamento como voz enunciativa autorizada, facilitar os processos de observação, registro e análise de acontecimentos complexos e chocantes.

Diante do horror indizível, vários veículos do país decidiram adotar novo protocolo: não mencionar nome do assassino, não divulgar imagens e nem dar detalhes de sua biografia, considerando que boa parte dos monstros com esse perfil de ação deseja visibilidade. São recompensados pela notoriedade e podem inspirar outras bestas a imitar o mesmo caminho feroz.

A decisão se ampara em estudos que mostram como a cobertura pode ampliar a violência. No entanto, apesar de ser uma resposta plausível, permanecem questões em aberto. Como fica a função jornalística como instância verificadora da verdade, considerando um ambiente informacional desqualificado e caótico? Onde e como as pessoas que receberam torrentes de Fake News sobre o assassino, seu perfil e suas motivações (políticas, ideológicas, patológicas) vão conferir se é fato, se é real? Como instaurar uma discussão mais aprofundada e consequente sobre o adoecimento de parcelas significativas da sociedade? Sobre o ataque permanente à escola como ambiente autônomo e neutro, de formação livre e emancipadora? Sobre a cultura das armas e do revide? Sobre a estranha ideia de que cada um pode lidar com uma verdade sob medida para os seus anseios, pulsões, aspirações e ressentimentos? O que pode o jornalismo diante disso? O que um profissional jornalista requer para, além do sensacionalismo, da emoção e da narração de uma selvageria, contribuir na superação desse tempo miserável que nos coube na história?

A deontologia da nossa profissão já aponta caminhos, muitos normativos, mas muitos sim com factibilidade. Prefiro, no entanto, ilustrar com o que não fazer, de jeito nenhum, em nenhuma hipótese. Jamais. Nunca.

No dia posterior à tragédia, 05 de abril, Alexandre Fetter que se apresenta como líder, comunicador e mentor para transformar pessoas e programas em sucesso, pregou no microfone de uma das maiores audiências do rádio no sul do país o linchamento do assassino. No minuto 34 desse programa (disponível no YouTube), o comunicador defende que o assassino deveria ser acorrentado em praça pública para que todo mundo pudesse fazer o que quisesse com ele. Para isso, apelou ao argumento que evidentemente captura qualquer um com sensibilidade, filhos e medos: como pai eu faria isso. Certamente como mãe eu também desejaria a dor e a aniquilação de quem atacasse minhas filhas. Mas o microfone dos meios de comunicação de massa justamente são regulados como concessões de serviço público para que os desejos e até justos impulsos de vingança não prosperem. Por um motivo simples: justiçamentos não melhoram o ambiente de violência, mas ao contrário, o agudizam. Estamos vendo isso. Em nenhum lugar do mundo houve redução ou melhora com a adoção de mortes e justiça pelas próprias mãos. O comunicador sem formação acadêmica, em entrevista ao site Coletiva em 2017, declarou que os 28 anos de profissão foram o suficiente para que aprendesse na prática como trabalhar. “Aprendi mais do que teria aprendido em quatro anos na faculdade”, justificou. Talvez se engane e algumas aulas lhe façam falta, porque o sucesso não se mede apenas por popularidade e verbas publicitárias. Alguns princípios de ética e respeito são indicadores mais potentes de reconhecimento profissional. Nessa contramão, Fetter é reincidente. Em 2016, defendeu que colegas de Comunicação que criticam a Brigada Militar e a Polícia Civil “sejam as próximas vítimas [da violência urbana], que sejam eles a sangrar e deixar suas famílias enterradas”. A repercussão foi tão negativa, com manifesto de professores da Unisinos e nota do Sindicato dos Jornalistas, que Fetter pediu desculpas no mesmo microfone. Já desta vez, admitiu durante o próprio comentário “que não é nada legal falar isso num microfone como o da Rádio Atlândida”. Tem razão. Talvez Fetter tivesse sido um bom aluno e compreenderia a responsabilidade que um grande veículo tem na composição e circulação da opinião pública. Algo que seu grupo de comunicação compreendeu, porque adotou um protocolo respeitoso, mas ao mesmo tempo, curiosamente, permite a oferta de discurso de ódio para uma de suas maiores audiências.

Uma das definições possíveis de “opinião pública” é aquela que alude a uma certa representação da verdade, que tem uma conotação política, subscreve um âmbito universal e remete-nos para as polêmicas dos filósofos, jornalistas e autoridades (Tortarolo, 1998). Essa ideia de “opinião pública” mostra parte da concepção histórico-sociológica do jornalismo moderno e ilustrado, bem como a “moral” de sua exemplaridade.

Isso tudo tem a ver com admitir visões plurais da realidade e participar na construção ou discussão de consensos que protejam a cidadania de violência e de barbárie. Isso está no cerne da nossa missão, no significado desta profissão que abraçamos, com nossa responsabilidade inescapável com os efeitos de nossa exposição argumentativa, tendo em vista a natureza persuasiva da comunicação.

Sobre o jornalismo e os jornalistas recaem a representação de questões importantes – como a Insegurança, a desigualdade, a fome, a violência e até mesmo a limitação da liberdade de expressão. É necessário sim um tanto de estudo, muita reflexão, conhecimento, por que narrar o mundo precisa levar em conta que quase todas as sociedades estão sob ameaças violentas.

De lá para cá, a violência, as ameaças, as tentativas concretas de produzir novos ataques escalaram de modo perigoso. A cada apreensão de adolescentes que planejavam atos de violência, vamos adentrando em lares com farto material nazista e estímulo à desumanidade absoluta. Assim, pertinho de nós, logo ali. Precisa o jornalismo fazer as conexões sociológicas e quase óbvias do crescimento dessa cultura de barbárie, aniquilação do outro, adoração às armas. E precisa investigar, porque essa onda parece ser planejada e coordenada, amparada na propagação alucinante nos subterrâneos das redes digitais. Os donos desses condutos, as Big Techs, pouco ligam para os efeitos que produzem. O ódio e violência explícita são muito lucrativos. Não importa soberania nacional, leis e constituições. Representantes das plataformas agem de modo criminoso no seu universo paralelo capaz de produzir estímulos e recompensas sob medida para o domínio de mentes e vontades.

Nos últimos meses, assistimos à criação de um universo virtual ainda mais complexo – e assustador -, predizendo uma ampla mudança na forma como interagimos com o mundo digital que conhecemos. Há um novo conceito de interação digital e produção de realidades totalmente artificiais, com a tal IA. Nessa multiplicidade de ferramentas virtuais dinâmicas, transformadoras e desconhecidas há um terreno espantoso para o mal e para o crime. Qual a tipificação desses crimes, como a legislação brasileira dispõe sobre esse assunto, como grande parte da segurança é atribuída ao próprio usuário, são questões em disputa. Como atuar na prevenção?

O jornalismo também está confuso. Nesta semana um grande jornal de referência e uma rede de televisão questionaram a plataforma Twitter sobre sua inércia diante de práticas delituosas e discurso de ódio intensivo no caso do massacre nas escolas. Receberam como resposta um emoji de fezes. É exatamente aí onde estamos. Uma verdade incômoda. Não sabemos como lidar com os donos inescrupulosos das vitrines da vida contemporânea. Precisamos reagir e não é pregando linchamento em praça pública.


*Doutora em comunicação e informação, jornalista, pesquisadora e professora universitária.

Imagem em Pixabay.

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