Por CARLOS ÁGUEDO PAIVA*
Apesar de tudo, temos um motivo para comemorar!
- Até poucos anos atrás, afirmar que a Economia Gaúcha estava “andando de lado” era uma heresia. A turma do “sirvam nossas façanhas de modelo à toda a Terra” reagia a esta “injúria” com brados retumbantes e testes estatísticos e econométricos e inquestionáveis. Roberto Campos (o avô, não o neto) era um grande frasista e cunhou uma expressão magnífica: A estatística é como o biquini, mostra tudo; menos o essencial. Um querido amigo – também ele economista – tinha um bordão similar: A estatística é a arte de torturar os dados para que eles confessem espontaneamente a verdade que já conhecíamos!
Isso não implica negar a relevância de dados e testes. É apenas um alerta; que é tão mais pertinente quanto mais complexos e sofisticados forem os testes aplicados. Eu mesmo, valorizo muito indicadores estatísticos. Mas tenho especial preferência pelos mais simples e facilmente compreensíveis. E venho acompanhando com grande atenção – e preocupação – a péssima dinâmica demográfica de nosso Estado. Tal como observei em artigo publicado há 15 dias atrás nesse mesmo veículo, entre 2000 e 2010 a população do RS cresceu em pouco mais de 500 mil habitantes (4,97%); o que já implicava uma taxa significativamente inferior à nacional (12,29%) e a dos nossos vizinhos (SC: 16,62%; PR: 9,2%). Mas a situação se agravou muito na segunda década do século XXI: nos doze anos entre 2010 e 2022, a população do RS cresceu 189 mil pessoas, pouco mais de um terço da variação absoluta nos primeiros dez anos. No mesmo período, a população de SC cresceu 1 milhão e 360 mil pessoas e a do Paraná cresceu em 999 mil pessoas. E a diferença não está na pirâmide etária, mas no êxodo: o RS expulsa seus jovens; e SC e PR vêm atraindo população de outros Estados. Por quê? Porque oferecem emprego e qualidade de vida!
Então o que temos para comemorar? A tomada de consciência. Hoje – felizmente – não é mais preciso esgrimir argumentos complexos para enfrentar sofismas elaborados sobre a dinâmica insatisfatória do nosso Estado: é consenso. Um consenso que transbordou da academia e das equipes econômicas governamentais e/ou das organizações empresariais para “cair na mídia e na boca do povo”. Recentemente, num artigo publicado no jornal O Globo, a economista Zeina Latif dedicou sua coluna ao Rio Grande Amado. O título do texto já diz tudo: Economia do RS ficou para trás!Como dizia o velho Marx (na esteira de outros tantos pensadores), o grande desafio da ciência NÃO é encontrar respostas. O grande desafio é se colocar as questões pertinentes, é fazer as perguntas certas. …
Ufa! Finalmente, o RS começa a se olhar no espelho e a fazer a pergunta certa. Qual seja:
O que estamos fazendo de errado?
Há alguns anos atrás, participei de um evento promovido pela Secretaria Municipal de Produção, Indústria e Comércio de Porto Alegre voltado ao tema “Inovação & Desenvolvimento Regional”. A fala inaugural, foi do Secretário, que afirmou algo marcante:
Nós não queremos ser apenas um Uruguai, bonito e simpático, mas subdesenvolvido e pobre. Queremos ser um centro nacional e internacional de tecnologia de ponta.
Do meu ponto de vista, a comparação não foi particularmente elegante. Mas a sinceridade também tem o seu valor: ela ajuda a determinar o conceito de desenvolvimento com o qual se opera. Vale notar que o PIB per capita do Uruguai em termos de dólares (US$ 23 mil) é aproximadamente duas vezes maior que o PIB per capita gaúcho (US$ 11,5 mil). Mas o orador e mestre de cerimônias do evento acreditava que isso era muito pouco. E deixou claro onde estaria o problema: a economia uruguaia seria essencialmente “tradicional”, assentada na agricultura, na agroindústria e nos serviços. Para o orador, um território efetivamente desenvolvido baseia sua produção em setores industriais de alta complexidade tecnológica.
Ouso pretender que essa concepção seja amplamente difundida no RS; ela transborda de partidos e ideologias e invade a academia e o senso comum. Ouso mais: para mim, ela é um dos principais fundamentos de nosso “reme-reme”, do dinamismo insuficiente da economia gaúcha.
O que há de errado com ela? TUDO E NADA! Vamos começar pelo mais simples: o nada. Essa concepção não tem “nada” de errado num sentido muito amplo e geral. Um país que não domina a fronteira tecnológica não é um país rigorosamente soberano: é dependente dos conhecimentos e da produção industrial alheia. E “dominar” é praticar, é fazer. O verdadeiro processo de learning é indissociável do doing. É fazendo que se aprende mais. Assim como alguém que estudou inglês, cálculo, química orgânica, ou balé, perde parte desses conhecimentos se deixar de praticar, de exercitar-se cotidianamente no trato com os mesmos, uma sociedade que só tem contato com a fronteira tecnológica a partir da academia, não tem domínio efetivo dessa fronteira. Pois há uma grande distância entre o texto, a prática laboratorial e a produção industrial num mercado competitivo e em permanente transformação. O domínio efetivo pressupõe os três níveis: 1) domínio teórico; 2) domínio prático em nível laboratorial; 3) domínio produtivo para o mercado.
Vejamos, agora, a dimensão errada dessa concepção. Em primeiro lugar, o domínio da fronteira tecnológica é uma imposição NACIONAL. Uma NAÇÃO sem autonomia tecnológica não é plenamente soberana Mas essa não é uma exigência REGIONAL. E aqui já começa o problema. Por vezes, os gaúchos se esquecem que a “República do Piratini” não existe há mais de180 anos. Aprofundemos essa questão.
O que caracteriza uma região – por oposição às nações – é que elas são muito mais especializadas: elas se inserem num circuito divisão nacional do trabalho a partir de vantagens absolutas (por oposição às vantagens relativas, que caracterizam as trocas internacionais, mediadas pela taxa de câmbio). E não há espaço para que todas as regiões sejam especializadas em todo os setores. Algumas atividades muito especializadas e de alta complexidade acabam por se desenvolver em um único (ou em poucos) territórios; mesmo em países tão grandes quanto os EUA. Não é por outro motivo que nos referimos comumente ao Silicon Valley – localizado na Baía de São Francisco, na Califórnia – e não a Dallas, Detroit ou Cheyenne (capital do Wyoming) quando estamos falando sobre o principal cluster de inovações norte-americano.
O Brasil poderia ter um centro de inovação similar? Talvez sim, talvez não. Mais do que recursos financeiros e tecnológicos, falta projeto de nação e estabilidade política ao nosso amado país. … Mas o mais importante nem é isso: independentemente, de virmos a constituir o nosso “Silicon Valley” ele não precisa ser no RS. Na verdade, o “arremedo nacional” do nosso Silicon está localizado em São Paulo, no triângulo Campinas – São José dos Campos – São Bernardo do Campo.
Ok, mas o RS não poderia contar com um setor de alta tecnologia mesmo assim? Claro que poderia. Mas não PRECISA ter. Até temos um núcleo de alta tecnologia. E devemos mantê-lo e apoiá-lo. Mas é preciso entender que ele JAMAIS SERÁ O MOTOR DINÂMICO PRINCIPAL DA ECONOMIA GAÚCHA. Como, aliás, dificilmente um dia poderá vir a ser o motor dinâmico principal do triângulo paulista citado acima. E não apenas pelos limites impostos pela cultura política nacional, marcada pelo complexo de vira-lata, pela polarização política crônica, pela ausência de projeto de nação e pelo caráter entreguista e mercantil de nossa “elite econômica”. A questão é muito maior do que essa. E é quase inacreditável quão poucas pessoas alcançam entender essa obviedade.
Os setores de alta tecnologia empregam relativamente pouco; e os poucos postos de trabalho que geram são ocupados fundamentalmente pela elite intelectual e profissional de um país. Mesmo no “chão de fábrica” a realidade é elitizada: o “operário” da indústria de alta tecnologia não é um operário qualquer. Até existe uma mão-de-obra voltada à produção em série. Mas ela não está no Silicon Valley. Ela está nos países com mão-de-obra muito qualificada, muito disciplinada e relativamente barata. Já esteve em Taiwan e Coreia; agora está na China, no Vietnã e na Indonésia. E avança para a Índia e Bangladesh.
Vamos tomar um território do tamanho do RS: a Itália. Insisto em lembrar que a Itália é um país. O RS não é! Importante não esquecer disso! A Itália é um país soberano e, mesmo fazendo parte da União Europeia, deve buscar alguma autonomia tecnológica. Mas daí não se extrai que a geração de emprego, renda e riqueza na Calábria, na Sicília, na Basilicata, na Ligúria, na Úmbria e no Vale da Aosta deva se assentar em indústrias de semicondutores e em startups voltadas à computação. Turismo, gastronomia, cultura, música, agricultura, produção vinícola, serviços médicos, comércio, serviços jurídicos, contábeis, indústria alimentar, dentre centenas de outras atividades também são fundamentais. Aliás, elas empregam muito mais gente, garantem renda para muito mais gente, e mobilizam a economia de forma muito mais intensa do que a produção italiana de semicondutores, aeronaves espaciais, satélites e inteligência artificial. …
Parece óbvio. Deveria ser óbvio. E é óbvio. Mas muitos se esquecem dessa obviedade. Como esquecem, que o Rio Grade do Sul – ao contrário da Itália – sequer é um país. É apenas uma região. E não está no centro do país. Está no extremo sul. Essas são dimensões que os nossos vizinhos “catarina” não esquecem de forma alguma.
A verdade é que o povo gaúcho é muito peculiar. Duvido que haja outro Estado da Federação com uma percentagem maior de cidadãos que conheçam o hino estadual. E nos emocionamos realmente cantando o estribilho “Sirvam nossas façanhas de modelo à toda a Terra”. Mas, ao mesmo tempo, o gaúcho “letrado” tem um certo pejo da especialização produtiva do nosso Estado. Parece muito “tosco”: muita erva-mate, muita soja, muito boi, tabaco, arroz, vinho e azeite de oliva. O gaúcho letrado só se sente “grandão” quando cita a Tramontina, a Gerdau, a Marco Polo e a Randon. Essas são as nossas “marcas mundiais”. … Mas ainda é pouco. Muito pouco. Por isso mesmo, esteja quem estiver governando o Estado, haverá, sempre e necessariamente, mais atenção para atração de investimentos capazes de modernizar e transformar (de preferência, radicalmente) a nossa matriz produtiva do que atenção para as demandas e necessidades das cadeias produtivas já instaladas e as empresas gaúchas já existentes. Qual foi a grande obra de Britto? Trazer a Dell, a GM, a Souza Cruz e a Philip Morris (help!). De Olívio: o Ceitec e a Fibraplac (fábrica de MDF). Rigotto e Yeda atraíram a Nestlé. Dilma e Tarso implantaram os estaleiros em Rio Grande e São José do Norte. Leite, agora, luta pela ampliação da CMPC (celulose), criação de um grande cluster de Data Center em Eldorado do Sul e a atração de empresas produtoras de hidrogênio verde (e essa é uma boa ideia: voltaremos ao ponto adiante!). E já outorgou o título de Projeto de Utilidade Pública para o Porto de Arroio do Sal. … É nóis!
Boa parte das empresas atraídas com esforço, dedicação e muito subsídio já foram embora sem terem conseguido alterar a dinâmica do Estado. Na verdade, são tantos e tão recorrentes os fracassos que, creio eu, já rola um princípio entre as grandes empresas com sede em outros Estados ou no exterior:
– Se o RS chamar, não vá! Eles têm o “dom” de atraírem o que não vinga e não precisam (como fábricas de cigarro!) e de NÃO atraírem o que realmente precisam (como como a laminadora de aço que não temos).
O único governador que jamais cometeu esse tipo de “equívoco atrativista” foi Sartori. Seu governo – conhecido como “Godzilla das Fundações Públicas” – foi hors concour também nesse quesito e se caracterizou por expulsar empreendimentos (como a Nestlé, a Pirelli e a Duratex). Isso não chega a ser um mérito, sem dúvida. Mas, pelo menos, é um traço “original”.
Mas deixa assim. Não vale a pena chorar pelo leite derramado. Voltemo-nos com ainda mais atenção para o nosso drama atual.
Por que o RS está expulsando seus jovens? Por que não conseguimos criar empregos?
Um dos aspectos mais difíceis de entender em economia é o caráter peculiar da especialização produtiva. Como regra geral, o leigo (e, muitas vezes, também o economista neófito, pouco tarimbado) pensa as atividades produtivas de uma perspectiva setorial. Mas a perspectiva correta é a de encadeamento. O que isso significa?
Uma das fontes mais importantes para a análise da estrutura produtiva dos municípios é a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), publicada pelo Ministério do Trabalho e do Emprego, que pode ser acessada via internet por qualquer pesquisador ou agente interessado. Ela nos informa o número de empresas (estratificadas por estrato de tamanho), o número de empregados e o valor da massa salarial paga em cada uma das mil e trezentas subclasses da CNAE (Classificação Nacional de Atividades Econômicas).
Se observamos esses dados sem o devido aporte analítico, o que vemos é uma enorme diversidade de atividades e praticamente nenhuma especialização. Mas isso é uma ilusão. Desde logo, é preciso diferenciar dois tipos de atividades: 1) aquelas que se voltam ao atendimento dos consumidores locais e que são as chamadas “atividades ubíquas” (pois estão em todos os territórios); e 2) as atividades que se voltam ao atendimento de mercados externos, vale dizer, de agentes domiciliados em outros municípios, regiões, Estados ou países. As primeiras são atividades tais como comércio a varejo, padarias, bares, restaurantes, lojas de reparos de utensílios domésticos, postos de combustíveis, serviços básicos de saúde e educação etc. Sintomaticamente, essas atividades também são denominadas de “reflexas”, pois elas são o desdobramento de uma demanda familiar cuja origem primeira encontra-se na existência de uma renda que é apropriada nas atividades “básicas”, cuja produção volta-se para mercados externos. Exemplo: nos municípios de base rural, cuja principal atividade “básica” é a agropecuária, as atividades reflexas serão fortemente impulsionadas nos anos em que a safra é excepcional; e serão fortemente deprimidas em anos de seca, enchente, depressão de preços no mercado externo, praga na lavoura, doenças nos rebanhos etc. Se a renda básica cresce, a demanda sobre as atividades reflexas também cresce; se a renda básica cai, a demanda (e o emprego, a renda, o faturamento) nas atividades reflexas também cai.
Existe um indicador – o Quociente Locacional (QL) – que nos informa se uma atividade é básica ou reflexa. O leitor que se interessar pelo tema encontrará explicações sobre esse indicador aqui. O que importa, agora, é entender que uma atividade reflexa apresenta QL em torno da unidade (ou discretamente inferior); e as atividades básicas apresentam QL acima da unidade (um bom ponto de corte, para que se tenha certeza do caráter básico da atividade é um QL igual ou superior a 1,5).
Observemos, agora, as atividades básicas. Tomemos um município como exemplo: Novo Hamburgo, que é o núcleo do cluster coureiro-calçadista no Vale dos Sinos no RS. Coletamos as informações pelo critério de classe: são 633 atividades na CNAE, das quais 413 estavam presentes em Novo Hamburgo em 2024. Este município contava, no final do ano passado, com 74.566 empregados formais (a RAIS não computa ocupados sem vínculo empregatício, tais como informais e agricultores familiares), que correspondiam a 2,69% de todos os formalmente ocupados no RS. Desses ocupados, 38.399 (51,5% do total) estão empregados em atividades básicas, com QL superior a 1,5. Que atividades são essas?
São as mais diversas, indo da produção de sapatos a setores tão distintos quanto química, metalurgia, mecânica, papel e papelão, derivados de madeira, borracha e plástico, comércio atacadista, propaganda e marketing, dentre várias outras. …. O leigo vaticinará: é falsa a pretensão de que Novo Hamburgo é um município especializado na produção de calçados! …
Será mesmo?
O problema desse “olhar” é que ele foca no setor e não na cadeia. Se observarmos com cuidado as atividades veremos que parcela expressiva das firmas do segmento “papel e papelão” produzem embalagens para calçados; parcela expressiva das empresas do setor de química, produzem cola para sapato; parcela expressiva das empresas dos setores de madeira e de borracha produzem solado para calçados; parcela expressiva das empresas do setor metalúrgico produzem fivelas e estruturas metálicas para calçado; o setor mecânico é nucleado pelo segmento de máquinas e implementos para a indústria calçadista; e assim por diante. Uma especialização produtiva NÃO é uma especialização setorial: é um sistema encadeado de atividades de distintos setores nucleados por uma atividade “líder”. No caso de Novo Hamburgo, a atividade líder é a produção de calçados. Se essa produção for retirada do território, poucas firmas dos setores de “química”, “papel e papelão”, “metalmecânico”, “borracha”, “madeira” e etc., etc., etc. etc. Sobreviverão!
Pior: como essa cadeia é altamente empregadora, é ela que sustenta as atividades reflexas: o comércio a varejo, os serviços, os restaurantes, o turismo de negócios etc. etc. etc.
Mas nossos “acholocratas” não concordam e vaticinam (mais uma vez): A INDÚSTRIA COUREIRO-CALÇADISTA É TRADICIONAL. CHIPS, DJÁ!
O achologismo não é problema. Eu mesmo me considero um achólogo em muitas áreas. Com muito orgulho, com muito amo. Acholojar é um direito universal. O problema é a acholocracia, vale dizer: o poder de alguns poucos para impor ao coletivo as conclusões de alguns poucos achólogos. E, com o perdão do sincericídio, se os achólogos estudassem um pouquinho mais de teoria econômica (com ênfase em teoria das cadeias produtivas) seriam muito mais comedidos. Senão, vejamos.
Um dos setores mais “tecnologizados e muderrrrnus” da indústria gaúcha é o setor de máquinas de CAD-CAM para design e corte das mais distintas peças e equipamentos. … Qual o segmento industrial que é o maior demandante dessas máquinas?
Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe …. TRÊS! Alguém disse INDÚSTRIA CALÇADISTA? Resposta CERTA, Lombardi. …. Tire a indústria calçadista dos pagos e a indústria de máquinas de CAD-CAM vai para o …. beleléu! Por quê? Porque é preciso ter muitas e variadas demandas de máquinas de design e corte por computador para que essa indústria específica persista. E o setor calçadista é movido por moda, design, inovação e diferenciação. Logo, ele está sempre precisando de novos recortes. E só pode ser competitivo com máquinas de e asse… CAD-CAM. E não só de máquinas locais e baratas. Precisam de assistência técnica. Daí o estímulo cotidiano ao setor. … Tira o calçado e tirarás do nosso horizonte um dos setores mais inovadores da economiga gaúcha.
Pergunta que não quer calar: quantos achológos e acholocratas sabem disso?
E isso não é uma exceção. Tomemos a indústria de laticínios. O mundo demanda proteína animal. E o faz com intensidade crescente. A Índia já é a terceira economia do mundo em PIB calculado por Paridade de Poder de Compra (PPP, na sigla em inglês). Acaba de superar o Japão. Boa parte da população é vegetariana. Os muçulmanos não comem porco. Os hindus não comem carne de gado bovino. Mas todos tomam leite. E o consumo de leite chegou nas alturas. Poucos países têm tantas condições de abastecer a crescente demanda asiática de leite e lácteos quanto o Brasil. A Nova Zelândia fez tudo o que pode. E enriqueceu vendendo leite. Montou uma cadeia agroindustrial fantástica, com ordenhadeiras computadorizadas e sistema de controle de qualidade absolutamente excepcional. Todo o leite que sai de CADA estabelecimento rural é TESTADO NO LOCAL. Tanto os caminhões de coleta quanto as empresas rurais contam com equipamentos de avaliação da qualidade do leite que os torna “pequenas NASAs domiciliares”. … Pergunte para 10 achólogos e acholocratas gaúchos o que eles acham da proposta de desenvolver a cadeia láctea no RS? …. E afaste-se, por favor. Pois ouvirás impropérios. … Talvez alguém se lembre do Secretário Municipal da Produção, Indústria e Comércio de Porto Alegre e te pergunte: POR ACASO QUERES TRANFORMAR O RS NUM URUGUAI? TU NÃO TENS VERGONHA?
Invertendo a pergunta: Por que SC e PR roubam os nossos jovens?
Resposta simples: tradicionalismo e apego ao passado “brega”. Há dois tipos de agropecuária: a permanente (que exige cuidados todo o ano) e a temporária (que envolve plantio, trato e colheita periódica, normalmente a cada três meses). SC e PR se especializaram em atividades da pecuária de pequenos animais (frangos, porcos, galinhas poedeiras etc.) e/ou animais estabulados (pecuária leiteira). Essas atividades NÃO SÃO apenas atividades que solicitam (e geram) trabalho ao longo de todo o ano. São atividades que não perdoam nem domingo, nem Natal, nem Páscoa. Todo o dia é dia de trabalho. Também são atividades que geram rendimentos periódicos; seja semanalmente, quinzenalmente ou, no máximo, mensalmente. E esse rendimento alimenta o comércio dos municípios rurais na mesma periocidade. O ano todo.
Mais: a pecuária de pequenos animais exige processamento industrial NO TERRITÓRIO. Tente transportar 500 frangos num caminhão por 200 kms. Quando chegares ao destino, um terço deles estará morto, outro depenado e o restante estressado. … Simplesmente … não dá.
Ah – dirão nossos achólogos e acholocratas – mas essa indústria é “tradicional”, não apresenta grande produtividade, é altamente empregadora. … EXATO! … Começou a entender? … Ainda não? Explico: essas atividades geram muito trabalho e emprego no campo e na cidade. … A “baixa produtividade” é sinônima de “alta empregabilidade”. E ambas são sinônimas de muita demanda para o comércio. O que gera ainda mais emprego. … Captou? … Legas! Então vamu ki vamu!
No que o RS se especializou? Soja e tabaco. … Soja é cultura temporária e altamente mecanizável. Em nosso microclima, só podemos ter uma safra de verão. O plantio e a colheita são cada vez mais mecanizados. O transporte se faz num único período do ano, após a safra. Depois os caminhões ficam … parados. … E os trabalhadores também.
Mas não se preocupem. Nossos achólogos e acholocratas têm solução para tudo. A solução é simples: VAMOS AGREGAR VALOR À SOJA. Por exemplo: porque não a transformamos em Tofu (queijo de soja) ou Shoyu e vendemos esses produtos para a China.
Precisa responder? Precisa explicar que o Tofu e o Shoyu deles é melhor? Precisa explicar que os custos de transporte de Tofu e Shoyu é muito maior do que de soja a granel? Precisa explicar que a soja é um grão muito rico e que processá-lo é deixar parte dele conosco e os chineses o querem inteiro? Precisa explicar que 2 + 2 é 4? Que não é, nem 22 nem 44?
O pior é que há mais. Muito mais.
Como os “tanso” dos catarina e dos paranaenses optaram por se especializar em atividades “labutantes” (que dá trabalho no campo e na cidade ao longo de todo o ano) ao invés de apostarem na atração de empresas de alta tecnologia, eles cometeram a besteira de apostar em setores que são intensivos em transporte. Pior: um transporte que exige caminhões refrigerados! Essa “asneira” levou-os a ter uma frota de caminhões “abusiva”. Uma frota que exige, não apenas manutenção, como produção própria. Como os custos da refrigeração são elevados, deram início a pesquisas na área de controle do frio (criogenia) e preservação de energia. Mais ainda: estão tendo que pesquisar sobre conversão proteica e genética animal. Vêm diminuindo o período de terminação dos animais através de avanços acelerados nas pesquisas da biologia animal. Mais ainda: ao optarem por especialização em setores intensivos em transporte, tiveram que desenvolver seus sistemas logísticos, sejam os sistemas rodoviários, ferroviários, hidroviários e portuários. … Santa burrice, Batman!
Mas se você pensa que a toleimice acaba aqui, você está muito enganado! Não bastasse essa opção industrial equivocada, eles ainda estão apostando em setores completamente antiquados. Um exemplo? TURISMO! … Eles estão preocupados com a qualidade de vida em suas praias, como Florianópolis, Camboriú, Caiobá e Garopaba. … Há algo mais antigo e atrasado? … Atração de idosos aposentados para se instalarem em suas regiões que, até pouco tempo atrás, eram destinadas apenas ao veraneio, virou uma atividade apoiada fortemente pelos governos estaduais. Quem se beneficia disso? Apenas as construtoras, os negócios imobiliários, os serviços de alimentação e lazer, a cultura, os serviços médicos, os serviços financeiros, a hotelaria, os restaurantes, os bares e o comércio a varejo. … Aliás, áreas nas quais o Uruguai também vem se especializando e atraindo “turistas permanentes” (aposentados) da Argentina, do Brasil (com ênfase no RS) e do mundo. …. Bem dizia nosso Secretário Municipal da Produção, Indústria e Comércio: – Pobre Uruguai. Tão bonitinho, tão pobrezinho, tão ordinário! E sirvam nossas façanhas!
Uma ponte para o futuro
Na segunda quinzena de maio, a “nova ponte” sobre o Rio Forqueta entre os municípios de Marques de Souza e Travesseiro foi levada pelas águas poucos dias antes de sua inauguração oficial. A ponte havia sido construída com recursos da comunidade dos dois municípios e vinha sendo saudada como a “prova” de que a iniciativa privada e as gestões municipalistas eram mais eficientes e céleres do que os morosos, burocráticos e custosos poderes públicos estadual e municipal. Mais uma vez, precisamos louvar a “desgraça”. Por quê? Por ela ter ocorrido antes de qualquer travessia de veículos e pedestres. Já imaginaram a desgraça se a tragédia ocorresse no dia de sua inauguração festiva?
Se ao menos nosso achólogos e acholocratas alcançassem aprender algo com essas experiências, elas já valeriam a pena. … Mas, infelizmente, as aparências não vão nesse sentido. O Governo Leite acaba de decretar que o visionário (ou seria melhor dizer, lunático?) Porto de Arroio do Sal é uma obra de utilidade pública. O fato dele estar sendo projetado como um porto de Mar Aberto, numa orla onde se encontram duas correntes marítimas violentas (a equatorial do Brasil e das Malvinas), numa conurbação com raras e honrosos vazios, atrás de uma das maiores lagoas do Litoral Norte (a Itapeva), entre os dois balneários mais “gentrificados” do nosso litoral (Torres e Capão da Canoa), sem uma estrutura de acesso rodoviário adequada não parece perturbar nossos líderes. O fato de que o Litoral Norte é a única região do RS com crescimento populacional expressivo e que os impactos sociais e ambientais de um porto no território pode (e deve!) levar à depressão das atividades de construção civil, à migração da população para Santa Catarina (ou o “pobre” Uruguai), à depressão do preço dos imóveis e do patrimônio de inúmeros gaúchos é vista como um mero “detalhe”. … A achologia e a acholocracia não tem limites em sua autoconfiança.
Já vejo algum leitor se perguntando: – Poxa, Paiva, mas não há nada de bom em nossas políticas públicas de desenvolvimento? … Sim, há. O Governo do Estado vem tentando promover o desenvolvimento de sistemas de geração de energias “limpas”. E essa é uma decisão que vai muito além da achologia. O RS tem vantagens competitivas ímpares na produção de energia eólica, solar, biometano e hidrogênio verde. Temos vento, temos água, temos aterros sanitários bem regulados e temos um amplo mercado para amônia (um subproduto do hidrogênio que é a base de inúmeros fertilizantes). Este é um gol de placa. Sem dúvida. O Governo Leite está de parabéns. E me alegro muito de poder dar os parabéns para alguma ação nossa. Muito mesmo.
Mas me dou ao direito de fazer uma pergunta.
Um dos maiores gargalos da produção de hidrogênio verde encontra-se no processo de hidrólise da água (H2O), que leva à separação dos dois elementos básicos. Esse processo tem custos elevados e os equipamentos necessários à sua realização – dada a tecnologia atual – dependem do uso de metais raros e extraordinariamente caros: a platina e o irídio. Há pesquisas em andamento no mundo (inclusive no Brasil!) com vistas ao desenvolvimento de substitutos a esses metais através da produção de ligas metálicas igualmente resistentes aos efeitos da eletrólise da água. A pergunta é:
Algum dos Parques Tecnológicos do RS está pesquisando esse tema? Ou, de forma mais geral: quais parques tecnológicos estão apoiando e focando suas pesquisas na produção de fontes alternativas e sustentáveis de energia? Ampliando ainda mais: nosso Parques Tecnológicos estão estudando o perfil das cadeias produtivas atuais e potenciais do RS e estão tentando identificar seus desafios e gargalos tecnológicos com vistas a contribuir para o enfrentamento dos mesmos? Quais as cadeias que já foram mapeadas? Quais os gargalos encontrados? Que pesquisas estão sendo levadas à frente com vistas ao enfrentamento dos mesmos?
E, por outra, o Governo do Estado está em contato com esses centros de pesquisa, estimulando-os a desenvolver soluções próprias, com tecnologia local, com vistas à superação dos desafios e gargalos que – com certeza – irão se manifestar? Ou – com o perdão da pergunta incômoda – pretende buscar as soluções na Holanda, financiar mais um South Summit e encher o porto de sacos de areia às vésperas de mais uma enchente?
Desculpem-me se as perguntas são invasivas ou incômodas. Mas são questões que me assolam. … Beijim, beijim, tchau, tchau!
*Carlos Águedo Paiva é Economista, Doutor em Economia e Diretor da Paradoxo Consultoria Econômica.
Ilustração de capa:IA
Respostas de 2
Parabéns pelo enfoque contextual, denso, profundo, didático, simples, chocante e visionário!
Quando se usa o verbo haver para indicar tempo ocorrido não se usa o advérbio “atrás”, há 15 dias já são 15 dias anteriores.