Enchentes no Rio Grande do Sul expõem colapso e exigem cooperação federativa e articulação com a sociedade civil
Por Benedito Tadeu César*
As recentes enchentes no Rio Grande do Sul expuseram os equívocos de posturas adotadas pelos governos municipais, estadual e federal diante da gravidade dos fatos e da urgência de medidas para a solução dos problemas.
Não se trata apenas da adoção de medidas de urgência e paliativas, que são essenciais, mas insuficientes. Trata-se da necessidade de medidas de médio e longo prazos, fundadas em pesquisas e conhecimento científicos e de efeitos duradouros. Não se trata de destinar recursos para obras e financiamentos tópicos. Trata-se de agir com os olhos voltados para o conjunto dos problemas.
Dado o volume de recursos necessários, o porte das obras a serem executadas e a profundidade das medidas a serem adotadas, nenhum dos três níveis de poder agindo isoladamente tem hoje ou terá no futuro condições de realizá-las, exigindo a ação integrada e colaborativa das Prefeituras Municipais, do Governo Estadual, do Governo Federal e das lideranças da sociedade civil.
Enquanto os governos ficarem se atacando mutuamente, transferindo responsabilidades e denunciando possíveis omissões das demais instâncias de poder, as catástrofes se repetirão a cada período de chuvas mais intensas. As disputas políticas, que têm orientado as ações até aqui, precisam ser deixadas de lado e os três níveis de governo precisam atuar em uníssono.
Em torno de uma centena de municípios das zonas serranas e dos vales dos rios Taquari, Caí, Itajaí, dos Sinos, Paranhana e da Região Metropolitana de Porto Alegre foram seriamente afetados durante as enchentes ocorridas em junho, agosto e setembro de 2023 e maio de 2024, com algumas cidades tendo quase que literalmente submergido nas águas pluviais e fluviais. Cerca de 142 dos 497 municípios do estado foram atingidos de alguma forma pelas enchentes, milhares de pessoas foram afetadas, ao menos 237 morreram e 25 continuam desaparecidas até agora.
Ações cooperadas e coordenadas
Passado apenas um ano dos últimos acontecimentos, as enchentes se repetem em 2025, sem que medidas efetivas de prevenção tenham sido adotadas.
As ações necessárias não se limitam à distribuição de agasalhos, colchões, e comida e à remoção dos desabrigados para abrigos públicos e/ou casas de parentes e amigos e desconhecidos solidários no pique das cheias e nem à construção de casas para uns poucos “beneficiados” – se é que esse termo pode ser utilizado para quem perdeu sua casa, seus objetos, suas recordações e muitos dos seus sonhos.
É preciso a construção de diques e de comportas, a instalação de bombas de sucção de água, a construção de áreas de inundação controlada nas imediações das cidades sujeitas às cheias recorrentes, além da translação de cidades inteiras para fora das áreas de alagamento, a abertura de linhas de crédito para as grandes e médias empresas e para os pequenos empreendedores, mas é preciso que todas estas iniciativas sejam realizadas mediante um planejamento criterioso e integrado que vise o Rio Grande do Sul em seu conjunto.
Sem que se tenha aqui a pretensão de esgotar a lista dos procedimentos a serem adotados, será preciso também uma ampla campanha de esclarecimento junto aos prefeitos e vereadores, secretários municipais e deputados estaduais, empresários, agricultores e à população em geral sobre os efeitos nefastos da ocupação urbana desordenada, da construção de moradias em áreas baixas, do desmatamento próximo aos rios e zonas de preservação ambiental e da construção de aterros sem estudos que os autorizem.
Dados de diversas fontes apontam custos iniciais apenas para a reconstrução de infraestrutura entre R$ 110–176 bilhões, sem contar as ações de âmbito social. Ações desse porte exigem coordenação e cooperação, pois nenhuma instância de governo tem capacidade de levá-la à frente de forma eficaz se agir isoladamente.
Catástrofe climática como oportunidade para o RS
Situações de crise bem enfrentadas são chances de superação. A crise que se arrasta durante os últimos anos no Rio Grande do Sul, com enchentes destruindo cidades e áreas de cultivo, expulsando moradores, ceivando vidas e trazendo prejuízos econômicos na casa de bilhões de reais, pode ser uma grande oportunidade para que o estado supere a estagnação econômica que o abate há cerca de 40 anos e que atravessa governos de diferentes ideologias.
A situação econômica é tão grave que tem provocado, inclusive, a diminuição acelerada da população do estado nas últimas décadas, com projeções do IBGE indicando que o RS começará a perder população a partir de 2027, o que implicará na diminuição do número absoluto de seus habitantes. Essa tendência já se manifesta na desaceleração do crescimento populacional e na queda da participação do estado na população nacional[i]. Situação idêntica à que se observa com relação à queda em sua participação na composição do PIB do país.
Não basta, portanto, apenas recuperar os prejuízos causados pelas enchentes no estado do Rio Grande do Sul. É preciso reinventá-lo e reconstruí-lo sobre novas bases. A crise climática que se abateu sobre ele desde meados de 2023 e que não foi superada até hoje, com as enchentes e as catástrofes que ela vem provocando, pode ser a oportunidade também para a superação da crise de fundo que tem assolado o estado durante as últimas décadas. Aproveitá-la ou desperdiçá-la, depende das escolhas que forem feitas pelos governantes dos três níveis dos poderes públicos e pelas lideranças de sua sociedade civil.
Guerra e paz ou a suspensão temporária das disputas
Sanar e superar os problemas que afligem o Rio Grande do Sul e sua população e recolocá-los em uma trajetória de crescimento e prosperidade coletivas exige ações conjuntas e coordenadas das diferentes instâncias do poder político em articulação com setores organizados e não organizados da sua sociedade civil.
Exige a compreensão de que enfrentar uma crise crônica como a que vive o RS impõe que sejam deixadas de lado disputas políticas legítimas em tempos normais, mas que são nefastas em tempos muito difíceis. Não se trata de acreditar que seja possível eliminar a divergência de visões e de interesses, quaisquer que sejam eles. Trata-se de buscar pontos de interesse convergentes e de trabalhar sobre eles, deixando as disputas temporariamente suspensas até que a crise seja superada, como acontece durante as guerras, que exigem a união de todas as forças de uma Nação.
Trata-se de compreender que nenhum dos três níveis de governo (municipal, estadual ou federal), agindo isoladamente ou em articulações que envolvam apenas dois níveis destes entes públicos, tem capacidade financeira, técnica ou política para enfrentar o desafio. A superação dessa crise exige cooperação federativa, articulação entre o poder público e a sociedade civil, e um plano de longo prazo com visão de estado, não de governo.
Grandes problemas exigem grandes e, às vezes, ousadas soluções
Uma fórmula para alcançar esse objetivo talvez seja a construção de um novo ente jurídico que viabilize uma ação conjunta dos três níveis de governo. Qual forma legal ele deverá adotar deve ser definida pelas instâncias competentes e não cabe ser discutida neste espaço. Pode ser uma empresa de economia mista, uma fundação pública de direito privado ou qualquer outra forma que seja considerada a mais adequada.
Lembre-se, como exemplo, que para a construção de Brasília o presidente Juscelino Kubitschek criou em 1956 a Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil – Novacap. Sua finalidade foi gerir e coordenar a construção do que viria a se tornar o Distrito Federal. Com ela, garantiu-se agilidade para a construção de uma cidade em área quase desértica do Cerrado Central Brasileiro em cerca de apenas três anos e dez meses, fato que assombrou o mundo, não apenas pela qualidade e beleza arquitetônica da nova capital, mas também pela rapidez com que ela foi construída[ii].
Grandes problemas exigem grandes e, às vezes, ousadas soluções. Terão as autoridades públicas do Rio Grande do Sul e do país e as lideranças sociais gaúchas coragem para adotá-las?
*Benedito Tadeu César é cientista político, professor da UFRGS aposentado e integrante da coordenação do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito
[i] Dados do Governo do RS demonstram que o estado vem perdendo participação na população brasileira desde o Censo de 1950. A população rural do estado tem apresentado queda gradativa desde o Censo de 1970, com uma redução de 14,7% entre 2010 e 2022. A capital gaúcha também tem registrado queda populacional, com uma redução de mais de 76 mil habitantes entre 2010 e 2022, segundo o Censo 2022.
Ressalte-se que a diminuição populacional do RS não pode ser creditada apenas ao fenômeno demográfico global da diminuição do número de filhos por casal, já que os estados de Santa Catarina e do Paraná, que têm perfil étnico e tradição de colonização semelhantes aos do RS, têm apresentado taxas de crescimento econômico elevadas nas últimas décadas e têm registrado crescimentos populacionais expressivos por meio da atração de população de outros estados.
[ii] A Novacap existe ainda hoje como empresa pública responsável pela execução de obras e serviços no Distrito Federal. Hoje, sua propriedade é compartilhada pelo Distrito Federal, que detém 56,67% do seu capital, e pela União que detém os 43,33% restantes. Em 1956, quando da criação da Novacap, o Distrito Federal detinha 56,12% e a União 43,88% das ações.
Foto da capa: Prefeitura de Lajeado hoje – Crédito: Prefeitura de Lajeado
Respostas de 4
O artigo escancara uma verdade incômoda: enquanto autoridades se limitam a paliativos e disputas políticas, o Rio Grande do Sul segue afundando – literalmente – em tragédias anunciadas. É urgente compreender que reconstruir o estado exige mais que verbas emergenciais; exige visão estratégica, cooperação entre entes federativos e coragem política para romper com velhas práticas. A crise climática é, sim, uma catástrofe – mas também uma oportunidade histórica para reinventar o RS. A pergunta que fica é: haverá disposição real para essa mudança de rota?
Nunca tivemos o recurso necessário para obras desta monta,historicamente,ñ podemos em hipótese alguma perdê-las por incapacidade de articulação técnica/política.Contudo foi acordado,à pedido do Gov.do Estado,junto ao Gov.Federal,que a tarefa de licitar atualização de projetos e obra ficou sob a responsabilidade do primeiro. Portanto é preciso agilidade!Um ano já se foi!Em Alvorada tiramos um Comitê popular de acompanhamento de todo esse processo!Ñ aceitaremos que a população atingida fique de fora.
Ah, vou gostar muito no dia que este sonho se realizar! Poder municipal, estadual e federal se unirem pra fazer o Rio Grande retomar seu destino vigoroso, cultural e produtivo? Que sonho bonito!
É claro como a luz do meio dia que, hoje, “trabalho” político, sobretudo no Congresso, visa a reeleição mediante emendas parlamentares, recursos públicos para fins privados. Sua proposta, César, é ótima. Resta esperar que, permanentemente, se faça política com fins de propósito e não de interesse. Não pode haver pausa na ética. Abraço.