Ferreira Lima e a memória da ditadura na UFSC

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Universidade-Federal-de-Santa-Catarina

Por MICHEL GOULART DA SILVA*

Nesta sexta-feira, dia 6 de junho, o Conselho Universitário (CUn) da UFSC retoma um tema que vem suscitando grande polêmica, em torno do debate sobre a proposta de mudança do nome do campus da universidade, em Florianópolis. O campus leva o nome do primeiro reitor da universidade, João Davi Ferreira Lima, que ocupou o cargo entre 1961 e 1972. O referido reitor foi chamado, em abril de 1969, de “homem de bem” em documentos de órgãos de repressão da ditadura. Em outro documento, de maio de 1966, é descrito como “homem de ilibada conduta cívico-democrática”. Essa era a opinião sobre Ferreira Lima vinda de um regime ditatorial que perseguiu, torturou e assassinou milhares de pessoas.

Embora tenha iniciado seu mandato como reitor antes de golpe de 1964, Ferreira Lima adotou uma postura alinhada aos interesses do novo governo, ideologicamente respaldando a perseguição e a denúncia de servidores e estudantes. Em sua gestão, colaborou com os órgãos de repressão e de vigilância contra pessoas consideradas perigosas pelo regime ditatorial. O SNI dizia, em fevereiro de 1969, que Ferreira Lima “tem tido pessoalmente uma conduta bastante razoável”.

Em seu mandato, teve atritos principalmente com docentes e estudantes da Faculdade de Direito. Sobre um dos seus principais desafetos, o professor Henrique Stodieck, Ferreira Lima escreveu em ofício ao SNI, de outubro 1969, que seria forçado a “tomar providências drásticas”, diante da “atuação destrutiva que vem, permanentemente, desenvolvendo, há vários anos, contra o desenvolvimento desta Universidade e, no momento, já inicia campanha tendenciosa contra a implantação da Reforma Universitária, que tanto interessa a todos nós e ao Governo da República”.

Esses são apenas alguns exemplos vindos de uma farta documentação pública, disponível inclusive digitalizada no Arquivo Nacional, sobre a atuação, durante a ditadura, da reitoria da UFSC. Esse conjunto de documentos é o que subsidiou o trabalho da Comissão da Verdade e a elaboração de um denso relatório que mostrou as atrocidades ocorridas durante a ditadura dentro da UFSC. Esse relatório, feito com zelo e seriedade por profissionais qualificados para a tarefa, vem sendo questionado e mesmo desqualificado pelos setores reacionários, externos à UFSC, que defendem a manutenção da homenagem a Ferreira Lima.

Esse debate deve ser discutido como parte de um processo mais amplo que a sociedade precisa enfrentar no sentido de elaborar seu passado sobre as ações do Estado. O processo de debate passa tanto por questões de importância política, como a condenação e prisão dos criminosos que agiram na repressão e tortura durante a ditadura, como por questões simbólicas, entre as quais a retirada de homenagens a ditaduras de ruas, escolas e outros espaços públicos.

Outro aspecto passa pelo fato de que o nome de Ferreira Lima nesse debate é somente uma questão simbólica. Durante a ditadura houve uma ampla participação de intelectuais no sentido da defesa do regime. Essa intelectualidade aderiu às ideias de modernização conservadora levadas a cabo pela ditadura, em que o desenvolvimento econômico – e de pesquisas e inovação – foi impulsionado por meio da ampliação da exploração da força de trabalho, pelo arrocho salarial e pela marginalização da classe trabalhadora das cidades grandes e médias. Muitos membros da comunidade universitária da UFSC foram defensores dessas ideias e colaboraram na sua elaboração e difusão.

O debate sobre a possível mudança do nome do campus da UFSC é muito mais amplo do que a homenagem à pessoa que os ditadores consideraram um “homem de bem”. Essa discussão passa por tomar uma posição política diante de um passado traumático e por denunciar os crimes cometidos por civis e militares que apoiaram a ditadura. Neste momento, diante do debate travado na UFSC, coloca-se a definição de como vamos elaborar o nosso passado e, com isso, qual postura política vamos assumir diante da repressão perpetrada pelo Estado e apoiada pelo então reitor Ferreira Lima.


* Michel Goulart da Silva é doutor em história pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e técnico-administrativo no Instituto Federal Catarinense (IFC)

Foto da capa:  Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) | Foto: Divulgação

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