El Pepe e as buscas da América Latina

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Por LÉA MARIA AARÃO REIS*

Um dos melhores documentários da coleção de filmes que trazem a vida e a memória do ex-presidente do Uruguai, José Pepe Mujica, falecido dia 13 último, é o do diretor sérvio, Emir Kusturica. Intitulado El Pepe, uma Vida Sublime, foi apresentado pela primeira vez no Festival de Veneza de 2018, anos depois do  diretor, um doublé de músico nascido em Saravejo, receber a Palma de Ouro de Cannes duas vezes, um Oscar, o Leão de Ouro italiano, e após se consagrar como um dos realizadores do cinema internacional mais festejados, criativos e populares dos anos de  80 e 90.

O documentário de Kusturica cobre o último dia de Mujica como presidente do seu país, em 01 de março de 2015, e reproduz conversas com seus amigos, bebendo o mate com o diretor do filme e ensinando a ele como fazê-lo, e cultivando plantas e flores. Em várias atividades simples e cotidianas, vemos e ouvimos suas considerações existenciais sobre a ética e a verdadeira solidariedade, e sobre o mundo do poder e da política.

El Pepe tinha 89 anos de idade ao morrer. É notável como o seu organismo físico sobreviveu depois de 13 anos de prisão dos quais muitos em solitária, com três ferimentos na perna e dois no abdome. Como ele próprio relata no filme, não tinha mais o baço, vivia apenas com um pulmão e uma infecção permanente do pâncreas o enfraquecia. Mujica deixou como legado do seu governo no Uruguái: a descriminalização do aborto no seu país, a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo e a aprovação do cultivo e do comércio da maconha.

O cenário central  de El Pepe, a Supreme Life é a sua chácara em Rincón del Cerro, nas cercanias de Montevidéo, onde Pepe cultivava flores e hortaliças e na qual viveu em companhia da sua companheira de toda a vida, a  ex – vice – presidenta hoje senadora Lucia Topolansky, e a sua adorada cadela Manuela.

Uma ponta de arrependimento em uma conversa com Kusturica deixa entrever um certo arrependimento por não ter desejado ter filhos.

Vale e muito assistir ao filme de uma hora e 20 minutos. O trabalho de Kusturica transcorre com dinamismo e entremeia os encontros entre ele e Mujica, duas personalidades muito especiais, com filmes de jornais de atualidades recuperados, de época, com encontros com companheiros, o seu discurso de posse de presidente, dirigindo o trator através das trilhas da sua chácara, e o na direção do emblemático Volks azul.

Com uma montagem altamente bem construída e profissional,  Kusturica consegue  que ‘’ a câmera se mova no cenário com um sentido de liberdade e fluidez’’, como ele costuma declarar. Nesse caso do documentário, com a fluidez e leveza da edição de imagens, das cenas e das sequências.

Vale lembrar que o cineasta é autor competente de dois grandes sucessos cinematográficos: Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios, de 1985, e o posterior Underground, de 1995.

Alguns dos momentos mais sensíveis do filme, e algumas das pensatas e frases icônicas de Mujica, destacamos aqui. “A prisão significou para mim dez  anos de grande solidão’’. E outra: ‘’A tortura de sentir fome ainda dá para tolerar; mas ficar sem beber água, não dá’’. Ele e muitos dos companheiros presos conheceram todas as prisões do país que na época tinha a alcunha de ‘’a Suíça da América Latina’’; os detentos eram transferidos de tempos em tempos de uma penitenciária para outra na condição de ‘’reféns’’.

A penitenciária de Punta Carreras, uma das mais famosas do seu tempo, hoje é um shopping  bem sucedido, como se vê na sequência em que Pepe, sorridente, passeia pelas galerias das lojas relembrando a geografia das celas – a sua e a dos prisioneiros – e é cumprimentado por todos os passantes.

Relembrando o tempo em que militou na luta armada com os tupamaros ele diz, com humor: ‘’Chamávamos de ‘desapropriações’ às ações de assaltos a bancos. Quando entramos em um banco com uma pistola calibre 45 na mão todos lá dentro respeitam você …’’

doc relembra também o ‘’exército secreto da OTAN’’ no nosso continente, nos anos 70, e a sucessão de golpes da Operação Condor; não apenas no Uruguai, mas também no Chile, na Argentina,  Bolívia e no Brasil.

Em uma das várias fugas da qual Mujica participou teve como companheiros nada menos que 106 companheiros detidos. ‘’Um exemplo de organização e de criatividade’’, ele comenta.

E faz um alerta: ‘’O homem aprende muito mais com a dor e com o sofrimento do que com as coisas fáceis’’. Refletindo: ‘’ A luta política é luta para gerações e não para um só homem’’. Ela não termina em fim de mandato.

Quando El Pepe acabava de sair anistiado, da sua última prisão,  levando debaixo do braço, com orgulho, o ourinol que os guardas acabaram lhe fornecendo para sua cela que não contava com banheiro, ele não deixou de dizer a mesma frase do seu discurso de despedida da presidência da república: ‘’ A nossa luta vai continuar’’.

Uma frase, porém, do magnífico ideário de José Alberto Mujica Cordano talvez permaneça como uma das mais importantes para reflexão: ‘’Na América Latina não há respostas. Há buscas’’.

……

Em tempo: Neste momento em que Pepe Mujica é especialmente celebrado com todo afeto e respeito, vale lembrar um dos trabalhos literários mais interessantes sobre o ex-presidente uruguaio, ou seja, a reprodução de outro diálogo seu com um dos maiores intelectuais e ativistas do nosso tempo, em volume lançado em 2024: Chomsky & Mujica: sobrevivendo ao século XXI , do mexicano Saúl Alvidrez com tradução de Maria Cecília Brandi.

Nele, os temas dos bate – papos entre os dois são cruciais. A ameaça do colapso da civilização, as consequências das mudanças do clima, algumas alternativas da esquerda; e democracia, a liberdade e os males da política, além de corrupção, do populismo, da crise do capitalismo e da lógica da economia  Segundo Mujica e Chomsky, porém, os pilares da vida são amor e amizade.  (Ed. Civilização Brasileira).


*Léa Maria Aarão Reis é jornalista.

Foto de capa: Jose Mujica no Festival de Veneza / Reuters/Tony Gentile

ENTRADA DO FESTIVAL DE 2018

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