Crônica Irônica: A Nação do Asfalto que Ninguém Vê

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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

Ou como as emendas asfaltam o chão, mesmo sem gente por perto

Na gloriosa República Federativa do Tocantins — onde asfalto brota antes da casa, e a ponte chega antes do rio — a lógica é simples: não se vive onde é preciso, vive-se onde há verba.

Palmas, a cidade modernista apresentada como Brasília 2.0, tem um segredo bem guardado (exceto para quem a visita): ela foi desenhada para o futuro. Mas não qualquer futuro — o futuro orçamentário. Um tempo mítico no qual haverá gente suficiente para justificar as rotatórias iluminadas capazes de levar do nada a lugar nenhum.

O primeiro capítulo dessa estória diz respeito ao surgimento de uma ponte avançada. Os moradores contam a fofoca aos visitantes: certo dia, em um gabinete refrigerado, um deputado visionário bradou:

— Construamos uma ponte e o povo virá!

O engenheiro perguntou:

— Mas… vai ligar o quê a onde?

Resposta: — A emenda a outra emenda. O resto a gente vê depois. Quem questiona o progresso?!

E assim nasceu a Ponte Governador José Wilson. Atravessava o lago a ser formado depois (por força do destino e de uma hidrelétrica, cujo EIA-RIMA – a abreviação de Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental – ninguém leu até hoje). A ponte virou cartão-postal. O lago veio depois. E o povo… bom, ainda está esperando o ônibus.

O segundo capítulo narra o milagre do asfalto e a teologia da LED.

Como qualquer Estado devoto do milagre desenvolvimentista, o Tocantins passou a asfaltar quadras. Elas só existiam nos mapas do loteamento. Terrenos vazios recebiam pavimentação novinha, meio-fio pintado com cal, e postes com iluminação de LED. Tudo brilhava — menos a presença humana.

A lógica era impecável: o voto nasce onde nasce o contrato. E para isso, é preciso plantar contrato no chão. Quem fiscaliza não entendeu a beleza da fé orçamentária.

Dona Clara, a única moradora real de uma dessas quadras assombradas, mas iluminadas e asfaltadas, explicou: — Moço, aqui asfaltaram a rua antes de nascer meu neto. Agora ele já tem 15 anos e a escola ainda não chegou. Mas poste? Ah, poste nunca faltou!

No terceiro capítulo surgem os movimentos de controle (quase) social.

Incomodados com tanta generosidade seletiva, surgiram os movimentos sociais. Pequenos grupos de cidadãos, armados com planilhas do Portal da Transparência e esperança de uma República democrática, passaram a monitorar os gastos.

O Coletivo “Cadê a Casa?” criou o ranking das Obras Invisíveis. Listava escolas sem telhado, pontes sem estrada, creches com placa e sem criança. Publicaram no Instagram. Denunciaram no rádio comunitário.

Mas aí chegaram as eleições. E adivinhe? Asfalto novo. Canteiro de obras. Faixa de inauguração. Samba da emenda parlamentar.

Controle social? Só se for da velocidade dos tratores.

O capítulo final denomina-se Reeleição da Paisagem Visível com População Invisível.

E assim seguimos, com pontes ligando futuros promissores a orçamentos passados, e ruas iluminadas sem moradores — só de votos. No Tocantins (e em muitos Tocantins por aí), o desenvolvimento é uma performance. E a plateia, quase sempre, está no escuro diante do cenário futuro — mesmo debaixo do poste.

Mas há uma esperança: a criança de Dona Clara agora organiza uma vaquinha para comprar tinta e pintar a faixa da próxima obra. Afinal, se o povo não participa da escolha da obra, ao menos participa como mão-de-obra barata para fazer pintura.

PS: O Ministério da Ironia adverte: Toda semelhança com fatos reais é pura coincidência… ou uma questão de protocolo de intenções entre parlamentares e empreiteiras.

Não há evidências de o Estado do Tocantins ter construído uma “ponte imensa e moderna” em Palmas apenas para justificar a criação de um lago artificial ou para desviar verbas. Vamos aos fatos distintos dos boatos: a Ponte Governador José Wilson Siqueira Campos, localizada na TO‑080, liga Palmas a Luzimangues, sobre o lago da UHE Lajeado (UHE Luiz Eduardo Magalhães) — um (pequeno) lago existente antes da ponte, portanto não construída para criar um lago (enorme)  conforme testemunho popular.

Tem aproximadamente 1 km, dividida em três trechos (um principal e dois menores), com aterros, totalizando cerca de 8 km de travessia. Financiada com cerca de R$ 146 milhões do governo estadual, não se encontra indícios de superfaturamento por parte da União ou uso de “orçamento secreto” federal.

O Reservatório da Usina Lajeado (UHE Luiz Eduardo Magalhães) foi criado com a operação da hidrelétrica por volta de 2001. A ponte foi construída posteriormente, em projeto de infraestrutura logística, e não foi erguida antecipadamente para justificar a criação de um lago.

Não foram encontrados referências confiáveis sobre asfaltos e iluminação em quadras completamente desabitadas de Palmas com objetivo de “gastar orçamento e desviar recursos”. Obras públicas em áreas vazias podem ocorrer como planejamento prévio (urbanismo estruturado), mas não há sinais de ação deliberada de desvios nesse sentido em fontes confiáveis.

Alertas genéricos sobre uso de emendas parlamentares para obras capazes de favorecerem interesses políticos existem, por exemplo, pavimentações superficiais – e desnecessárias. Entretanto, essas falas são anedóticas e não se vinculam diretamente ao caso de Palmas.

Enfim, a ponte é real e construída sobre um lago já existente, com recursos estaduais, ligada a uma hidrelétrica. Não há bases documentais capazes de comprovarem construção prévia da ponte para gerar o lago, nem desocupação proposital de quadras para “justificar iluminação sem moradores”.

Se há casos específicos de obras superfaturadas ou de baixa utilidade, devem ser avaliados caso a caso, com base em licitações, fiscalização e relatórios do TCU, MP ou imprensa investigativa local.

Por exemplo, o TCU identificou superfaturamento de R$ 15,6 milhões na chamada “Ponte dos Imigrantes Nordestinos” (Miracema) sobre o rio Tocantins. Envolveu aditivos para elevarem o valor de R$ 95,8 para R$ 106,7 milhões.

Além disso, o tribunal detectou indícios de superfaturamento e irregularidades em obras de rodovias e estruturas viárias com impacto de aproximadamente R$ 38 milhões, incluindo restrição de competição em licitações.

A Polícia Federal e o Ministério Público Estadual investigam um suposto esquema de fraudes em pontes, inclusive de “pontes de papel” (ou superfaturadas), com mandados efetuados para coleta de depoimentos e análise contratual

O MPE estimou danos de cerca de R$ 6,7 milhões em desvios relacionados à duplicação de medições, alterações de quantitativos e sobrepreço em estruturas viárias.

Não há indícios de terem construído uma ponte para criar artificialmente um lago, como sugerido pela sátira popular. Os lagos, fruto de usinas hidrelétricas (como a UHE Lajeado), já existiam antes das pontes.

No entanto, o modelo comum de usar emendas parlamentares para obras grandes, visíveis e muitas vezes sem demanda real é uma prática observada. Têm o objetivo político-eleitoral de “inaugurar” projetos mesmo em áreas pouco povoadas.

Há ampla crítica pública e relatos de uso de verbas para obras com baixa utilidade social imediata — como asfaltamento em locais pouco habitados, mas poucos casos específicos no Tocantins foram documentados com clareza pública.

O superfaturamento e as irregularidades em obras viárias no Tocantins estão confirmados por auditorias do TCU e investigações do MP/PF. Há evidências de um padrão de manutenção deficiente em contraponto à construção de obras novas, inauguradas principalmente por motivos políticos.

A narrativa de “ponte para gerar lago e gastar verba” é um exagero. Mas o uso de recursos púbicos para obras grandiosas, muitas vezes sem vínculo claro com uma demanda social real, é bem documentado e típico do clientelismo orçamentário.


*Fernando Nogueira da Costa é Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com

Foto de capa:  Trabalhos de reconstrução da ponte sobre o Rio Tibagi em 2008: 18 meses entre estudo e desenvolvimento da obra | Foto: Divulgação

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