Medida da Felicidade versus Indicadores Comunitários de Bem Viver

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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

A pergunta — “podemos medir a felicidade sem colonizar seu significado?” — é, ao mesmo tempo, filosófica, epistemológica e política. Ela questiona um dos pontos centrais das disputas contemporâneas entre diferentes formas de conhecimento, sobretudo quando pensamos em alternativas ao modelo dominante de desenvolvimento econômico.

A resposta mais honesta e crítica seria: não sem grandes tensões. Mas é possível resistir à essa colonização se formos conscientes de seus mecanismos e limites.

A exploração das implicações dessa questão inicia-se com a epistemologia da felicidade: é um conceito relacional ou mensurável?

A tentativa de medir a felicidade parte, em geral, de uma matriz moderna, ocidental e psicométrica. Pressupõe a felicidade ser individual, mensurável e comparável entre pessoas e populações. Desse modo, pode ser padronizada em escalas de 0 a 10, por exemplo. É passível de intervenção via políticas públicas orientadas por dados.

Contudo, muitas culturas não compartilham essa noção. Em cosmovisões indígenas, africanas ou budistas, felicidade é relacional, ou seja, comunitária, ecológica, espiritual. Não existe separada da terra, dos ancestrais, do tempo sagrado, do bem comum. Não é “objetivo de vida”, mas modo de estar no mundo.

Portanto, ao tentar quantificar a felicidade com categorias ocidentais, há o risco de colonizar o sentido do termo. Desrespeita formas plurais de bem viver.

Nessa política da mensuração: quem mede, para quem, e com quais efeitos? Medir felicidade não é neutro. Ao institucionalizar indicadores de felicidade, quem define uma “vida boa” tende a ser o Estado, a academia ou organismos internacionais, sem consulta às populações.

Indicadores são usados para comparar países, ranquear políticas, justificar investimentos ou reformas. O risco é essa medição se tornar instrumento de governança, orientando condutas segundo normas de produtividade emocional.

Assim, medir felicidade significa subordinar modos de vida à lógica de gestão e performatividade. Isto vai contra, por exemplo, a diversidade ontológica do Buen Vivir, de origem no Sul Global.

Entre o diálogo intercultural e o reducionismo técnico, há formas mais ou menos sensíveis de abordar o tema da felicidade. Modelos hegemônicos buscam padronizar a felicidade com base em estatísticas e escalas validadas psicometricamente.

O Relatório Mundial da Felicidade, publicado pela Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável da ONU (SDSN), é o principal indicador para medir a felicidade em diversos países ao redor do mundo. O Relatório considera seis principais fatores: PIB per capita, apoio social, expectativa de vida saudável, liberdade de escolha, generosidade e ausência de corrupção.

Modelos alternativos (FIB do Butão, Buen Vivir andino) integram espiritualidade, tempo livre, equilíbrio ecológico, coesão comunitária e cultura. Os caminhos de resistência incluem a coprodução do conhecimento, onde as próprias comunidades definem seus critérios de bem viver. Oferece indicadores qualitativos e narrativos, em vez de puramente numéricos.

Abordagens pluriversais não buscam universalizar um conceito, mas acolher sua diversidade. O pluriversal reconhece a validade e importância de diferentes formas de ser, pensar e agir, sem hierarquizá-las. Promove a diversidade e a inclusão.

Portanto, medir a felicidade sem colonizar seu significado exige repensar o próprio ato de medir. A métrica não deve substituir o sentido. A política não deve capturar a subjetividade. A diversidade não cabe ser reduzida a uma régua única.

Medir a felicidade é legítimo quando parte do diálogo, não da imposição. Quando serve à emancipação, não ao controle, será uma medição benvinda.           

Quadro comparativo: Indicadores Globais vs.
Indicadores Comunitários de Bem Viver

DimensãoIndicadores GlobaisIndicadores Comunitários
Base epistemológicaModernidade ocidental, racionalismo estatístico, universalismo técnicoCosmologias locais, saberes tradicionais, pluralismo ontológico
Conceito de bem viverSatisfação individual com base em critérios padronizados (saúde, renda, educação, segurança)Relação equilibrada com a comunidade, o território, os ciclos da vida e a natureza
Sujeito da mediçãoO indivíduo (cidadão/consumidor) como unidade de análiseA comunidade e o território como sujeitos coletivos do bem viver
Objetivo políticoComparar países, ranquear desempenho, orientar políticas públicas globaisFortalecer a autonomia local, proteger modos de vida, afirmar direitos culturais e ecológicos
Exemplos clássicosPIB, IDH, Índice de Felicidade Mundial (ONU), Better Life Index (OCDE), Felicidade Interna Bruta (Butão)Mapas de riqueza local, indicadores de reciprocidade, segurança alimentar, harmonia territorial (povos andinos, quilombolas, ribeirinhos)
Método de coletaQuestionários estruturados, dados estatísticos oficiais, surveys padronizadosOficinas participativas, escutas coletivas, narrativas, mapas afetivos e indicadores qualitativos
Forma de aplicaçãoDe cima para baixo (top-down), liderada por governos ou organismos multilateraisDe baixo para cima
(bottom-up), construída pelas comunidades em diálogo com suas necessidades
Linguagem utilizadaTécnica, estatística, psicométrica, universalizávelSimbólica, territorial, relacional, muitas vezes oral e intercultural
TemporalidadeLinear, orientada ao progresso e crescimentoCíclica, voltada à continuidade da vida e à sustentabilidade intergeracional
Relação com a naturezaRecurso a ser gerido para sustentar o bem-estar humanoEntidade viva com direitos e agência própria
(ex.: Pachamama)
Potencial emancipatórioBaixo: mede para governar, frequentemente reduz a realidade à performanceAlto: mede para afirmar modos de vida e resistir à homogeneização cultural

Há exemplos de experiências comunitárias concretas no Equador e na Bolívia. Assembleias locais definem indicadores de Sumak Kawsay (bem viver), incluindo cuidado com o solo, festividades, saberes ancestrais e relações comunitárias.

Comunidades quilombolas no Brasil usam mapas sociais e indicadores de autonomia sobre território, alimentação, relações intergeracionais e religiosidade. Territórios indígenas da Amazônia oferecem uma definição de bem viver associada ao ciclo das águas, abundância de caça e pesca, não contaminação dos rios e autonomia cultural.

Os indicadores globais tentam representar o mundo com uma régua só, desconsiderando o considerado como “vida boa” variar bastante entre contextos diversos. Já os indicadores comunitários partem da premissa de cada povo tem o direito de definir o importante para ele — e como isso deve ser medido.

Portanto, a divergência não é apenas técnica: é política, ontológica e civilizatória.


*Fernando Nogueira da Costa é Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com

Foto de capa:  Reprodução

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