Entre viajar e turistar: experiências além do roteiro

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Design sem nome (86)

Por JORGE BARCELLOS*

Viajar era conhecer, fazer turismo é ter mais uma foto no currículo de consumo, pelo menos aparentemente, um halo de cosmopolitismo e conhecimento que de fato não adquirimos.

“Sair do capitalismo e da sociedade de consumo significa sair do turismo. Significa mover-se em direção a uma boa sociedade viva, respeitosa da vida humana e não humana. Vamos parar o saque turístico do planeta!”
Rodolphe Christin 

Foi o artigo de Pat Storni aqui nas páginas de Sler que trouxe o debate sobre os problemas do turismo de massa, que atinge não apenas Lisboa, mas também cidades como Veneza e outras citadas pela autora.

Para oferecer minha visão do problema, ao mesmo tempo o fazendo de forma autobiográfica, gosto de começar do início, pelo significado das palavras. A palavra “viajar” se originou do termo latino “viaticum”, que significa “provisões para uma jornada” ou “dinheiro para a viagem”. Ele é derivado de “via”, que significa “caminho” ou “estrada”, termo que evoluiu para o provençal “viatge”, chegando ao português “viagem”. Portanto, viajar é escolher um caminho, desde que se tenha, é claro, recursos.

Para viajar, é preciso dinheiro

O que precede a viagem são sempre provisões, e eis de novo, eu diante de minha jornada autobiográfica, a da ascensão social do menino pobre pela educação. Eu nunca tive, durante a infância, a oportunidade de viajar, simplesmente porque era pobre, não tinha recursos. Você sabe: é que pobre raramente viaja. E por isso talvez eu tenha adquirido um sentimento notável pela cidade, por Porto Alegre: eu me lembro que era criança e me maravilhava com a cidade, simplesmente pelo caminho que fazia para ir à escola. Eu saía do apartamento em que morava na Avenida João Pessoa, no prédio Saga, em frente à faculdade de direito, e ia a pé para a escola.  Ali mesmo, onde em frente, em 1975, ocorreu um ato político quando estudantes da UFRGS impediram a derrubada de árvores. Eu então dobrava a Avenida André da Rocha e caminhava pela via até chegar à Escola Estadual Rio de Janeiro. Esse trajeto já me chamava a atenção, eu admirava suas casas históricas e a escadaria que a ligava à Rua Duque de Caxias. Eu admirava meu próprio prédio escolar, localizado num amplo terreno – pelo menos era essa a visão de infância – notável por uma arquitetura que eu viria a compreender só depois de adulto, nas aulas do Professor Armindo Trevisan, do Instituto de Artes. Era assim que eu, criança pobre, viajava. Eu viajava pela cidade, a olhava com atenção e, claro, ficava invejando os relatos dos coleguinhas que viajavam com seus pais para outros países.

Francesco Careri definiu este sentimento em Walkscapes: o caminhar como prática estética (Gustavo Gili, 2013). Como ele define, eu era criança e começava a mapear e a ter percepções sobre o espaço da cidade que atravessava caminhando, era o meu modo de viajar mesmo que não viajasse. ”Caminhar é uma forma de transformação da paisagem que, embora não deixe sinais tangíveis, modifica culturalmente o significado do espaço e, consequentemente, o espaço em si, transformando-o em um lugar”, diz Careri. Hoje eu vejo muitas pessoas que dizem que não gostam de Porto Alegre, que procuram outros espaços para encontrar um lugar para si; eu ficava satisfeito só de caminhar pelas ruas buscando um lugar: essa massa que viaja hoje mundo afora deixou de ser alguém que “busca um lugar”. Aqueles que viajavam antes do advento das redes sociais ainda buscavam uma identidade em um lugar movido por um sentido existencial. Hoje, aqueles que viajam procuram apenas um lugar para realizar uma selfie. Não é um processo existencial, é um procedimento digital.  Não se trata de saber quem se é, a partir do lugar em que se está, de onde veio e para onde vai; se trata de ser como as demais produções de signos da rede, ser aceito e reconhecido por produzir imagens de viagem, essa imitação de que fala René Girardi em suas obras, de mostrar ao outro que eu viajo também. Entendo que parte do excesso turístico atual faz parte das consequências da digitalização do mundo. Viajamos não para saber quem se é, mas para… postar.

Já para ser um viajante, é preciso primeiro se reconhecer como sedentário. A palavra “sedentarius” se origina do latim “sedens”, junção do particípio presente do verbo “sedere” (sentar-se) com o sufixo “arius”, que indica relação ou pertencimento. Sedentário é aquele fixo num lugar, o contrário de nômade. Pensamos que sedentário é aquele que faz pouco exercício físico, mas ele é também aquele que não se movimenta de um lugar.  Hoje entendo que o problema é que não somos nem nômades e nem sedentários, pois mais importante que o real para muitos é o digital, vivem nas redes.   Eu me lembro que, antes de minha escolarização, ainda muito pequeno, eu ia viajar com minha mãe apenas uma ou duas vezes. Era no verão e íamos então para a praia da Alegria, em Guaíba. A viagem começava indo da casa do bairro Santana, onde morávamos, uma casa de madeira e parede única, com piso de madeira onde se podia avistar o chão de terra, com um pé de uvas que eu nunca alcançava, e íamos de ônibus para o centro, eu passando agachado por baixo da roleta, onde pegávamos outro para Guaíba. Era uma aventura. Eu deixava de ser fixo em um lugar, minha casa, e viajava. Eu era um menino da cidade, um menino de casas pequenas e com poucos recursos que a mãe obtinha da venda de produtos cosméticos de porta em porta e depois livros. Eu era alguém à procura de um lugar.

Turistamos, mas não somos nômades

Já a expressão nômade tem origem no termo latino “nomas”, que significa vagabundo ou errante. É do grego antigo a expressão romana de vagabundo, que adquiriu entre nós uma noção pejorativa, mas que na origem significava “aquele que vagueia, especialmente em busca de pasto” – nomos é pastagem em grego. Viajar tem ligação, então, com nomadismo, pois também no passado precisamos nos deslocar, ainda que naquela época fosse em busca de recursos como água e alimento para rebanhos ou sobrevivência. Tanto nomadismo quanto viajar compartilham a ideia de movimento. É preciso ter um objetivo quando se viaja, e talvez essa imagem do turismo excessivo também esteja associada a essa distorção que a palavra vagabundo tem hoje. Afinal, quem mora nos lugares turísticos não vê esses viajantes que, com seus celulares, destroem a sua paisagem, provavelmente também como “vagabundos”? Não é sem sentido viajar para só fazer selfies sem se deter num lugar?

Aprendi nas primeiras aulas do curso de história que a transição do nomadismo para o sedentarismo ocorreu com o desenvolvimento da agricultura, o que trouxe estabilidade e segurança, mas também a formação de cidades, hierarquias sociais e exploração social. Eu só fui viajar mesmo no secundário, com meu amigo viajante, que me levou em suas viagens para conhecer o interior do Rio Grande do Sul. Ele era irmão da jornalista que ficou famosa falando dos Beatles, tinha mais condições financeiras do que eu, pois os pais eram advogados de sucesso. Ficamos amigos no Instituto Goethe que eu visitava no secundário, então no centro da cidade, não o da Avenida 24 de Outubro. Eu ali podia ler gratuitamente, ouvir música, ler revistas. Eu era da cidade, um sedentário. Viajar me tornou nômade.

Entre as viagens, houve uma com ele e amigos para o Itaimbezinho. Atravessei o cânion graças a ele, e claro, aos meus anos de juventude. Hoje, se não há um hotel de três estrelas nas proximidades, nem discuto viajar; atravessar um cânion, pulando por troncos de árvores, esgueirando-me entre as paredes de um penhasco, é algo só para ver em filmes: não há coluna que resista. Mas foi fascinante a experiência de dormir no galpão de feno do Marçal, morador que possuía ali uma cabana rústica e com quem tomamos café de manhã, tirando o leite direto da vaca – o Camargo, como anos depois me ensinou Paixão Cortes – primeira que conheci pessoalmente. Meu amigo viajante ainda tirava fotos com sua câmera, pois era sua segunda profissão. Eu não tinha máquina fotográfica, e por isso não tive imagens de infância para preservar. Mas tenho uma foto no Itaimbezinho dessa época. Estou nela à esquerda, junto às rochas, muito magro, e com cabelo, algo de que sinto saudades. Foi um registro, mas fotografar não tinha o significado que tem hoje. Eram outros tempos.

A estratégia universitária  

Foi na universidade que viajei mais. Não da forma turística, mas também inspirado nela. Viajei para participar de congressos. O motivo, que já expliquei aqui em algum lugar, era o fato de que a UFRGS dava transporte para estudantes que apresentavam trabalhos em congressos da SBPC. Foi assim que me iniciei no turismo: nos anos 80, viajei para o Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, o que para mim seria impossível nos primeiros anos da universidade pela falta de recursos. Conheci Belo Horizonte, mas também Buenos Aires e Montevidéu, não sem fatos curiosos: em Buenos Aires, consegui viajar de avião só de ida, pois já estava trabalhando na prefeitura; mas faltou dinheiro para a volta, o orçamento não fechava, e voltei de ônibus; para Belo Horizonte, foi uma proposta de atividade ainda feita na coragem de um grupo de amigos de faculdade, uma mesa redonda de alunos sobre Interdisciplinaridade em História para uma universidade privada daquele estado. Eu, aluno, com amigos, relatando nossas primeiras experiências de pesquisa na nova história. Tinha de beber cerveja em um bar depois.

Olho para o passado e dou risadas das estratégias que tinha de bolar para viajar. Não era algo natural como é para quem tem dinheiro. Nem mesmo o interesse em fotografar me motivava; era o desejo de estar em um lugar diferente e aprender sobre outra cultura que me definia e me fazia viajar. Quando adquiri uma Kodak Instamatic, fotografar era o ritual de procurar controlar a imagem e não sair batendo cliques por aí, já que havia um número limitado de poses no filme, e você via o resultado só depois da revelação. Comprar câmera, comprar filme, pagar revelação, tudo isso tinha de ser calculado, pois era caro. Por serem câmeras populares, de custo baixo, consegui acessar. Mas o que fotografei terminei perdendo com as mudanças e o tempo, só ficando com as imagens que produzi depois de casado, nos anos 90. Mas isso nunca foi tão importante quanto a presença num lugar. Viajar para se conhecer exige tempo.

Quando minha situação econômica começou a melhorar, passando da classe D para a classe B-, vamos dizer assim, pude viajar. Não para qualquer lugar, é claro. A prova é que, uma vez, ganhei em um concurso como prêmio uma passagem para a França. Eu a perdi porque não apenas não tinha como me sustentar lá, como também não tinha dinheiro para o trecho POA-SP. Sim, no início dos anos 90, eu perdi uma passagem aérea para Paris. É o que acontece conosco, os pobres. Como servidor do legislativo, a opção foi ir para colônias de férias da associação de servidores em Tramandaí.  Era o início de minha carreira pública e ainda estava distante das viagens internacionais, que só pude fazer recentemente, depois de casado. É nesse momento, nos anos 2000, que avanço na carreira, posso viajar e começo a perceber os dois tipos de turistas de que fala Storni. Os que são mais conscientes e os que não são em relação ao que se tornam nas cidades visitadas, entre aqueles que querem conhecer e os que querem fazer seu checklist turístico em todas – literalmente todas – as atrações, incapazes que são de parar para ver, só teimando em fazer fotos. Retornei ao Rio de Janeiro depois de décadas duas vezes recentemente: a segunda para completar o que não vi na primeira visita, e pretendo voltar. Sem pressa. Acordo num hotel ou Airbnb, tenho alguma noção do que vou fazer no dia. Faço passeios sem pressa, apreciando a paisagem. Um dia termino de conhecer o Rio. Depois, os outros estados. Devagar se vai ao longe. Este ano vou viajar para Portugal. Dei azar, está uma zona. Paciência. A agente de viagens propôs os planos de turista: veja o máximo que puder no mínimo de tempo, ou melhor, me propôs a correria que para mim significava: “viaje e não veja nada”. Essa é a mentalidade. Recusei na hora.

Contra a indústria turística  

Viajar é bom, mas a indústria turística é o problema. Esse diagnóstico não é meu, é de Rodolphe Christin em seu Contra o Turismo: podemos seguir viajando? (Ediciones del Salmón, 2023).  A obra começa com o caso do capitão do Azura, um navio de cruzeiro que ancorou no porto de Marselha em 20 de abril de 2018, com a pretensão de violar os padrões locais de poluição. “A empresa P&O Cruises, proprietária do navio e subsidiária do Carnival Group, não está muito preocupada com isso no momento”, disse uma agência de imprensa francesa. Christin está preocupado com o boom dos cruzeiros que se tornou uma praga de navios que mais se assemelham a prisões flutuantes que “emitem em um dia, tantas partículas finas quanto um milhão de carros, com o enxofre adicionado. Mas mais e mais associações e ONGs expressam seu descontentamento com as hordas de turistas e gases tóxicos que cuspiram dos navios. A indústria de cruzeiros é recriada enquanto sufoca o planeta e a vida local. Depois, se fala em “democratização” de viagens, como se o fato de estarmos todos na disposição de devorar o mundo fosse uma garantia de maior liberdade para decidir e agir. Esse tipo de democracia tem sido dissolvido há muito tempo no consumismo, um sinal de que a economia submeteu a vida social ao seu imperativo de benefício sem limites.”

Não tem jeito, é sempre ele, o capitalismo, que distorce uma atividade social positiva para conseguir o máximo lucro. Hoje, nós, porto-alegrenses, que incentivamos o turismo na capital como forma de fortalecimento econômico, também podemos chegar à posição dos países que hoje recebem turistas em excesso. O turismo termina assim, virando do avesso o seu objetivo, seu argumento de que todos temos o direito de sair de férias para conhecer a herança cultural e natural da humanidade, pois termina por destruir o valor que esses territórios representam. Diz Crespin: “Os defensores da indústria do turismo não são amigos dos povos nem da natureza. No contexto, eles reforçam a influência dos lobbies do turismo, quem quer que seja, grandes fornecedores de danos sociais e ambientais. Aos seus olhos, o único turismo que vale a pena é o turismo em massa, porque toda atividade econômica lucrativa deve se desenvolver ao máximo.”

Eu comecei a viajar exatamente como uma reação essencial ao meu modo de vida. O menino que pouco saía de casa, que pouco viajou, precisava também ele superar esse modo de vida, o que a atividade de viajar possibilitava. Eu sinto que na idade da maturidade da qual eu faço parte, sem querer, nesse mundo turístico, colaboro com o paradigma que é devastador desse mesmo mundo.  Sinto culpa por isso e por isso tento agir um pouco diferente quando viajo. Quando olhamos as origens da indústria do turismo, vemos a diferença entre viajar no passado e no presente. Cherspin fala do direito a férias pagas como avanço social e fuga do trabalho assalariado, mas a verdade é que, nesse universo de retorno da precarização, viajar voltou novamente a ser privilégio de poucos privilegiados. E mais, logo tornou-se objeto de instituições, as agências de viagem, responsáveis por organizar sua liberdade em nome da cultura e educação. O turismo, como o ato de sair de férias, se transforma em turismo social, que foi o do início do capitalismo do século XIX. Hoje é feito em todas as direções e espaços, vales e montanhas, tudo é objeto de turismo, que se transformou em uma maneira de relaxar consumindo o mundo organizado para esse fim. De aldeias a áreas turísticas, tudo é transformado em shoppings centers ao ar livre cheios de quinquilharias, iguais de cidade em cidade que visitamos, só mudando o tema. De ímãs de geladeira a miniaturas de artesanato, quem viaja já sabe que vai encontrar na paisagem turística o universo dos vendedores, que agem do mesmo modo como os dos centros comerciais da cidade, com seus gritos, ofertas etc.  Descobrir e conhecer, no entanto, nunca foram sinônimos de consumir.  É o que diz a história.

Os primórdios do turismo

O melhor livro que encontrei sobre o turismo do passado é o de Marc Walter e Sabine Arche intitulado The Grand Tour: the golden age of travel (Taschen, 2021). A obra explora não apenas a evolução da indústria turística que transforma a Europa em cenário privilegiado de viagens, mas também como o Extremo Oriente, a Austrália e o Novo Mundo, incluindo a África, são inseridos na nascente indústria turística. Logo na introdução, “An invitation to travel”, Walter e Arché lembram que viajar na passagem do século era bem diferente do que é hoje, nada do conforto e velocidade do presente, ao contrário, muitos viajavam movidos pela emoção, e se fossem cientistas, até se colocavam em risco pelo progresso da ciência. Os meios de transporte mudaram, deixando de ser os lentos navios do passado para serem os velozes aviões do presente, mas a indústria propriamente turística que surgiu entre 1830 e 1930 é, basicamente, o mundo dos guias turísticos, da fotografia analógica e dos cartões postais. Os autores citam François-René Chateaubriand, que disse: “As viagens são uma das fontes da história: pelas narrativas de viajantes, a história das nações estrangeiras é colocada ao lado da história particular de cada país”, escreveu ele em suas Viagens à América (1836).

As viagens atuais são bem diferentes, não? Hordas de turistas, com seus celulares em punho, a maioria pouca atenção dá aos monumentos que vê, pois o que lhes interessa mais é o registro de que estiveram lá. Nada mais distante dos primeiros viajantes, que se arriscavam, como Charles Dickens, em suas viagens e travessias difíceis. Em um momento da viagem, ele diz: “Estou escrevendo da cabine em que acabei de me instalar, onde estou cercado por indivíduos que roncam e falastrões que cospem no fogão.”  Ou Júlio Verne, que levou “apenas” 8 dias para chegar a Nova York e que depois escreveu Cinco Semanas em um Balão.

Repleto de imagens de época, a obra mostra as imagens originais e raras dos panfletos das grandes agências de viagens internacionais que pela primeira vez chamavam o seu público, como faz a CVC atual; vemos imagens de bastidores dos voos do Graf Zeppelin; as imagens de acesso de passageiros a navios, quando não havia calado nos portos e os passageiros precisavam ir de barco para acessar os grandes transatlânticos; as imagens organizadas pela passagem de viajantes pelo Egito, com o fundo das pirâmides, algo que também foi feito pelo imperador Dom Pedro II e que constam nas obras Coleção Princesa Isabel (Capivara, 2012) e De volta à luz (Fundação Biblioteca Nacional, 2002).

Os roteiros oferecidos 

Os roteiros oferecidos são os conhecidos: Paris, Nápoles, Roma e Palermo, feitos de trem de luxo como os oferecidos pela Compagnie Internationale des Wagons Lits, nos anos de 1903-1904. Começam nesta época as viagens em trens de luxo, como nas excursões às costas da Normandia, na Bretanha. As fotografias mostram que Londres, especialmente Trafalgar Square, já sofre com o acúmulo de turistas nos meses de maio e junho do ano de 1912, e os autores citam o luxuoso Savoy Hotel e seu famoso chefe de cozinha Auguste Escoffier. Nesse mundo, ainda havia viagens e viajantes, ainda que houvesse, é claro, uma indústria nascente.

Hoje isso mudou. Josep Bugaya, doutor em História Contemporânea pela UAB (Universidade Autônoma de Barcelona), em uma entrevista, propôs o termo homo movens. ”É cada cidadão, qualquer um de nós, a quem foi imposta uma mobilidade constante como um imperativo econômico, social ou cultural. Este impulso ao movimento nada tem a ver com a tendência ancestral de querer conhecer os contornos, de ir além do território do conforto. Tem pouco a ver com conhecimento ou diversão cultural. Gera-se toda uma economia de movimento. Esta tendência induzida de deslocamento representa um grande negócio com o qual devolvemos grande parte da nossa renda. Ao longo do caminho, sofremos de ansiedade para estar à altura, frustração porque nada foi conforme prometido. E tudo isto, além de ser insustentável, pouco contribui para o nosso bem-estar e para a nossa busca de felicidade.”

Bugaya se deu conta de que o capitalismo possui uma cultura dominante produzida pelo marketing e publicidade que transforma a ideia de ir de um lugar a outro em aspiração e propósito. Isso produz ansiedade e a atitude de surfista no mundo, que nos faz “acreditar na ficção de que fazemos parte de um mundo global e cosmopolita.” “Na realidade, queimamos tempo, e na nossa vida ativada não há tempo para a reflexão, o pensamento ou a poesia.” O turismo é um dos setores industriais mais desenvolvidos no mundo, mas a história humana nunca foi do nomadismo por obrigação, ao contrário, a maioria das pessoas sempre viveu em um espaço de poucas léguas, diz o autor. “A viagem sempre foi algo de minorias abastadas e um pouco dada à procura das sensações do diferente. O número de viajantes, além dos fenômenos colonizadores, sempre foi ínfimo. É no final do século XX que, na esteira da globalização, da internet e dos voos baratos, se verifica um crescimento exponencial dos deslocamentos e se impõe a cultura do movimento. Uma espécie de fuga constante de nós mesmos sobre a qual se constrói um dos setores industriais mais importantes do mundo.”

A turistificação do mundo 

É a turistificação do mundo de que fala Pat Storni: perde-se a autenticidade de um lugar para transformá-lo em parque temático, perde-se o lugar que visa o bem-estar de seus habitantes para o bem-estar do turista. Diz Bugaya: “As cidades tornam-se mais caras, gentrificam e expulsam os seus cidadãos, que têm de enfrentar preços muito mais elevados de moradia, hotelaria e alimentação, e não têm outra escolha senão fugir para as periferias. Sentem-se despossuídos, expulsos de um ambiente que criaram e que lhes pertencia. As grandes hordas de viajantes não provocam apenas a massificação e a perda de tranquilidade. Elas transformam o ‘lugar’, plastificam-no e o embrulham para transformá-lo em um produto de consumo que nada tem a ver com a realidade que poderia ser atraente. “

Quando eu visitei o Rio de Janeiro pela primeira vez, há cerca de quarenta anos, eu era um estudante sem recursos. Eu almoçava no Restaurante Universitário, ficava dormindo em salas de aula adaptadas para os estudantes que participavam da reunião da SBPC. Mas eu tenho a certeza de que eu vivi o lugar de forma diferente do turista de hoje: ia aos pontos turísticos de ônibus e não de kombis fretadas; ia à praia de Copacabana a pé, lanchava em algum ponto dos locais e nunca em restaurantes famosos. Eu não tinha pressa. Ainda era uma cidade diferente da atual, é verdade, hoje mais massificada; mas ainda eu podia sentir que percebia a cultura da cidade nas pessoas e nas coisas, o que talvez fosse apenas reflexo do meu imaginário cultivado pelos programas de televisão à época, mas que, de alguma forma, soava como autêntico. Retornar ao Rio de Janeiro quarenta anos depois significou, por um lado, a adesão a uma indústria, pela adoção de roteiros de conhecidos, mas, por outro, a resistência ativa que se dava, pelo menos, na recusa do transporte de agência, substituído pelo transporte local que nos fazia Cosme, o motorista humilde que vivia na periferia da cidade, que nos contava sua história e, com seu carro já meio batido, levava a mim e minha família para conhecer o Rio no ritmo que queríamos e não no dos passeios das agências.

É exatamente isso de que trata a definição de Bugaya: “A viagem era algo relevante para conhecer, na sua normalidade, outra realidade e onde a preparação e o processo de transferência (o itinerário) eram tão fundamentais quanto o destino. Agora, fazer turismo é ir a um lugar pré-fabricado porque nos é imposto pelos padrões de consumo do capitalismo atual, onde o processo para ‘chegar’ deve ser mínimo. Consumimos destinos em forma de fotografias. Viajar era conhecer, fazer turismo é ter mais uma foto no currículo de consumo, pelo menos aparentemente, um halo de cosmopolitismo e conhecimento que de fato não adquirimos. Poderíamos comprar alguns cartões postais e ficar em casa. O meio ambiente, no mínimo, apreciaria isso. O problema é que a viagem não é mais possível. Somos todos turistas, queiramos ou não. O nicho de mercado das “viagens autênticas” é o mesmo, mas pagando mais. Há turistas em todos os lugares e, muitas vezes, quem nos serve são trabalhadores migrantes extremamente mal remunerados.”

Rejeitar ser devorado pelo turismo

Foi isso que testemunhou meu colega de câmara municipal. Eu lhe perguntei dicas para minha viagem a Lisboa, no final do ano. Ele é servidor do legislativo. Como é sindicalista, ele e sua esposa viajam nas férias para os mais diferentes países. É um defensor das condições dignas de trabalho em todo lugar. Ele se surpreendeu quando chegou ao seu hotel em Lisboa, pelo número de trabalhadores imigrantes, na maioria africanos, que prestavam serviço no lugar. Ele ali se deu conta de uma característica do lugar que o próprio país quer esquecer: que, de certa forma, o ideal da escravidão ainda prossegue por ali. Mal pagos, explorados, sempre nas piores funções, os negros imigrantes estão ali, como no passado, para servir. No mundo da massificação turística, vemos a turistificação como sinal de progresso, quando é sinal de fraqueza. “É um setor muito frágil e mutante, sensível a sentimentos de segurança/insegurança, que depende de mão de obra barata, que destrói os destinos, encarece a moradia e os serviços e que grande parte do movimento de riqueza que promove vai para as grandes empresas internacionais e não beneficia os destinos”, finaliza Bugaya.

Nesse mundo, lucram sempre as franquias de grandes marcas de hotéis, uma indústria, muitas vezes chinesa, de quinquilharias, e, como diz Gerhard Nebel, citado pela repórter que entrevista Bugaya: “Um país que se abre ao turismo está metafisicamente fechado.” “A partir daí, oferece uma decoração, mas não mais o seu poder mágico.” “O turismo é um dos grandes movimentos niilistas, uma das grandes epidemias do Ocidente.” “O turismo é apenas mais uma das formas de nossa rendição ao poder do capital, transforma o patrimônio em decoração, destrói o cenário de vida de uma população.” “É um ócio, uma distração, com muitos efeitos colaterais, com muitas externalidades negativas.”

O que Bugaya descreve para a Espanha também serve para o Brasil. Quando ele analisa o turismo “sol e praia”, ele afirma que ele destruiu grande parte da zona costeira, transformando-a num continuum urbano sem critérios. Não é exatamente isso que aconteceu em Balneário Camboriú, com seus prédios que produzem, como efeito, sombra aos veranistas? Lá como cá, somente a grande construção e a indústria hoteleira estão lucrando, com apoio de setores influentes nas políticas locais. A utopia é lutar para mudar o destino imposto pelo capital. Bugaya cita a Finlândia, que deveria fornecer bacalhau à Europa há cinquenta anos e hoje desenvolve tecnologia e conhecimento.

Como fazer o turismo sobreviver

Fico triste porque, agora que tenho algum recurso para investir em viagens, há uma grande oposição aos turistas nos países que quero visitar. Eu já os visitava nos filmes que assistia e nos livros que lia: quem não se lembra do filme Na Mira do Chefe? Ele se passa em Bruges, Bélgica, uma comédia dramática de humor negro de 2008 que valia para mim mais pelas paisagens do que pelas piadas. Dirigida e escrita por Martin McDonagh, conta a história de Ray e Ken, interpretados por Colin Farrell e Brendan Gleeson, enviados para a cidade. Enquanto Ray detesta o local, Ken começa a apreciar a beleza e a tranquilidade de Bruges. Por conta do filme, fui atrás de um livro, Bruges, Portrait d’une Ville (1847-1918), de autoria de Christoph Ruys (Ludion, 2002), obra que, ainda que distante das obras da coleção Taschen sobre história fotográfica de grandes países, ainda assim é suficiente para dar a noção de que a cidade do passado é igual à do presente.

A conclusão é que o sucesso turístico é mortal, ele mata o lugar. Amsterdã tem 600 mil habitantes e recebe 20 milhões de visitantes. Em Veneza, já não é possível morar ali se não tiver um negócio de turismo. O que o capitalismo não aceita é que coloquemos em pauta que, em primeiro lugar, devemos lutar pelo caráter habitável da cidade. Não é exatamente isso quando vemos as propostas de liberação da altura de prédios pelo prefeito de Porto Alegre e as reações dos movimentos organizados? Para isso, é preciso planejamento, tanto quanto para a atividade turística. Eu não quero que a atividade turística desapareça, como quer Chrispin, pois agora que cheguei num patamar que eu posso arcar com ela, quero fazê-la, mas também não quero ser vítima da turismofobia. Quero conhecer, na verdade, aquelas cidades pequenas e fora do consumo turístico que ainda preservam suas características originais. Como finaliza o autor: “a contenção e a pacificação do turismo devem ser algo global que internalize os reais custos ambientais, que dê primazia nas cidades aos seus habitantes, que proteja os espaços naturais, que evacue uma parte importante da primeira linha de costa, que qualquer novo equipamento deve demonstrar a sua ‘neutralidade’ em carbono.”

Se faço parte da classe média agora (ou do primeiro nível dela), que já pode pagar por viagens, entendo que o sistema atual deve ser reformado, mas proponho, diferente de Bugaya, que não seja nem pelo preço, o que tornaria elitista, e nem como propõe Chrispin, a pura negação da viagem, o que fere a liberdade individual. Se há um direito à viagem, é preciso que sejam oferecidas não apenas políticas sólidas de preservação sustentável dos destinos, mas também novos destinos.  E ainda, uma educação para escapar ao mundo digital também é desejável, como uma educação para o uso do tempo em viagens. Por isso, se as críticas dos autores à esquerda são corretas, já que ela também termina por apoiar o status quo, a estratégia de destruição do turismo, entendo, pode ser mediada: entre esse “É hora de destruí-lo”, é preciso ter calma: não joguemos a criança com a água do banho, como diz o ditado, mas a esse “desmercantilizemos nossas vidas”! Isso sim deve ser feito agora, o que inclui uma reação ao modo dominante de viajar, onde talvez a pequena viagem ao lugar desconhecido seja o novo objeto de viagem.


Publicado originalmente Sler.

*Jorge Barcellos é graduado em História (IFCH/UFRGS) com Mestrado e Doutorado em Educação (PPGEDU/UFRGS). Entre 1997 e 2022 desenvolveu o projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal. É autor de 21 livros disponibilizados gratuitamente em seu site jorgebarcellos.pro.br. Servidor público aposentado, presta serviços de consultoria editorial e ação educativa para escolas e instituições. É casado com a socióloga Denise Barcellos e tem um filho, o advogado Eduardo Machado. http://lattes.cnpq.br/5729306431041524

Foto de capa:  Viagem ao Itaimbezinho, década de 80. Por Pedro Lairihoy | Acervo do Autor.

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