Destaque
13/11: a guerra santa dos manés em um país desconhecido
RED
POR FABIO DAL MOLIN*
Francisco, como milhares de outros brasileiros que seguem respirando, hoje habita “o país desconhecido” verde e amarelo chamado Brasil.
“Tomados pela agitação destes tempos de guerra, informados unilateralmente, sem distanciamento, das grandes mudanças que já se realizaram ou que começam a se realizar, e sem previsão quanto ao futuro que está tomando forma, nós mesmos duvidamos do significado das impressões que nos assolam e do valor dos julgamentos que formamos. Parece-nos que jamais um acontecimento destruiu tanto os bens preciosos comuns à humanidade, confundiu tantas das mais lúcidas inteligências, rebaixou tão radicalmente o que era elevado. A própria ciência perdeu sua desapaixonada imparcialidade; seus servidores, profundamente exasperados, procuram extrair-lhe armas para oferecer uma contribuição na luta contra o inimigo. O antropólogo tem de declarar o adversário inferior e degenerado, o psiquiatra tem de nele anunciar o diagnóstico de perturbação mental ou anímica. Mas é provável que sintamos o mal deste tempo de maneira desmedidamente intensa e não tenhamos o direito de compará-lo com o mal de outras épocas que não vivenciamos. O indivíduo que não tenha se tornado ele mesmo um combatente e, portanto, uma ínfima partícula do gigantesco maquinário de guerra sente-se confuso em sua orientação e inibido em sua capacidade de realização. Penso que para ele será bem-vinda qualquer pequena indicação que ao menos lhe facilite situar-se em seu próprio íntimo. Entre os fatores responsáveis pela miséria anímica daqueles que ficaram em casa, e cuja superação lhes coloca tarefas tão difíceis, há dois que gostaria de destacar e de abordar neste trecho: a desilusão que esta guerra provocou e a modificação de nossa perspectiva em relação à morte, que ela – como todas as outras guerras – nos impôs.”
Freud, Sigmund. 1915 “Algumas considerações contemporâneas sobre a guerra e a morte” em Cultura, sociedade, religião: O mal-estar na cultura e outros escritos (Portuguese Edition) (p. 77). Autêntica Editora. Edição do Kindle.
Em 1999 o papel que hoje é cumprido pelas redes sociais era exercido pelas correntes de correio eletrônico, e ali foram realizados os primeiros experimentos de disseminação de notícias falsas, mas que eram interpretadas como verdadeiras por um forte laço social e afetivo,
Uma grande amiga e colega, brilhante intelectual e amante dos animais estava ao meu lado em um laboratório de informática da universidade e lançou um ultimato: “Fabio, vou te enviar um abaixo assinado sobre uma coisa muito grave e TU VAI ASSINAR”. O abaixo assinado continha uma mensagem de alerta sobre um site chamado “Bonsai kitten’, que seria um laboratório onde gatos eram enclausurados em recipientes de vidro que impediam seu crescimento e eram alimentados com dieta liquida através de tubos. Na época a internet era bastante restrita e, principalmente para os iniciantes, tinha um status de verdade, ainda mais se as mensagens eram compartilhadas por amigos “confiáveis”. Também sensibilizado e impactado com as imagens dos gatinhos imprensados mas imbuído do espírito científico ( na época eu estava mergulhado na internet e tinha o conceito de rede como objeto de pesquisa) fui visitar o site e cheguei em uma sessão de links.
As páginas da web na época tinham sessões com indicações de links, e na página dos “Bonsai Kitten” os links levavam a sites de pornografia. Era a prova de que tratava-se de uma corrente falsa, SPAM< ou o que hoje chamamos de fake news, Outra corrente que ficou famosa era a que dizia para olhar embaixo das caixas de leite, onde havia um numero de 1 a 6. A informação é que as empresas recolhiam o leite com validade vencia e o repasteurizavam, e o numero representava quantas vezes isso acontecia. A difusão da mensagem foi tão bem sucedida que a tetrapak colocou em seu site e nas gôndolas dos supermercados um alerta para a falsidade da notícia e que o numero dizia respeito a bobina do papelão.
Outra mensagem comum era o alerta de vírus, “Um vírus mortal acaba com todos seus arquivos”. A mensagem continha um alerta de pânico mas também o alivio das instruções para excluir o vírus passo a passo. No último passo chegávamos a um arquivo que tinha a forma de um ursinho, que deveria ser deletado. A maioria dos usuários seguida as instruções fielmente, e o inusitado formato do arquivo era a prova de que seria mesmo um vírus, apesar de ser um arquivo de sistema que levava o computador a uma pane. Aqui está a gênese de todos os problemas contemporâneos das redes sociais e das fake news: o vírus não é um programa, mas o próprio usuário, e sua crença na realidade virtual, afinal, o que não é virtual?
A minha hipótese é que a genealogia do Brasil atual está nessas aparentemente inocentes mensagens que eram compartilhadas por listas de mails que se espalhavam em progressão geométrica. Alguns anos depois surgiram o que chamamos hoje de redes sociais cujo percursor foi o Orkut, uma plataforma que iniciou com a sedução de ser um clube internacional de debates seleto, onde as pessoas entravam apenas se eram convidadas pelos membros (ainda que ninguém se perguntasse como os primeiros entraram). O Orkut foi a grande Àgora mundial, onde a humanidade pode se conectar, encontrar parentes, amigos de infância, compartilhar lembranças do tempo do colégio, ou encontrar acolhimento em esquisitices (tipo a famosa comunidade “eu não saio do meu quarto”).
No futebol o Orkut foi revolucionário. Na minha experiência pessoal, o Inter sofreu uma das maiores injustiças de sua história no campeonato brasileiro de 2005, e na época a comunidade de colorados tinha mais de 100,000 membros que se comportavam como uma imensa torcida em um estádio e todas as emoções da injustiça de 2005 a glória da Libertadores e do mundial de 2006 explodiram como bombas atômicas e chegaram a criar uma chapa que elegeu membros ao conselho do clube. O Orkut abriu suas portas e, de comunidade de nerds passou a ser a primeira experiência das pessoas com a internet.
Sempre sob o comando e protagonismo de empresas privadas de tecnologia que providenciaram a evolução das redes telefônicas para os cabos de fibra ótica e redes sem fio e dos pesados computadores pessoais para os notebooks, tablets e smartphones, a grande massa de afetos e representações humanas que existia no mundo real foi amplificada no mundo digital em uma verdadeira revolução semelhante ao processo de êxodo rural e urbanização da revolução industrial do século XIX, porém em uma velocidade milhares de vezes maior.
Sigmund Freud, desde os primórdios da psicanálise deparou-se com o problema da realidade virtual, que era chamada de realidade psíquica, que basicamente era forjada pelo embaralhamento dos afetos e representações. As experiências com hipnotismo demonstravam a possibilidade de evocar e vivenciar experiências do passado com tintas de realidade, mas também foi possível perceber que em nossa vida psíquica somos capazes de produzir memórias falsas, lembranças encobridoras, que eram uma forma de tamponar a angústia das fantasias insuportáveis de amor ou ódio. O método psicanalítico deslocou o eixo da medicina baseada em evidências concretas do corpo para uma possibilidade de usar a linguagem e da escuta para poder transformar e ressignificar a própria realidade psíquica.
Hoje é mais do que evidente o caráter virtual da experiência da realidade, afinal, ao longo de mais de 20 anos estamos nos relacionando com amigos e familiares, companheiros de partido e clube de futebol, atendemos pacientes, através de minúsculas telas. O mundo que hoje conhecemos passou, de uma maneira quase imperceptível, por uma nova revolução copernicana. No início da internet nosso ponto de vista era de uma realidade concreta que tinha como instrumento a realidade virtual. Retomando o evento das caixas de leite, naquela época eu fui ao supermercado e vi uma senhora nas gôndolas de leite verificando os números embaixo das caixas. Resolvi alertá-la da armadilha e ela reagiu com revolta “ isso é verdade, eu vi na internet”.
A digitalização do mundo, para além de todas as vantagens, representou também uma possibilidade inédita na história do mundo, a da manipulação da própria realidade, composta de afetos e representações. Para que o paradigma heliocêntrico e a representação da Terra como geóide fossem considerados verdade foram necessários séculos de pesquisa e aparelhos científicos e tecnológicos. Tal paradigma hoje é considerado uma invenção globalista por uma parcela cada vez maior da população, assim como os Beatles tornaram-se os músicos mais influentes e ricos do mundo através da composição de obras imortais e hoje uma pessoa pode ter 40 milhões de seguidores comendo salgadinhos no Tik Tok.
È claro que a manipulação da realidade e da fantasia para usos econômicos e políticos não é nenhuma novidade na história humana. Quem assistiu a série Vikings percebeu que, para que aqueles corajosos guerreiros empreendessem viagens oceânicas em barcos diminutos ou entrassem em batalhas nas quais certamente iriam morrer era necessária a criação de um suporte simbólico e afetivo, representado pela morte gloriosa em batalha ser recompensada pelo direito de sentar à mesa no grande saguão de Odin, o Valhalla. Da mesma forma os cavaleiros cruzados lançaram-se na guerra santa, e seus opositores Mouros também acreditavam que a verdadeira vida estava após a morte.
Em 1915, sob os horrores da Primeira Guerra Mundial Freud escreveu “Considerações contemporâneas sobre a guerra e a morte” e ali faz uma consideração fundamental: a morte não é uma experiência vivida, ela existe apenas como morte do outro, ou seja, como representação. Freud era um leitor de Shakespeare e tal formulação encontra ressonância em Hamlet, no famoso monólogo “Se o receio de alguma coisa após a morte,
“–Essa região desconhecida cujas raias
Jamais viajante algum atravessou de volta –
Não nos pusesse a voar para outros, não sabidos?”
A vida cotidiana é a verdadeira realidade, enquanto a morte pode ser qualquer coisa: céu, inferno, glória, virgens...
Porém a revolução digital representou uma confusão em massa sobre o que é a realidade e o que é a representação e também das possibilidades cibernéticas infinitas de trânsito e manipulação de ambos os universos, já trabalhada aqui em outro texto.
Todos aqui sabem que a ascensão meteórica de um obscuro deputado se deveu a uma onda cibernética avassaladora, especialmente pelo advento de uma plataforma chamada “Whatsapp”, que representou a perfeita interface entre as redes sociais e a intimidade grupal e familiar. A partir do vácuo do poder deixado pelo impeachment de Dilma Roussef e o governo de Michel Temer, os seguidores de Jair Bolsonaro, em sua imensa maioria homens de classe média desempregados ou desesperançosos começaram a formar grupos organizados onde tinham acesso direto ao chamado “mito” que lhes enviava mensagens diretamente.
A ação política, que hoje pelas vias institucionais não representa ninguém, está isolada da massa proletária e apenas conectada a ela por eleições, passou a ter relevância quando esses homens passaram a organizar recepções calorosas a Bolsonaro em aeroportos, invadiam perfis nas redes sociais com ofensas, intimidações e ameaças.
Com a velocidade típica da grande massa ciborgue digitalizada, o espírito de transformação social que outrora pertencia a esquerda agora movimentava uma grande massa de motoristas de Uber, taxistas, pipoqueiros, aposentados que a partir dos governos do PT viram nas políticas afirmativas antirracistas, feministas, LGBTQIA+APN ganharem corpo e os empurrarem para a turma do fundo sob a insígnia de machistas, racistas, homofóbicos. Como diz Freud em “A psicologia das massas e a análise do Eu”, a identificação com o traço de um líder (que pode ser uma ideia, um partido, um Mito) gera laços afetivos superficiais, porém de grande capacidade de disseminação e contaminação que formam grupos cujos laços são tão intensos que os tornam vulneráveis a sugestão e a hipnose coletiva.
Assim no mundo contemporâneo, as massas Freudianas se convertem em redes cibernéticas virtuais onde a subjetividade pode ser facilmente hackeada e manipulada, a ponto de gerar uma realidade alternativa. Durante a pandemia o Governo Bolsonaro investiu como nunca no fortalecimento desses laços, ao reforçar a ideia de que o mundo todo estava errado e que o Mito foi o único a desafiar o sistema. O mantra de que a economia era mais importante que a vida simplesmente é uma emulação ao fato de a morte ser uma mera representação, afinal, racionalmente podemos querer nos isolar, vacinar e temer a morte. Mas no mundo real nosso maior medo é o desemprego e os boletos a pagar.
Em alguns momentos da pandemia a realidade do mundo Bolsonarista parecia absoluta e inexorável, e o “inimigo externo”, a esquerda, o comunismo, parecia ter virado o bicho papão da infância, e seu retorno ao poder seria um evento mitológico equivalente ao apocalipse. Porém Lula, o maior bandido, foi libertado, e voltou triunfante ao Palácio do Planalto.
E aqui chegamos a triste história de “Tiu França”, um homem de 45 anos morador da pacata Rio do Sul , Santa Catarina, que, ao contrário do que a Globonews insiste em professar, não é um “lobo solitário”. No mundo digitalizado de hoje não há mais pessoas solitárias, todos nós estamos conectados e somos movidos pelas ondas do oceano digital.
“Tiu França” é um avatar que tentou explodir o aeroporto de Brasília, invadiu o Congresso Nacional e fez cocô em uma mesa, quebrou relógios e depredou obras de arte. Naquele dia 13 de novembro, da mesma forma que os Jihadistas islâmicos e dos Vikings, a realidade vivida do divórcio, do desemprego, do comunismo e dos 98 votos que recebeu na sua eleição para governador, tudo isso virou ficção. A verdadeira realidade é a morte gloriosa onde Alexandre de Moraes seria morto, Lula preso e o Mito retornaria triunfante ao Planalto.
Assim Francisco Wanderley Luiz, de cuja morte ridícula cheguei a rir como membro da massa opositora, mas hoje choro, porque sei que ele já foi criança, filho, colega de colégio, já teve sonhos, acreditou que a política brasileira se resolveria com a explosão de bombas caseiras feitas com fogos de artifício cuja pólvora acenderia milagrosamente em um dia 13 de rara chuva no deserto de Brasília. Francisco, como milhares de outros brasileiros que seguem respirando, hoje habita “o país desconhecido” verde e amarelo chamado Brasil,
Publicado originalmente em Revista Fórum.
*Fabio Dal Molin, psicólogo, psicanalista, doutor em sociologia, professor da FURG e pós-doutorando do Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Clínica e Cultura da UFRGS.
Foto de capa: Reprodução
Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.