Tempos de grandes desafios

De MAURI CRUZ*

Passadas as primeiras horas em que o grande número de informações dificultaram as análises sobre o novo contexto político, é possível iniciar o processo de reflexão sobre os resultados e a nova correlação de força no Brasil.

Lula venceu, apesar disto, a sensação de derrota que tomou conta da militância faz sentido, visto que, para muitos, a vitória no primeiro turno era questão de tempo. Essa possibilidade, a meu ver, resultou de um erro de análise. Explico. Meu raciocínio tem por base quatro fatores que indicavam a enorme dificuldade de um desfecho final favorável neste domingo.

Primeiro, em 2010, Lula encerrava um mandato com mais de 83% de aprovação e o adversário da companheira Dilma Rousseff era o fraco José Serra (PSDB). Apesar disto, num momento altamente favorável, as eleições foram para o segundo turno, demonstrando que a direita, mesmo quando em desvantagem, tem força orgânica e capacidade eleitoral para enfrentar Lula e seus aliados.

Segundo, as pesquisas têm errado a nosso favor. Em 2014, os prognósticos não identificaram o crescimento de Aécio e, novamente, o resultado surpreendeu a todos. Aécio com desempenho acima do previsto encontrou gás para um segundo turno e, depois da vitória da companheira Dilma, para uma oposição ferrenha que culminou no golpe jurídico-midiático-parlamentar. Certo está que a metodologia das pesquisas não consegue identificar um tipo de eleitorado que se organiza como segmento próprio nos territórios e nos nichos temáticos e que, inclusive, é hostil aos entrevistadores.

Terceiro fator foi a redução gradativa da avaliação negativa do Governo Bolsonaro de 53% em julho para 48% nas últimas duas semanas. Mudança que certamente, é resultado do efeito do pacote eleitoral composto pelo auxílio emergencial, as doações a taxistas e caminhoneiros e a redução do preço da gasolina que atingindo as principais camadas e classes sociais.

O quarto fator tem a ver com a estratégia da campanha. A aposta na apresentação da experiência de Lula e nos acertos do governo de 2003 a 2010 não deu conta de apresentar como será o novo governo. Me recorro a Monize Arquer da Unicamp que escreveu artigo denominado “O voto em Dilma Rousseff nas eleições de 2010” onde apresenta a diferença entre avaliação do governo e o comportamento dos eleitores e eleitoras. Neste artigo, identifica que apenas 80% dos que avaliavam como “Muito Bom” e 50% dos que avaliavam como “Bom” votaram em Dilma. Por outro lado, cerca de 20% dos que avaliavam o governo como “Ruim ou Péssimo”, apesar disto, votaram em Dilma. Isso quer dizer que a avaliação positiva no governo Lula ou a avaliação negativa no governo Bolsonaro não são os únicos critérios de escolha usados pelo eleitorado.

No entanto, apesar destes fatores que certamente pesaram contra, é inequívoca a vitória de Lula. Inegável sua enorme sensibilidade política e capacidade de diálogo com o povo brasileiro. Contra tudo e contra todos, Lula venceu o primeiro turno com mais de 57 milhões de votos. Foi o mais votado em cidades, estados e extratos sociais onde o PT e os partidos aliados tiveram baixo desempenho eleitoral. É preciso reconhecer: Lula demonstra ser muito maior que o campo ao qual representa.

Encerrado o primeiro turno, a conclusão é que, tanto a extrema direita como a esquerda se fortaleceram. A direita conquistou no primeiro turno estados importantes como o Rio de Janeiro e Minas Gerais, estado onde Lula também venceu. Já o PT elegeu 04 governadores/a no primeiro turno e ainda está na disputa em três estados importantes, São Paulo, Bahia e Santa Catarina. No Congresso Nacional, a extrema direita emplacou 139 deputados federais e elegeu 16 novos senadores, saindo fortalecida para impor sua agenda ao próximo governo. Já o campo democrático e popular ampliou para 125 deputados federais e somou mais 04 senadores. Elegemos um grande numero de mulheres, de mulheres negras e indígenas, fortalecendo nossa bancada politicamente.

Essa nova composição de forças reproduz o fenômeno da polarização que vem dividindo todos os países do mundo. Aliás, a dimensão internacional tem passado desapercebida pela maioria dos analistas. A vitória da extrema direita italiana, por exemplo, deveria ter sido um alerta sobre a possibilidade de vitória no primeiro turno. O Brasil não é uma ilha, pelo contrário, é peça fundamental no xadrez global e os fenômenos que ocorrem no país não estão isolados, fazendo parte do processo de disputa global do atual estágio do capitalismo tecnológico e financeiro. Neste sentido, era inadequado imaginar que a direita não iria demonstrar toda sua força e poder político nestas eleições.

Como avaliação, também é preciso ressaltar que vivemos um dia de democracia. Sem sobressaltos, sem golpes, sem manipulações, sem questionamento as instituições ou mesmo ao resultado eleitoral. Esse fato, pelo menos por enquanto, retira da disputa um elemento preocupante que era a possibilidade de tumultos, violência e mortes que se prenunciavam há alguns meses. As articulações e a enorme ampliação do espectro político realizada por Lula, certamente, reduziu drasticamente a possibilidade de golpe antes e mesmo durante a eleição. Com sua candidatura, o ex-presidente tornou-se o fiador da democracia e segue sendo um fator de resistência e de proteção.

Por isso, a vitória no segundo turno é estratégica. O que está em jogo não é só o futuro do Brasil, mas de um outro mundo possível. Mas para vencer é preciso entender que o fenômeno da polarização tem como elemento catalizador os valores sociais de cada grupo. A escolha não tem sido a partir das propostas para gestão pública, mas sobre os valores que orientam a vida de cada um e de cada uma, como liberdade, desigualdade, respeito à diversidade, corrupção, direito ao trabalho, meio ambiente e direito à vida. Nestes próximos dias temos que entrar em campo para um debate sobre projeto de sociedade e de futuro. Um debate que tenha capacidade de eleger Lula e de fortalecer nosso campo para que, em qualquer desfecho eleitoral, tenhamos capacidade de disputar e defender aquilo que acreditamos. Caso contrário, Lula, mesmo presidente, poderá ficar refém no jogo político com o Congresso. São tempos de grandes desafios, mas tenho certeza que estamos à altura para enfrentá-los.


*Advogado socioambiental com especialização em Direitos Humanos, professor de pós graduação em direito à cidade, mobilidade urbana, trânsito e transportes, gestão de parcerias em políticas públicas.

Imagem em Brasil Escola.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia..

Gostou do texto? Tem críticas, correções ou complementações a fazer? Quer elogiar?

Deixe aqui o seu comentário.

Os comentários não representam a opinião da RED. A responsabilidade é do comentador.

plugins premium WordPress

Gostou do Conteúdo?

Considere apoiar o trabalho da RED para que possamos continuar produzindo

Toda ajuda é bem vinda! Faça uma contribuição única ou doe um valor mensalmente

Informação, Análise e Diálogo no Campo Democrático

Faça Parte da Nossa Lista de Transmissão

Fique por dentro das notícias e do debate democrático