De LUIZ RENI MARQUES*
Quando o vapor Mercedes atracou no Caís Mauá, na manhã de 9 de novembro de 1919, a delegação do Brasil, de Pelotas, desembarcou depois de viajar a noite toda para disputar, na tarde daquele domingo, no Estádio da Baixada, na capital, a final da primeira edição do campeonato de futebol do Rio Grande do Sul, contra o Grêmio Porto-Alegrense. Finalizada a partida, o time da zona sul do estado comemorou o título após a vitória por 5 a 0 e retornou pelo mesmo caminho das águas do Guaíba, Lagoa dos Patos e Canal de São Gonçalo e, na madrugada de segunda-feira, jogadores, dirigentes e alguns torcedores, foram recepcionados por uma multidão de xavantes no porto fluvial da cidade. O transporte de passageiros entre Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande por hidrovia acabou em meados da década de cinquenta, mas segue vivo no imaginário dos gaúchos, que sonham com o retorno desse modal, agora utilizando modernos ferries, como os que navegam em outras regiões no Brasil e no exterior.
A virada para o século 20 mostrava o Rio Grande do Sul com a terceira mais extensa malha ferroviária do país, medindo 3. 800 quilômetros, equivalentes a 10% da rede nacional, atrás de Minas Gerais, que tinha 11 mil e São Paulo, com mais de 8 mil. As vias férreas cobriam quase todas as regiões gaúchas e se destinavam também ao transporte de passageiros. Curiosamente, a ligação Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande, as três principais cidades do estado na época, não recebeu uma ferrovia. E a razão era óbvia, cargas e passageiros viajavam pela via natural que, saindo da escala em Pelotas, entrava na Barra do Rio Grande que une as águas internas as do Oceano Atlântico. Esse modal, utilizado dos primórdios da povoação da antiga capitania de São Pedro do Rio Grande à década de cinquenta, quando perdeu espaço, substituído, assim como o ferroviário, pelo modelo rodoviário, a partir da implantação da indústria automobilística e a construção de estradas pavimentadas.
As hidrovias hibernaram no Brasil nos anos 60, 70 e 80, período de combustível farto e barato e secundária preocupação com o meio-ambiente, exceto na Amazônia, onde historicamente tem sido o principal meio de movimentação de pessoas e cargas. O despertar desse sono começou com o transporte de cargas nas bacias dos Rios Tietê e Paraná e o sistema fluvial/lacustre do sul do pais, que se estende ainda ao Rio Jacuí. A expansão da cabotagem brasileira, conquistando toda a costa do país, e a exploração da via aquática, reunindo as águas dos rios Uruguai, Paraguai e Paraná, despejando-as no Rio da Prata, que desagua no mar, valorizou as hidrovias, amarradas a esses modais que acompanham o litoral de cada país. Essas regiões ganharam linhas regulares de transporte de cargas, como a que liga os terminais de contêineres de Rio Grande e de Santa Clara, em Triunfo.
A consolidação da cabotagem e seu braço espichado até a região metropolitana de Porto Alegre fez ressurgir a ideia de retomar o transporte de passageiros entre a capital e o sudeste do estado pela hidrovia, adormecida desde o desaparecimento dos românticos vapores, e que voltou a ser cogitada nos últimos anos. Alguns novos fatores, englobando o custo elevado do modelo rodoviário, a poluição provocada pelos combustíveis fósseis, a capacidade limitada dos ônibus e a agressão ao meio-ambiente acordaram o modal. Ele já é utilizado há tempo em outros estados, em rotas longas como a Manaus/Santarém, pelo Amazonas, que demora 31 horas e curtas como a Salvador/Itaparica, na Bahia, de 1h20 minutos e Rio/Niterói, que perdeu passageiros após a inauguração dos 13 quilômetros da Ponte Presidente Costa e Silva, em 1974, e recuperou a competitividade com a chegada de modernos ferries, que estão substituindo as velhas barcas, menores e lentas. Essas embarcações desenvolvem velocidade superior a 100 km/h e carregam em torno de 700 passageiros, estão sendo usadas em todas as rotas citadas.
O sonho de implantar uma linha de ferry entre Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande ficou mais perto da realidade com as novas exigências de economia, segurança e sustentabilidade. E, ao contrário dos vapores que navegavam a noite toda para chegar ao destino, um ferryboat pode cumprir o trajeto em cerca de 3 horas da capital a Rio Grande, e apenas 2h30 até Pelotas. A rota ofereceria rapidez, conforto e pontualidade e uma vantagem exclusiva a seus mais de 700 passageiros: o cenário exuberante da Costa Doce, em todo o seu percurso, desfrutando da sua bela e singular natureza. O custo de cada embarcação desse tipo oscila em torno de R$ 30 milhões para um barco de 700 lugares e R$ 50 milhões para os com capacidade para 1.300 passageiros. Podem ser fabricadas em estaleiros no Brasil, inclusive no quase desativado polo naval gaúcho, ou em outros países, entre eles, Noruega, Itália, Grécia, Coréia do Sul, China e Austrália.
O desejo de contar com uma rota pelas águas entre Porto Alegre e Rio Grande, escalando em Pelotas, emergiu com a chegada da travessia de catamarã entre Porto Alegre e Guaíba, que vem sendo operada com sucesso pela Catsul, empresa do Grupo Ouro & Prata, desde 2012. Os seus dois barcos carregam cerca de 120 passageiros cada e levam 25 minutos para ir de uma cidade a outra. A PortosRS, administradora dos principais terminais marítimos e fluviais do estado, e as prefeituras de Rio Grande e Pelotas discutem a implantação de uma linha chamada “Cruzeirinho”, voltada para passeios turísticos pela região das lagoas e suas ramificações. A proposta, em fase de estudos, pode dar fôlego a ideia de retomar o transporte de passageiros pela hidrovia.
O custo inicial do projeto seria recuperado em poucos anos e o estímulo governamental poderia ser decisivo para a sua concretização a exemplo do que aconteceu no passado com a Companhia Rio-Grandense de Navegação a Vapor, dona do Mercedes, fundada em 1.891, graças a um programa de incentivo criado pelo governo do estadual. O poder público no Brasil também financiou outros projetos viários como a importação de ônibus dos Estados Unidos e da Inglaterra nos anos 1930 pelo governo do Rio de Janeiro para aperfeiçoar o transporte urbano e nos anos 1950, pela prefeitura de Porto Alegre, suprindo a carência nos novos bairros, que não eram acessados pelos trilhos dos bondes.
E o que seria de São Paulo sem o metrô, construído nos anos 1970, usando recursos do governo federal, que melhorou a locomoção dos paulistanos?
Além dos sistemas já lembrados, aqui perto uruguaios e argentinos contam com uma linha de ferry entre Buenos Aires, Colonia del Sacramento, Montevidéu, Piriapolis e Punta del Este, que cruzam as águas do Rio da Prata, transportando passageiros, carros, bicicletas, motos e cargas de pequenos volumes. Os barcos também são importantes na América do Norte, na Ásia, no Caribe e na Austrália. A Europa tem rotas de ferry espalhadas por todo o seu recortado mapa, ligando Inglaterra e Irlanda, Grécia e Itália, Dinamarca e Suécia e tantas outras, utilizando embarcações que transportam de 600 a mais de 3 mil passageiros. Foi num desses gigantes que viajei, à noite, de Ostende, na Bélgica a Dover, na Inglaterra, uma viagem tranquila, mesmo em meio, no trecho inicial, a uma forte tempestade. Conversando com outros passageiros, descobri que eles estavam acostumados com essa adversidade, que prejudicou apenas o passeio pelo convés do ferryboat. Ante o mau tempo, a conversa correu solta nos cafés, bares, restaurantes e salões do barco. Nunca esqueci a preocupação de um casal de jovens belgas com um possível temporal na chegada, porque iriam fazer o trajeto de Dover a Londres nas suas bikes. A sorte estava do lado deles, a chuva cessou pouco antes do desembarque na Velha Albion.
Quer saber mais sobre o assunto? O autor explora o tema na segunda edição do programa “Logística na sua Vida”, o novo podcast da RED. Confira:
*Estudou Direito e História. Formado em Jornalismo. Foi repórter em Zero Hora, Jornal do Brasil, o Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, Senhor e Isto É, e correspondente free lancer da Reuters, entre outros veículos de comunicação. Redator e editor na Rádio Gaúcha, diretor de redação da Revista Mundo, professor de Redação Jornalística na PUCRS e assessor de imprensa na Câmara dos Deputados durante a Assembleia Nacional Constituinte. Atualmente edita blog independente.
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