Por DANIEL AFONSO DA SILVA*
Ao conceder o título de Doutor Honoris Causa aos Racionais MC’s, na última quinta-feira, 6 de março de 2025, a Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, ultrapassou as fronteiras do impensável, do imponderável e do irrealizável. Produzindo um dos gestos mais importantes da universidade brasileira em todos os tempos. Reconhecendo e normalizando a presença e a existência de povo – com verdade, carne e osso; e não simplesmente como objeto – no interior de templos acadêmicos de saber.
Ninguém poderia imaginar tamanho desprendimento mesclado a inigualável humildade advindos de uma das maiores e melhores universidades do país.
Mas foi sim. Foi assim. Lindo e necessário. Uma extraordinária contribuição da Unicamp à compreensão do que faz do Brasil, Brasil.
A cerimônia – seguindo todos os decoros impostos ao rito – foi simplesmente irretocável.
Perfeita em todos os aspectos.
Superando a priori qualquer comentário ou reparo.
Uma formalidade impecável. Acima de qualquer crítica.
Sobretudo em espontaneidade de emoções. Nada forçado. Tudo real. Verdadeiro. Verdade.
Veja-se aqui.
Nada substitui a apreciação do que foi.
Pois foi algo que verdadeiramente calou fundo. Da primeira à última manifestação. Carregadas em espiritualidade. E também ação.
Com destaque para a manifestação do Magnífico Reitor da Unicamp. Que clarificou o momento. Deixando evidente ser a Unicamp a maior homenageada ao conceder essa honraria aos Racionais. Não o inverso.
Todos sabem. E sabem há tempos. Mas poucos reconhecem. Os Racionais – como pulsão de vida, resistência e clarividência – são genuínos patrimônios materiais e imateriais do Brasil. Patrimônios que a Unicamp vem agora referendar.
A arte desses moços – Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay – sempre plasmou o que há de mais misterioso no ethos do Brasil e dos brasileiros. Sempre mobilizou o insondável das ancestralidades africanas, ameríndias e afro-ameríndias na gestão de cotidianos transpassados em vida loka e tempos difíceis. Nem sempre, porquanto, favoráveis. E quase nunca os portadores de alentos.
O “maninho do Shopping” que hoje ou amanhã tomar contato com essa arte perceberá dimensões quase palpáveis dessa complexidade. Que, ao fim das contas, recomenda “andar com fé que a fé não costuma falhar”.
O que não era verdade – ou melhor, era impenetrável como mensagem – para quem iniciou a audição e apreciação dos Racionais no início de tudo. Quando eles eram apenas uma força estelar. Embalados pelos ventos da redemocratização, da Constituinte, da primeira eleição direta para presidente depois de 1960 e, bem ou mal, do primeiro presidente eleito democraticamente após tanta escuridão.
Lá atrás, mesmo aos mais inveterados da cena do hip hop, Que país é este? parecia muito mais convincente que Negro Drama. Que muita vez soava arrivista demais – e, de fato, era, pois a contingência impunha e impõe – perturbador demais, sorumbático ao extremo.
Mas, em verdade, era complementar.
Poucos entendiam e quase ninguém reconhecia.
Menos ainda os próprios negros, periféricos, vindos de comunidades.
“1992,… voltando, Racionais. Usando e abusando de nossa liberdade de expressão. Um dos poucos direitos que o jovem negro ainda tem neste país. Você está entrando no mundo da informação, autoconhecimento, denúncia e diversão. Este é o raio x Brasil. Seja bem-vindo”.
2025: Mudaria o Natal ou mudei eu?
Mudou-se tudo. Mudaram-se todos. Ou quase tudo e quase todos.
Os 36 anos dos Racionais contemplaram a mudanças essenciais com a manutenção de permanências transcendentais: o negro segue em drama e quase ninguém tem respostas suficientes para dirimir a razão. Fixando sobre todos a perplexidade da questão: Que país é este?
Ao conceder do honroso título de Doutor Honoris Causa aos Racionais, a Unicamp acelera os nossos passos na direção de respostas. E, quem sabe, soluções.
Parabéns à Unicamp.
Obrigado à Unicamp.
E vida longa aos Racionais.
*Daniel Afonso da Silva é Pesquisador no Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da Universidade de São Paulo e professor na Universidade Federal da Grande Dourados.
Foto da capa: O grupo Racionais MC`s recebendo o título Doutor Honoris Causa, pela Unicamp | Patricia Domingos
Respostas de 15
Coisa linda! São merecedores dessa honraria que não enche barriga mas é uma luz na direção de pessoas tão essenciais e importantes em nossa cultura popular. Parabéns garotos!
Belíssimo texto, muita emoção ao ler o texto. O reconhecimento da cultura popular como expressão da consciência política de jovens pensadores traz um sentimento tipo “nem tudo está perdido. Agradecimento profundo aos “Racionais”: e ao reconhecimento público do valor da cultura popular pela UNICSMP.
Excelente… singular artigo.
Obrigada por compartilhar.
Amei.
Texto excepcional , sensível e viva a cultura negra !!!
Sou da periferia de SP, feliz com essa honraria. É, e sempre será um pouco da nossa voz.
Que texto inteligente e sensível.
Parabéns.
Muito bonito.Tudo lindo, mas é os cientistas brasileiros quando serão homenageados também? Os estudantes que saíram do mesmo gueto e se transformaram em doutores não merecem a mesma honraria? Interessante….
Quase acreditando que este país tem jeito!! Quando isso acontece precisamos gritar pra que meu vizinho saiba até onde foi aquela poesia concreta , suburbana chegou… e que ele semianalfabeto coloca a caixa lá fora e faz todo mundo engolir goela abaixo… todo a dor dos que não tem voz e nem credo … nós os pobres…!!
Que possamos sempre reconhecer nosso Patrimônio Cultural!
Momento único e inesquecível de um reconhecimento e percepção profunda e potencial da magnífica e espetacular obra artística do nosso grande Racionais
Acreditamos em toda adição cultural de nosso povo, pujante em veias que já não consegue se calar.
Fiquei feliz! Em meio a tantos absurdos e gestos assustadores que assolam nossa sociedade é muito animadora essa notícia. Eles merecem e nós merecemos que a universidade avance na compreensão do que é cultura.
Um ato de extrema competência e compreensão de Cultura! Bravo!!
Muito emocionante 💖💖💖