Por LÉA MARIA AARÃO REIS*
Época de reavivar memórias e remexer no lixo da História já que a História, no seu vai-e-vem, parece tomar um rumo semelhante àquele de pouco mais de meio século atrás. Guerras gerais, frias ou múltiplas, ameaça nuclear, massacres, genocídios, neo-colonialismo, chefes de estado psicopatas rodeados por assessores e conselheiros paranoicos, e a crescente desconfiança dos cidadãos de todas as partes do mundo das instituições públicas. Mais uma vez, esses ingredientes se repetem no quadro geopolítico atual, disfarçados de guerra híbrida, guerra por procuração, guerra de quarta geração (no dizer dos militares), guerra informacional, em rede, e, na moda, guerra proxy.
Não surpreende a explosão de documentários sobre o passado histórico, e não apenas para repassar datas redondas. Nem o número de acessos a essa série de TV de cinco episódios com uma hora de duração cada um, do elogiado diretor norte-americano Brian Knappenberger. Recém-chegada ao streaming, é uma coletânea que pretende seguir a trajetória de grande sucesso da recepção ao recente fenômeno da série Adolescência.
Os cinquenta anos da guerra do Vietnã, da queda de Saigon em 30 de abril de 75, em Ponto de Virada – A Guerra do Vietnã, revelam alguns detalhes menos conhecidos, sobretudo pela geração Z, dos jovens de hoje, da luta encarniçada que deixou sequelas no “inconsciente coletivo dos norte-americanos”, como ressaltam os produtores de Turning Point: The Vietnam War. A série é sucessora de Ponto de Virada: 11/9, Guerra ao Terror e Ponto de Virada: A Bomba e a Guerra Fria, todas com a direção de Knappenberger.
Os episódios são estes: 1. Os Estados Unidos vão para a Guerra. A Guerra Fria se torna mais tensa, correspondente às guerras híbridas e às guerras por procuração, e o país entra na luta ao lado do Vietnã do Sul. 2. Guerra Civil. Soldados vietnamitas relembram as origens do conflito travado ao longo do Paralelo 17, a explosão da luta contra o racismo nos Estados Unidos e o movimento pelos direitos civis que inspira uma nova geração de ativistas. 3. A Vida não vale nada. A chamada Ofensiva do Tet acaba com o mito de que os Estados Unidos garantem a vitória e testemunhas e sobreviventes lembram os horrores do massacre de My Lai. 4. Por que afinal estamos aqui? Nixon e Kissinger iniciam uma campanha implacável de bombardeios, os veteranos dos EUA condenam a guerra e o chamado massacre na Kent State suscita indignação. 5. Fim da Linha. O imenso custo humano, o legado da guerra que vai além da queda de Saigon (Cidade de Ho Chi Minh) em 75, e a história se repetindo no Iraque e no Afeganistão, nas décadas de 80 e 2000.
A principal atração da série é a exibição das gravações recuperadas em fitas do Miller Center, o centro de pesquisa da Universidade de Virgínia, com as conversas durante reuniões dos presidentes Lyndon Johnson e Richard Nixon com seus assessores, na Casa Branca. Elas revelam a incoerência entre as declarações públicas das lideranças do país e as suas avaliações privadas, e o que ocultavam da população. Isto é: a guerra no Vietnã era, em princípio, uma “causa perdida” que não poderiam vencer; mas que não admitiam.
Os episódios foram montados com essas gravações e com entrevistas de ex-combatentes e políticos da época, além de uma quantidade significativa de imagens e matérias de famosos correspondentes de guerra estadunidenses. Os repórteres e fotógrafos de grandes redes de notícias, vê-se em um episódio, várias vezes foram pressionados e sofriam tentativas de manipulação por parte de Washington no trabalho de campo das batalhas. “Queremos matérias mais positivas de vocês”, dizia o general-chefe das forças do exército, William Westmoreland, o criador das mortais expedições de “busca e extermínio” no Vietnã.
Para a geração dos baby boomers, dos que têm hoje mais de setenta anos, nascida no pós-guerra imediato da Segunda Grande Guerra, nomes e denominações como os do general Westmoreland, do Secretário de Defesa Robert McNamara, de Dien Bien Phu, My Lai, Tet, Paralelo 17 e Cú Chi, se não são familiares também não são desconhecidos. Talvez não sejam mais lembrados. Mas todos os dias, a mídia internacional mostrava, com insistente cobertura, muitos flagrantes dessas localidades e as declarações (mentirosas) dos protagonistas. Para os jovens de hoje são nomes e locais que não significam nada.
Abaixo, alguns dos personagens, das cidades e dos lances quase esquecidos, mas relativos aos acontecimentos:
- Tio Ho: como os vietnamitas do norte denominavam o escritor, poeta e jornalista Ho Chi Minh, presidente do Vietnã do Norte, opositor aos colonizadores franceses e líder da independência do seu país, que estudou na França onde trabalhou em restaurantes e confeitarias. Quando passou pela costa do Atlântico em navio francês, o Latouche Tréville, Tio Ho, que era o cozinheiro de bordo, chegou a ficar doente.
- Cúchi: os túneis de Củ Chi formavam uma formidável rede subterrânea construída pelo Vietcong a partir do distrito de Củ Chi, localidade próxima de Saigon, onde nós estivemos. Usados para abrigar e movimentar tropas e armazenar suprimentos, dentro deles foram montados até hospitais e cozinhas completas. Há pelo menos vinte anos atrás os turistas, assim como ocorreu conosco, eram convidados a visitá-los.
- Scott Camil é um ex-fuzileiro naval que depois de perceber o engodo do governo sobre a guerra se tornou ativo militante da causa da paz. Scott Shimabukuro, outro fuzileiro naval nipo-americano, enfrentou racismo dentro do exército, testemunhou sobre crimes de guerra e colaborou na criação de um programa de apoio para veteranos asiático-americanos.
- Jan Barry Crumb se desiludiu com a guerra, renunciou a West Point, foi um dos fundadores do grupo Veteranos do Vietnã Contra a Guerra e seguiu a carreira de escritor baseado em guerra e paz. E Everett Alvarez Jr., primeiro piloto norteamericano abatido sobre o Vietnã do Norte, suportou mais de oito anos como prisioneiro de guerra antes de retornar aos EUA e iniciar uma carreira no serviço público e nos negócios.
- Um detalhe: Ho Chi Minh, logo no começo da guerra civil entre o norte e o sul do país retalhado com os acordos franceses, chegou a solicitar apoio a Truman e a Eisenhower em carta, contra a divisão do Vietnã, ex-Indochina. Suas cartas nunca foram respondidas.
- E um lembrete de Turning Point: The Vietnam War: os jovens norte-americanos forçados a se apresentarem e que lutaram na fase final da guerra, em geral eram rapazes de classes populares, dos mais pobres, que não mantinham bons “contatos” para se esquivarem de ir à luta.
- Já no Vietnã do Norte era impressionante o número de mulheres/soldados alistadas, voluntariamente, que eram encontradas nas frentes de batalha.
Em suma: assistir Ponto de Virada – A Guerra do Vietnã expõe um legado dramático e importante para entender melhor os tempos sombrios de agora. “Vemos feridas não resolvidas”, lembram o diretor da série e seus produtores. “Lições que não foram aprendidas”, eles dizem. E em particular, o preocupante desgaste da confiança das populações nos seus governos e em seus líderes políticos.
Assista ao trailer:
*Léa Maria Aarão Reis é jornalista.
lustração de capa: Reprodução
Respostas de 2
Gostei do texto
Tenho 81 anos.
Sei o que foram esses anos infelizes.
Não quero ver.o filme, nem o trailer.
Léa, mais uma vez, um artigo teu me alumbra e me provoca a ver uma série que eu já tinha decidido não assistir. Produções estadunidenses sobre a Guerra do Vietnam sempre me deixam, no mínimo, com a pulga atrás da orelha (expressão que os jovens formados por Netflix, Prime Video e assemelhados não devem conhecer). A exceção primordial foi “No ano do porco” de Emilio De Antonio, realizado em 1968, durante a guerra do Vietnam e contra ela. Então, como hoje, são raros os De Antonios e Haxel Wexlers que davam a cara e acusavam os crimes do estado imperialista quando estavam acontecendo. Mas lembrar é necessário para refletirmos e compararmos com o que o mundo se tornou. Parabéns, cara amiga.