Por LÉA MARIA AARÃO REIS*
Uma sessão de cinema excepcional aguarda o espectador, esta semana. Está nas telonas o filme Levados pelas Marés, de Jia Zhangke, um dos cineastas mais admirados e respeitados da atualidade. E como complemento a ele, a reprise do documentário de Walter Moreira Salles, Um Homem de Fenyang, o recorte do perfil do diretor chinês de 55 anos, um dos mestres do autor de Ainda estamos Aqui, como ele próprio, Salles, costuma afirmar.
Caught by the Tides, o título em inglês para o mercado internacional, estreou no Festival de Cannes, entrou na lista dos melhores filmes de 2024 do New York Times, passou pelo Festival de Toronto e foi exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo do ano passado onde foi escolhido pela crítica Melhor Filme do festival. Já o doc JiaZhangke, umHomem de Fenyang, de Salles, está retornando às telonas e é uma homenagem do cineasta ao amigo chinês, com as entrevistas conduzidas por ele e pelo crítico francês Jean-Michel Frodon, ex – editor da revista Cahiers du Cinéma.
Através de uma singela história de amor, Levados pelas Marés é uma trajetória romântica, mas épica, e mistura ficção a preciosas imagens de arquivo na construção de um belo mosaico das vertiginosas transformações pelas quais a China passou durante as últimas décadas a partir da Revolução Cultural de Mao Tse Tung, iniciada em maio de 1966.
O especial interesse atual pela obra de Zhangke vem justamente daí, da informação desse período de transformação interna, da população chinesa, relativamente pouco conhecido pelas novas gerações no ocidente. Os seus 21 filmes, longas e curtas-metragens, documentários e ficção, acompanham a abertura da China para a economia de mercado e para o mundo ocidental da qual Zhangke e sua família foram testemunhas.
Memória, tempo de transição, mudança e modernização se entrecruzam e se completam no filme que alguns críticos denominam um épico intimista; ou seja, a jornada emocional da protagonista Qiaoqiao (atriz Zhao Tao ) em busca de um amor que parece perdido.
A história é esta: ao longo de duas décadas, de 2000 a 2020, Qiaoqiao e Bin, seu namorado, vivem um amor na cidade chinesa de Datong. De repente, Bin vai embora para tentar a sorte em um lugar maior. Mas algum tempo depois, Qiaoqiao, a personagem que inclusive está presente em vários outros filmes de Jia, parte para reencontrá-lo. No trajeto, ela vai presenciando e é testemunha do imenso impacto da transição histórica no seu país.
No início do filme, acompanhamos Qiaoqiao pela China pós – Mao em todo o seu vigor. Os cafés, as mulheres que cantam óperas para sobreviverem financeiramente, os desfiles de modas prêt-à-porter que são exportadas hoje pela China para o mundo (um sucesso, inclusive no Brasil), o universo artificial das imagens binárias, os funks desenfrados dançados com arte e mestria pelas novas gerações de moças e rapazes, os jogos olímpicos (‘’A China venceu!”), a celebração da parceria das empresas privadas com o estado, todas essas situações iluminadas por luzes radiantes e por vezes por uma meia luz que nela se intromete. Uma ‘’escuridão que se encontra escondida nas profundezas das nuvens e devora a paisagem do meu coração’’, é como faz poesia o cineasta, no doc de Walter Salles: ‘’O cinema é público, mas também pode ser muito particular, pessoal, porque ele traz memória’’.
A memória de Jia nos traz as casas das ruelas das pequenas cidades demolidas, a construção monumental da histórica represa das Três Gargantas, a maior do mundo; a violência, um problema nacional que chegou com o advento das redes sociais, e a sua família marcada pela Revolução Cultural, de 1979 a 1998, época da reeducação da população. A idade do diretor permitiu o seu testemunho da transição da China desde a morte de Mao, o fim da Revolução Cultural e a subida ao poder de Deng Xiaoping.
Em companhia de Qiaoqiao, o espectador visita cidades demolidas aos poucos, memórias que vão sendo apagadas, e homens e mulheres viajando ao sabor de novas oportunidades econômicas e de empregos em regiões que se transformam.
‘’ É uma visão deslumbrante que trata da perda e da renovação’’, escreve a propósito, e com justa razão, o crítico Justin Chang, do jornal The New Yorker. “Poucos cineastas misturam o pessoal e o político, o micro e o macro, tão brilhantemente quanto Jia,” festeja o New York Times.
E Walter Salles promove um retrato afetuoso do amigo em Um Homem de Fenyang e relembra sua obra através de imagens e cenas de filmes de autoria de Jia, como Em Busca da Vida e Um Toque de Pecado dois da relação de outros trabalhos notavelmente premiados, na Berlinale da Alemanha, em Veneza (Leão de Ouro), em Cannes (Melhor Roteiro de Um toque de pecado) e em São Paulo, onde sua obra ganhou uma retrospectiva e estreou seu documentário Nadando Até o Mar se Tornar Azul, de 2020.
Levados pelas Marés é um filme imperdível, que estimula a vontade de revê-lo para usufruir plenamente de todos os seus preciosos símbolos, focos, sinais, toques e da extraordinária intuição que ele carrega consigo, entre luzes ofuscantes e semi tons históricos. Sua última sequência, com a maratona se aproximando do casal parado na calçada e Qiaoqiao entrando nela, sorridente, é exemplar.
Em tempo: o livro O mundo de Jia Zhang-ke foi lançado no Brasil pela editora Cosac Naify, em 2014. É uma coletânea de entrevistas com o cineasta, de autoria de Jean – Michel Frodon e tradução de Walter Salles.
Léa Maria Aarão Reis é jornalista.
lustração de capa: Divulgação