Lumpocracia: Quando a Canalhice Chega ao Poder

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Por SÉRGIO ALARCON*

Em 1852, Marx, ao analisar o golpe de Estado de Luís Bonaparte, sobrinho de Napoleão, identificou uma nova estratégia de dominação: a ascensão política baseada no lumpesinato. No 18 de Brumário de Luís Bonaparte, o filósofo descreve esse estrato social como composto por “degradados e aventureiros de toda espécie”, unidos não por projetos de emancipação ou de bem comum, mas pelo ressentimento, pela violência dispersa, pela mesquinharia e pela ambição desavergonhada, rejeitando qualquer ordem civilizada. Luís Bonaparte mobilizou essa massa instável, oferecendo-lhe a ilusão de poder enquanto servia aos seus próprios interesses e à restauração de uma ordem conservadora, resultando em uma ditadura que destruiu a Segunda República Francesa e culminou na humilhante derrota para a Prússia de Bismarck.

Jair, o “Mito”, embora não possuísse a inteligência ou a astúcia estratégica de Luís Bonaparte, galvanizou no Brasil um conjunto semelhante de forças marginais: milicianos, traficantes, neoliberais oportunistas, fanáticos religiosos, estelionatários e ressentidos em geral. Essa base foi movida pelo ódio à ordem democrática, ao conhecimento e à alteridade. Diferentemente de Bonaparte, que manipulava o lumpesinato de fora, Jair era ele próprio parte desse lumpem – pequeno, medíocre e oportunista -, o que tornou sua ascensão ainda mais visceral e caótica.

Pois aconteceu no Brasil aquilo que Gramsci enunciou como uma lei da natureza: em momentos de crise hegemônica, quando “o velho morre e o novo não pode nascer”, surgem as figuras monstruosas. Jair é produto desse interregno, que se estende desde o golpe parlamentar contra Dilma em 2016 – baseado em “pedaladas fiscais” posteriormente desqualificadas, ou seja, um impeachment baseado em nada -, passando pelo (des)governo de Temer, pela tentativa de usurpação do Estado de Direito pela Lava Jato de Curitiba, até o retorno da democracia com a eleição de Lula e sua (talvez inédita) Frente Ampla, em 2022.

Frente Ampla que se formou por absoluta necessidade de sobrevivência (da república, da democracia, das instituições, da cidadania, das pessoas…). Durante seu lamentável governo, Jair transformou a decomposição política em método de dominação. Foi um desastre polimorfo – econômico, social, ambiental e moral: nem todos sobreviveram à estagnação econômica, ao aumento da desigualdade, ao negacionismo pandêmico (com mais de 680 mil mortes por Covid-19), ao desmatamento recorde da Amazônia e aos ataques sistemáticos às instituições democráticas, culminando na tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023. As vítimas desse período nefasto de nossa história deveriam ser lembradas com maior ênfase, especialmente quando as forças obscuras dos seus algozes clamam por “anistia”.

O bozismo, é bom que se diga – nisso de novo diferente de Napoleão III -, não buscou (e não busca) restaurar formas ultrapassadas de poder, mas consagrar a própria decomposição social como norma. Bozistas não são, como dizem, “conservadores”. A lumpocracia – a canalhice organizada como método de dominação – tentou, numa verdadeira revolução, transformar a barbárie em ideal de governo, esvaziando a política de qualquer horizonte construtivo para, em troca, “dar passagem à boiada”. Uma revolução que almejou (e ainda almeja) ser pior que seu parente próximo – o nazismo -, que Theodor Adorno descreveu como barbárie mascarada sob uma fachada de civilização. Ao contrário, o bozismo não se preocupou em criar qualquer fachada de civilização; exibiu no poder sua destrutividade sem pudor, moldando parte da sociedade segundo a lógica do espetáculo da violência, onde o pensamento crítico (desqualificado como “esquerdismo”) cedeu lugar à repetição de slogans e à encenação da desordem permanente, enquanto no mundo real devastava o país.

Felizmente, a lumpocracia bozista foi momentaneamente derrotada. Apesar de sua capacidade de mobilizar uma base fiel – não apenas do lumpenproletariado -, a resistência das instituições democráticas e da sociedade civil – evidenciada pela vitória de Lula em 2022 e pelo fracasso do golpe de 8 de janeiro – barrou sua consolidação. O bozismo não conseguiu transformar o Brasil num reino de barbárie permanente, mas deixou feridas abertas: um país sob risco de novas tentativas de golpe, com instituições ainda fragilizadas (como é notório no Parlamento, mas também no Judiciário, ainda contaminado pelo lavajatismo) e uma sociedade desafiada a reconstruir seu tecido democrático contra as sombras ameaçadoras do bozismo, que insiste em parasitar as feridas da sociedade que ele mesmo ajudou a golpear, oferecendo como futuro ao país a incrível sedução da própria destruição.


*Sergio Alarcon é psiquiatra

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Foto de capa:  Ron Mueck

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Respostas de 11

  1. Muito bom. O texto ilustra muito bem o momento político caótico em q vive o país hoje, principalmente a mercê d um Parlamento parasita em constantes conflitos e um Executivo frágil diante d uma base composta p/próprios sugadores parasitas.

  2. Realista até as duras raizes da mais profunda sabedoria. Inédito, como médico, que via de regra são omissos por conta do medo, não sem justificativa, da corporação.

  3. Muito bom o artigo. Chamou muito a minha atenção e gostaria muito que o autor pudesse desenvolver o conceito de “lumpemproletariado”, situando-o no contexto atual do mundo do trabalho, e mais particularmente no contexto do Brasil atual.

  4. Estas forças ultra conservadoras para uma sociedade em profunda transformação não têm propostas. “Usam” a manipulação para serem lideranças de um povo com medo inseguro. Uma “política” da destruição, a linguagem sem diálogo, com atos de gritaria, idiotice.

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