Por LÉA MARIA AARÃO REIS*
Há quatro meses, dia sete de novembro de 2024, Ainda Estou Aqui entrava em cartaz nos cinemas de diversas cidades do país. Duas semanas depois, publicada a resenha (clique aqui para ler) do filme de Walter Salles, ele já causava saudável choque entre os/as espectadoras. Desencadeava uma onda inesperada de emoção em diversas classes sociais, e a sua aceitação era semelhante apenas ao abalo coletivo diante de históricas partidas de futebol, uma das grandes paixões dos brasileiros.
Atualmente, depois de receber o Oscar de Melhor Filme Internacional e ganhar outros prêmios em festivais conceituados, de Veneza, Canadá, Espanha e Roterdã, além do Globo de Ouro para Fernanda Torres, a produção falada em português, está sendo apresentada em dezenas de países ao redor do mundo, elogiada e celebrada pela maioria da mídia e da crítica especializada internacional.
Embora a notável Fernanda Torres, indicada para o Oscar de Melhor Atriz, não tenha recebido uma merecida estatueta com seu trabalho contido e tenso, na interpretação da personagem da advogada Eunice Paiva que perde o marido assassinado pelas forças militares e policiais da ditadura civil-militar de 1964, a sua atuação deixa uma forte marca na história da cinematografia nacional.
Ainda Estou Aqui (I’m Still Here) continuará nas nossas telonas até o próximo dia dois de abril. Cinco dias depois, seis de abril, entra no catálogo da plataforma digital Globoplay, uma das suas co-produtoras juntamente com a Conspiração Filmes e a Arte França.
E mais: é um sucesso de bilheteria, com mais de cinco milhões de espectadores e foi incluído no Top 05 dos melhores filmes internacionais de 2024 da National Board of Review e considerado um dos melhores do ano pelas revistas BBC e pela emérita Sight and Sound.
No Rio de Janeiro, o cineasta Silvio Tendler, autor de importantes documentários de referência, se manifestou a respeito: “Além de ser um grande filme, revela a grandeza do seu autor. O cineasta Walter Salles, o mais rico do mundo, que investe recursos próprios para contar uma história que nos é negada pela ditadura, herdeiros e seguidores. Sinto orgulho por fazer parte do grupo que luta por discutir nossa realidade por meio do bom cinema. Viva a equipe de Ainda Estou Aqui, seu timoneiro, Walter Salles, e as Fernandas (Torres e Montenegro), além de toda a equipe de realização. Waltinho acaba de demonstrar que indústria se constrói com qualidade, talento e grandeza”.
Silvio conclui, colocando o dedo na ferida: “A ilusão de que com filmes chinfrins construiremos uma indústria não passa de ledo engano”.
Já o próprio Walter Salles, ainda em Los Angeles, concedeu uma entrevista coletiva onde enfatizou um dos mais importantes significados do seu filme, que foi gestado durante sete anos e realizado a partir do livro de Marcelo, filho de Rubens Paiva. Em I’m Still Here acabou estreando em um momento de grande tensão na geopolítica, com ataques às democracias, e no instante no qual um mundo antigo vai deixando de existir e o novo, com os movimentos nazifascistas proliferando no Brasil e no mundo, devem ser vigorosamente combatidos.
“Estamos vivendo algo que eu não esperei ver tão cedo”, declara Walter. “É um processo de fragilização crescente da democracia que está se acelerando cada vez mais. A única coisa que posso atestar é o quanto o filme, que fala de uma ditadura militar, se tornou tão próximo de quem o viu”.
“Muitos espectadores nos Estados Unidos apontaram semelhanças entre a história retratada no longa-metragem e a atual realidade política do país. E eu diria que não é só aqui. De certa forma, isso ecoa o perigo autoritário que hoje grassa no mundo todo”, continuou.
“Governos autoritários como este país (os EUA) tem hoje surgem, mas acabam e somem no esgoto da história, enquanto livros como o de Marcelo, que inspirou o roteiro, canções como as de Erasmo Carlos e Caetano Veloso, e filmes da cinematografia latino-americana permanecem. Permanecem porque viram memória”. E concluiu com uma frase em português: “Viva a democracia. Ditadura nunca mais”.
Para relembrar Estou Ainda Aqui e reforçar que também estaremos sempre aqui, lutando contra o arbítrio, as mentiras, o cinismo e a podridão dos cafajestes na política, trechos da resenha do filme, publicada em dezembro de 2024.
“( … ) Os ‘cachorros’, como eram chamados os espias da ditadura, estavam infiltrados em todas as partes, naquele Leblon, aparentemente pacato. Nos cafés, nos botequins, nas peladas de praia e de pé, encostados nos postes das esquinas, vigiando. De vez em quando qualquer morador podia se surpreender com um deles subindo pelas escadas dos pequenos prédios sem elevador, típicos do bairro, em busca de drogas que sabiam estar escondidas ou para chantagear moradores”.
“( … ) Fernanda Torres, filha da querida ‘Fernandona’, como carinhosamente se chamava naquele tempo sua mãe, desenvolve um intenso trabalho de dramaturgia introvertida no filme. Interpretação ‘para dentro’, sofrimento seco, ela/Eunice recria com perfeição a mãe que não podia sucumbir. Com cinco filhos para criar, com um enigma a esclarecer e que a seguiu por toda a vida, a saudade indescritível do marido e as lembranças dos dias felizes vividos juntos, foi em frente com a família, estudou as nossas leis, formou-se em Direito e mudou para São Paulo, distante do teatro da sua tragédia”.
“( … ) Um segundo espectador, na saída da sessão de cinema, comenta sobre a segunda parte de Ainda Estou Aqui. Mesmo muito emocionado, diz que o filme não chega a colocar em contexto a luta coletiva da qual Eunice foi uma parte. Apesar da perspectiva escolhida pelo roteiro, da ação e reação exclusivas da advogada diante da brutal perda do seu paraíso”.
“( … ) Ainda Estou Aqui não é apenas um filme que soube usar recursos visuais, fontes de época ou retratar um momento traumático da história brasileira; é um filme necessário”, escreveu com simplicidade e argúcia Julio Cesar Teles, mestrando em História da Universidade Federal de São Paulo. “Em tempos de ascensão de ideias absurdas que podem levar a regimes de exceção que rejeitam a discordância, reabrindo feridas não cicatrizadas – pois a justiça, nesse caso, foi impossibilitada ironicamente pela própria lei –, esse filme assume a função de memória e resistência. A Lei da Anistia, que em seu momento restaurou a democracia, permitiu também que os militares responsáveis pela tortura e morte de muitos brasileiros seguissem impunes, em seus lares, com suas famílias.”
“( … ) Ao estabelecer que devam constar nas certidões de óbito as mortes violentas causadas pelo estado durante a ditadura, e celebrando os 76 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Conselho Nacional de Justiça aprovou as retificações em certidões de óbito de pessoas reconhecidas pela Comissão Nacional da Verdade como mortas ou desaparecidas durante a ditadura militar. Um acerto de contas legítimo com o passado”, discursou o presidente do STF. O conteúdo do documento vem ampliar e complementar o sussurro de Eunice Paiva quando ela queria lembrar a si mesma e à família que estava presente apesar da doença: nós também ainda estamos aqui.
Publicado originalmente no Fórum 21.
*Léa Maria Aarão Reis é jornalista.
lustração de capa: “O Oscar deu prêmio a uma tragédia que ninguém tem o direito de esquecer”. (Jornalista Paulo Moreira Leite)
Uma resposta
É isso, verdugos e torturadores, mandados e mandantes podem ainda estar vivos e sentarem ao seu lado no cinema, no restaurante, na livraria. Seguem impunes. Se mortos podem haver sido até promovidos e deixado polpudas pensões a seus descendentes, que por sua vez, banqueteiam-se com o dinheiro de seus pais militares, sujos de sangue e entranhas dos que cairam.