Estacionamento revela cemitério silencioso: Salvador descobre túmulo de mais de 100 mil pessoas escravizadas

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Achado arqueológico lança luz sobre história apagada e tensiona autoridades locais sobre preservação, reparação e identidade negra

Em pleno coração de Salvador, um terreno hoje usado como estacionamento pode abrigar um dos maiores cemitérios de pessoas escravizadas da América Latina — com mais de 100 mil corpos identificados até agora pelas escavações arqueológicas. A descoberta, anunciada pelo Ministério Público da Bahia (MP-BA), reacende questões profundas sobre memória, patrimônio e racismo estrutural que atravessam séculos no Brasil.

Localizado na Pupileira, área vinculada à Santa Casa de Misericórdia, o espaço foi identificado pela arquiteta e urbanista Silvana Olivieri, em pesquisa de doutorado na UFBA, como o antigo Cemitério dos Africanos — lugar onde, entre os séculos XVII e XIX, eram sepultados corpos de africanos escravizados, indígenas, pessoas pobres e vítimas de epidemias, sem cerimônias religiosas ou identificação.

O achado e suas dimensões

  • As escavações começaram em 14 de maio de 2025, conduzidas por equipes arqueológicas em conjunto com órgãos como Iphan, Ipac, Fundação Gregório de Matos (FGM) e o próprio MP-BA. Fragmentos cerâmicos e ossadas datadas do século XIX foram rapidamente encontrados.
  • A reunião de autoridades, realizada em 21 de outubro, confirmou os laudos preliminares e discutiu medidas urgentes para garantir proteção ao local.
  • Apesar da gravidade da descoberta, o terreno continua sendo usado como estacionamento de veículos, o que tem gerado desconfiança e pressão por parte de pesquisadores e ativistas.
  • O MP-BA e o Iphan já recomendaram que a Santa Casa suspenda o uso do local, enquanto o pedido para reconhecimento oficial como “Sítio Arqueológico Cemitério dos Africanos” foi protocolado por Olivieri.

Memória reprimida e seu eco no presente

Esse achado não é mero dado arqueológico: ele dialoga diretamente com a crise de memória do Brasil negro. Durante a escravidão, corpos africanos eram frequentemente descartados em valas comuns, sem registro, nome ou ritual — um mecanismo de negação simbólica que continua a reverberar nas desigualdades estruturais.

A descentralização da memória histórica negra fez com que locais como esse cemitério fossem apagados dos mapas urbanos e culturais, enquanto monumentos coloniais foram preservados e celebrados. Reconhecer esse território como sítio de luto e resistência é um passo mínimo de justiça histórica.

Além disso, a própria Coleção dos Livros do Banguê, registrada em Salvador e considerada documento único sobre sepultamentos de escravizados no Brasil, confirma que entre 1742 e 1856 cerca de 80 mil pessoas foram enterradas sem nome no centro da cidade sob responsabilidade da Santa Casa.

Desafios urgentes e batalhas pela preservação

A descoberta traz uma agenda imediata:

  1. Proteção legal e interrupção do uso do espaço — enquanto a investigação avança, o local deve ser desativado para uso de estacionamento e soterramento de veículos.
  2. Reconhecimento oficial como patrimônio afro-brasileiro — transformar o local em espaço memorial e educativo, sob tutela cultural e política.
  3. Participação da comunidade negra e movimentos sociais — é urgente que descendentes e organizações afro participem da escuta, do planejamento e da preservação desse espaço de dor e resistência.
  4. Investimento em arqueologia, antropologia e restauração — preservar ossadas, restituir nomes possíveis, reconstruir narrativas, garantir condições dignas de estudo e memória pública.
  5. Integração com políticas de reparação — esse tipo de descoberta exige que o Estado reconheça responsabilidades simbólicas e materiais.

Por que esse cemitério importa para toda a nação

Este terreno, aparentemente banal, é um epicentro simbólico da escravidão brasileira. Ele documenta o silêncio forçado sobre corpos que construíram o país, mas foram desumanizados até na morte. Denuncia que a desigualdade racial não é acidente: é parte da lógica da nação.

Mais do que memória, esse cemitério exige ação: criar políticas culturais, educativas, e de reparação que rompam com a invisibilidade histórica imposta às populações negras. Que Salvador desperte para essa presença enterrada — e que o Brasil olhe de frente para aquilo que construiu em sangue.


Imagem destacada: Mapas antigos ajudaram na localização de cemitério de escravizados do século 18 – Silvana Olivieri / Divulgação

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