Deputado tenta desviar foco do escândalo familiar, mistura fake news e discurso moralista para blindar imagem já manchada.
A prisão de Glaycon Raniere de Oliveira Fernandes, primo do deputado bolsonarista Nikolas Ferreira, por tráfico de drogas, escancarou uma contradição flagrante entre o discurso moralista da extrema-direita e a realidade das relações de poder nos bastidores do bolsonarismo mineiro. Detido no último 23 de maio de 2025 em Uberlândia, no Triângulo Mineiro, Glaycon foi flagrado pela Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG) com 30 kg de maconha e 4 kg de cocaína no carro.
A reação do deputado, em vez de assumir qualquer responsabilidade ou demonstrar coerência com seu histórico de discurso punitivista, foi um espetáculo previsível de autojustificativa, desinformação e ataques genéricos à esquerda. Em postagem feita neste domingo, 1º de junho, no X (antigo Twitter), Nikolas bradou: “Quem é preso com drogas merece cadeia”.
Parentesco, apoio político e verba pública
Apesar de alegar que o caso “não o envolve”, Nikolas Ferreira tem laços políticos e familiares inegáveis com o traficante preso. Glaycon Raniere é filho de Enéas Fernandes, ex-candidato à Prefeitura de Uberlândia em 2024 com apoio direto de Nikolas. O então candidato foi beneficiado por mais de R$ 1 milhão em emendas parlamentares oriundas do gabinete do deputado. A região onde Enéas atuava teve investimentos direcionados por Nikolas pouco antes da eleição municipal, o que levanta dúvidas sobre a real motivação dessas verbas.
A tentativa de dissociar-se do escândalo é parte de uma estratégia recorrente entre políticos bolsonaristas: posar de paladino da moral pública enquanto blindam aliados, familiares e operadores de campanha com o verniz do “mérito” e da “liberdade”.
Moralismo seletivo e teoria conspiratória
Nikolas não se limitou a negar envolvimento. Optou por apelar ao que parece ser seu único manual de defesa: atacar a esquerda. “Agora, é no mínimo curioso que pessoas de uma ideologia que defende a descriminalização das drogas, de repente, estejam preocupadas com isso”, escreveu, desvirtuando completamente o foco da denúncia.
A manobra é cínica: confunde política de saúde pública com apologia ao crime, omite que a maioria dos defensores da descriminalização combatem precisamente o encarceramento em massa de jovens pobres — o mesmo sistema penal que Nikolas, com sua política de extermínio social, enaltece seletivamente.
A lógica dos dois pesos
É notório que parlamentares da extrema-direita brasileira não têm dificuldades em terceirizar culpas e criminalizar a miséria alheia. Mas quando o crime bate à porta dos seus, o discurso muda de tom. Nikolas Ferreira prefere acusar a imprensa e a esquerda de perseguição do que responder pelas suas escolhas políticas e pelos beneficiários das suas emendas.
Não se trata de um primo distante ou de um caso isolado. A prisão de Glaycon revela mais uma vez a promiscuidade entre o moralismo bolsonarista e práticas comuns de clientelismo, patrimonialismo e conivência com o crime. O mesmo deputado que clama por “cadeia para traficantes” destinou recursos públicos a regiões controladas politicamente por sua própria família — e agora finge surpresa quando o tráfico se infiltra nessas relações.
Blindagem e desinformação como método
Ao misturar o caso com alegações de rachadinhas e corrupção, Nikolas tenta se colocar como vítima de uma campanha de “desgaste” e insinua que tudo não passa de uma “tentativa frustrada” da oposição de atingi-lo. Essa vitimização estratégica tem sido eficaz entre sua base digital, alimentada por bolhas de desinformação e uma cultura de impunidade autojustificada.
Mas o fato é que o bolsonarismo tem se especializado em projetar sobre seus adversários os crimes que comete. A corrupção, o tráfico de influência e até mesmo a proximidade com o tráfico de drogas não são desvios acidentais, mas peças de uma engrenagem que mistura religião, polícia, verba pública e narrativa de guerra cultural.
O silêncio do PL e o cinismo institucional
Até o momento, o Partido Liberal (PL) de Nikolas Ferreira não se manifestou sobre o caso. O silêncio da legenda que abriga Jair Bolsonaro, Valdemar Costa Neto e outras figuras carimbadas de escândalos indica a conivência de sempre: enquanto o espetáculo de ódio serve para manter a militância mobilizada, os bastidores seguem funcionando com a velha lógica do “é dando que se recebe”.
O caso Glaycon expõe com clareza a falência moral do bolsonarismo. Seu discurso é puro marketing político, completamente dissociado da realidade dos seus próprios quadros.
Nenhuma surpresa
A prisão de Glaycon Raniere não é uma exceção. É mais uma engrenagem de um sistema hipócrita que se alimenta do medo e do ódio para manter os negócios escusos de sempre. Não se pode exigir coerência de quem fez da política um palanque para fake news, slogans vazios e autopromoção.
Enquanto Nikolas Ferreira posa de guardião da moralidade e criminaliza a juventude periférica com seu discurso violento contra a descriminalização, seu próprio entorno revela como a impunidade de classe e as alianças familiares sustentam o poder real do bolsonarismo em cidades como Uberlândia, em estados como Minas Gerais, num país sequestrado pela hipocrisia.
Publicado originalmente em Diário Carioca.
Foto de capa: Lula Marques/ Agência Brasil