Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*
É possível apresentar um texto irônico em estilo satírico sobre “como padronizar a felicidade”, intitulado “Manual Técnico para Padronizar a Felicidade (versão 3.0 – compatível com todos os povos, culturas e ecossistemas)”.
Atenção: esta é uma publicação oficial do Departamento Global de Uniformização de Sentimentos (DGUS). Todos os direitos de sensibilidade estão reservados. Divergências emocionais deverão ser reportadas ao setor de conformidade afetiva da OCDE.
Na Introdução, apresentamos a razão pela qual a felicidade precisa ser padronizada. A felicidade, esse conceito historicamente incômodo e excessivamente subjetivo, finalmente será colocado nos eixos — de preferência em uma escala de 0 a 10. Afinal, se podemos medir o PIB, o carbono e até o número de passos diários, por qual razão não medir o contentamento espiritual de um povo inteiro?
Unificaremos o sorriso do banqueiro suíço, a serenidade do monge tibetano, a alegria do pescador amazônico e o sossego da avó ribeirinha em um índice composto e internacionalmente comparável, com margem de erro aceitável.
Para tanto, propomos Etapas do Protocolo Universal de Felicidade Padronizada (PUFP).
Primeira Etapa: reduzir a felicidade a dimensões controláveis. Espiritualidade? Subjetividade? Amor incondicional? Tudo isso será substituído por renda per capita, número de televisores por domicílio, acesso a aplicativos de entrega.
Segunda Etapa: traduzir todas as culturas para inglês técnico. Termos como Ubuntu, Sumak Kawsay, Ayün ou Teko Porã devem ser convertidos em palavras apropriadas como well-being metric ou socio-emotional development KPI. Se não couber em uma planilha, não existe.
Terceira Etapa: aplicar o questionário global de contentamento padronizado (QGCP”. Inclui perguntas objetivas como: “Quantas vezes você sorriu nos últimos 7 dias?”; “Sua residência possui conexão de alta velocidade?”; “Em uma escala de 1 a 10, quanto você se sente um consumidor plenamente realizado?” Quarta Etapa: publicar os rankings mundiais. Países no topo do índice – geralmente os países com menos de 10,5 milhões de habitantes – serão premiados com investimentos estrangeiros diretos. Os na lanterna – Afeganistão, Serra Leoa, Líbano, Zimbabwe, Botswana – receberão consultorias para ensinar seus povos a sorrir corretamente, mesmo diante de desastres climáticos ou privatizações forçadas.
Serão louvados os casos de sucesso e fracasso. Sucesso absoluto é Butão: evita os efeitos negativos do turismo de massa e teve seu conceito de Felicidade Interna Bruta cooptado, quantificado e exportado como “case” para O Mercado do hemisfério norte.
Fracassos reincidentes devem ser culpabilizados junto à opinião pública mundial. São comunidades insistentes em medir o bem viver com base em silêncio, floresta em pé ou ausência de patrão. Elas são incompatíveis com os algoritmos!
Os próximos passos é divulgar massivamente: a padronização da felicidade vai muito mais além de uma missão técnica — é um imperativo civilizatório. Ao eliminar variações culturais, espirituais e ecológicas, garantiremos todos se sentirem felizes do mesmo jeito, no mesmo horário, com os mesmos aplicativos e o mesmo plano de celular.
Em breve: nova versão do índice incluirá métricas de produtividade emocional e emojis por minuto.
Nota de rodapé: dúvidas existenciais, angústias metafísicas ou saudades inexplicáveis não estão cobertas pelo índice e devem ser tratadas com coach ou consumo adicional.
Em contraponto a essa grande sabedoria, divulgada no Norte Global, podemos elaborar um exemplo prático de felicidade ou boa vida aplicado a uma comunidade urbana brasileira. Ela consegue definir, medir e promover sua própria noção de felicidade ou “boa vida” a partir de valores locais, práticas coletivas e resistências cotidianas.
Título do relato: Felicidade Comunitária na Comunidade do Morro da Esperança. Alerta: cidade fictícia inspirada em realidades urbanas brasileiras.
O contexto local é bastante conhecido. Tem sua localização em uma zona periférica de uma metrópole brasileira. Suas características salientes referem-se à ocupação autogerida com mais de 20 anos, forte organização comunitária, presença de coletivos culturais, hortas urbanas e práticas de economia solidária.
Seus problemas, ou melhor, “desafios” (palavrinha-da-moda mais elegante) são a ausência de saneamento completo, a insegurança pública, a especulação imobiliária e a negligência do poder público.
No entanto, ela é capaz de redefinir a boa vida com base em princípios locais. A comunidade se recusou a adotar indicadores de “desenvolvimento”, impostos de fora. Em vez disso, organizou assembleias, rodas de conversa e consultas com jovens, idosos, lideranças religiosas e coletivos de mulheres.
O resultado foi um conjunto de dimensões próprias da boa vida, a partir da pergunta: “O que faz a vida valer a pena, aqui, do nosso jeito?”
As respostas revelaram um conceito plural e relacional de felicidade, com cinco eixos e os seguintes indicadores propostos pela comunidade.
Primeiro, vínculos afetivos e solidariedade. Os indicadores são a quantidade de mutirões realizados por mês, o número de festas comunitárias, a presença de redes de cuidado com crianças e idosos.
Segundo, cultura e identidade, diz respeito à existência de grupos de música, capoeira, grafite, poesia e samba; grau de participação nas atividades culturais; presença de símbolos culturais no espaço urbano.
Terceiro, segurança do território, medida pela redução de conflitos por mediação comunitária, pela relação de confiança com lideranças locais e pela presença das mulheres na tomada de decisões.
Quarto, autonomia econômica e dignidade, indicada pelo número de feiras locais, cooperativas ou empreendimentos de economia solidária, pelo acesso à renda básica comunitária, pelo grau de soberania alimentar (hortas, cozinhas coletivas).
Quinto, cuidado com o lugar, avaliado pela preservação dos espaços verdes, cuidado coletivo com becos, vielas e áreas comuns, percepção de pertencimento ao território.
Como os dados são produzidos? Por metodologia participativa: nada de survey externo. Os próprios moradores se organizam em “brigadas de escuta” e recolhem histórias, registram práticas e identificam prioridades.
Os indicadores são narrativos e afetivos. Por exemplo, “quantas vezes a gente se abraçou no último mês?”, ou “como nos sentimos quando a praça estava cheia de gente e música?”.
Acontecem ciclos reflexivos. Os dados não servem para prestação de contas a agências multilaterais, mas para refletir, de forma coletiva, sobre aquilo funcionando bem e o necessitado de mudança.
Os impactos e sentidos gerados foram admiráveis. A comunidade passou a usar seu próprio “Índice de Bem Viver” para dialogar com o poder público e exigir políticas capazes de respeitarem sua forma de vida;
Atraiu apoio de universidades populares, redes agroecológicas e fundos solidários. Todas essas instituições respeitam sua autonomia. Criou um modelo de resistência contra a lógica da remoção e da gentrificação Anuncia: “aqui não queremos progresso sem pertencimento”.
Este exemplo comunitário mostra: felicidade e boa vida não são dados universais, mas saberes praticados. Ao assumir o direito de definir seus próprios critérios de bem viver, comunidades urbanas periféricas não apenas resistem — elas criam outros futuros possíveis. Seu lema: medir para resistir, viver para cuidar!
*Fernando Nogueira da Costa é Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com.
Foto de capa: IA
Uma resposta
Sem palavras… Disse de uma forma espirituosa e profundamente inteligente, tudo que sinto mas não tenho essa sabedoria para descrever. Maravilhoso um mundo que se constrói coletivamente, mantendo suas raízes culturais.