Por JORGE ALBERTO BENITZ*
Terminei de ler o livro do Rafael Guimaraens “1935”, Editora Libretos, que narra a história do jornalista Paulo Koetz que trabalhava na área policial no ano de comemoração do centenário da Revolução Farroupilha em Porto Alegre, com direito a descrição de cenas, como a de dois grenais; a um evento de protesto da ALN liderado por Dyonélio Machado; a da inauguração do evento comemorativo no Parque Farroupilha, mais conhecido hoje como A Redenção, com a presença do Presidente Getúlio Vargas e do governador Flores da Cunha e o imbróglio entre eles. Cena s aparentemente nada a ver com a trama principal, que emolduram o clima esportivo, social e político do ano em curso (1935), perfeitamente verossímil em um romance realista histórico considerando a profissão de jornalista do protagonista que transita entre as referidas áreas.
A trama tem uma pegada de romance policial noir nos moldes dos livros de Dashiell Hammett, como bem apontou um crítico literário em resenha no jornal Rascunho. O personagem principal faz um tipo largado, relaxado até, que anda quase maltrapilho. Alcoólatra, evidentemente. Sem querer cometer spoiler e cometendo, ele a todo momento, como frequenta o bas fond portoalegrense da época, seja por questão profissional, seja por gosto pessoal, seguidamente se envolve em situações embaraçosas e até perigosas.
Começa a narração ele, jornalista, fazendo a cobertura de um crime passional, um feminicídio, como se diz hoje, de uma jovem. Em uma destas incursões profissionais, tempos depois, ele se vê enredado em um crime nas proximidades do Mercado Público de um homem assassinado que ele na noite anterior, no Café Central, tinha visto em um boteco e daí em diante se depara com uma rede de criminalidade onde figuram uma dançarina de cabaret, com quem vive um romance, com traficantes de escravas brancas do leste europeu para abastecer a prostituição local e dos países próximos (Argentina e Ur uguai), com políticos de oposição ao governo de Flores da Cunha que, como ele, tentavam desvendar os autores da morte de Waldemar Rippol. Acertadamente, ele deixa em aberto esta questão do autor do referido assassinato, onde muitos batem o martelo, afirmando que Fulano de Tal foi o mandante. Esta questão, embora importante, é secundária na trama. Logo, importa para o narrador a repercussão, o modo dos personagens tratarem o assunto, com toda a carga de hesitações, duvidas, do que desvelar o mandante do crime.
O que me interessou mesmo no romance foi o caráter recriativo das cenas e paisagens de época. Geralmente, dou pouca atenção a descrições de época. Sou mais atento em um romance, ao clima psicológico, aos diálogos dos personagens e as relações dos indivíduos entre si e o meio ambiente. No entanto, como gosto das evocações envolvendo a primeira metade do século XX e, em especial, quando se trata da Porto Alegre desta época, fiquei fascinado com o zelo e rigor dele na recriação histórica, na fantasia exata de alguém que descreve um tempo não viven ciado pessoalmente. Descrições do narrador que, muitas vezes, descola do personagem para descrever os lugares onde este, um sujeito que não devia dar bola para paisagens, circula, entrando assim na velha discussão literária dos que questionam o romancista quando este além da cena tudo a ver com a trama, acrescenta o que consideram mais uma sociologia aplicada para descrever a época em que ocorre a história.
No caso, o olhar do narrador é atento a tudo. Bem ao estilo do realismo balzaquiano ou, se preferirem, do estilo narrativo cinematográfico. Não significa que Rafael Guimaraens descreva fielmente a realidade. Não por acaso, a escolha do protagonista da trama desafinado com o status quo, ser alguém ainda que inconsciente ideologicamente – nos termos do que significa ser consciente ideológica e politicamente hoje. Não existe nada que indique ser o protagonista um leitor de literatura engajada, ainda que ele seja um sujeito integro e consciente politicamente -, para assim lançar um olhar crítico aos valores sociais, polític os e ideológicos estabelecidos.
Retomando a questão do estilo que muitos olham com desdém por julgarem ultrapassado em um mundo pós Kafka, Proust e James Joyce. Como gosto deste estilo de romance não me alinho com estes críticos, embora goste por igual dos romances dos acima citados e dos posteriores que foram influenciados por eles. Também, não sou um adepto de Lukács que acha que o gênero romance acabou em 1848. A propósito, lembro que ouvi num daqueles encontros cultural- etílicos promovidos pelo Rui Gonçalves, no Restaurante Estrela do Porto, situado no mesmo prédio da Livraria Palmarinca, no andar térreo, o Luis Pilla V ares comentando que somente lia romances do século XIX. Lukacsiano, por certo. Mas isso é outra história.
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