Opinião
Economistas & Engenheiros: Um debate secular sobre a relação entre Inovação e Desenvolvimento
Economistas & Engenheiros: Um debate secular sobre a relação entre Inovação e Desenvolvimento
De CARLOS ÁGUEDO PAIVA*
- Introdução
Em uma das passagens mais esclarecedoras de sua Teoria do Desenvolvimento Econômico, Schumpeter apresenta o que seria o fundamento da diferença entre as concepções de inovação abraçadas por economistas e engenheiros. Segundo ele:
Muitas vezes, no processo produtivo, vemos mudanças recomendadas [pelo corpo técnico] rejeitadas pelo [responsável pela gestão econômica]. Por exemplo, o engenheiro pode recomendar um novo processo, uma inovação, que o diretor comercial rejeita com o argumento de que não compensará. O engenheiro e o homem de negócios podem ambos expressar seus pontos de vista assim: seu objetivo é conduzir adequadamente o negócio e sua avaliação deriva de seu conhecimento dessa adequação. À parte os equívocos, … a diferença de avaliação só pode vir do fato de que cada um tem em vista um tipo diferente de adequação. O que o homem de negócios quer dizer quando fala em adequação é claro. Refere-se à vantagem comercial, e podemos expressar assim sua visão: os recursos que seriam requeridos para abastecer a máquina poderiam ser empregados em outro lugar com mais vantagem. …. O homem de negócios está certo em não seguir o engenheiro, desde que sua objeção esteja correta objetivamente. Desdenhamos a alegria um tanto artística de aperfeiçoar tecnicamente o aparato produtivo. Efetivamente, na vida prática, … o elemento técnico deve submeter-se, quando colide com o econômico. (TDE, 1997, pp. 30/31)
Ao longo de minha vida, participei desse debate inúmeras vezes. Mas há um “causo” que considero “dos mais interessante”. À época, trabalhava como consultor em Planejamento do Desenvolvimento Regional para o Parque Tecnológico de Itaipu. Buscávamos identificar os principais “gargalos”, os “elos mais fracos”, das cadeias produtivas responsáveis pela propulsão da economia regional e traçar estratégias para eliminar os entraves. Logo ficou claro que um dos principais problemas estava nos elevados custos logísticos. Na base dos mesmos, o leilão nada “republicano” de concessão das rodovias estaduais por parte do Governador Beto Richa. Os pedágios multiplicavam-se ao longo das rodovias, os preços eram escorchantes, e nenhuma das melhorias contratadas estava em andamento. Para a indústria de proteína animal, estes custos eram pesadíssimos, pois seu produto apresenta uma relação volume/preço muito elevada: são necessários muitos caminhões (refrigerados) para transportar mercadorias (cortes de aves, de suíno, derivados de leite, etc.) cujo preço unitário é relativamente baixo.
Não demorou para emergir uma ideia absolutamente Jenial (com J, mesmo): a ampliação da bitola, modernização e alteração do traçado da ferrovia Cascavel-Paranaguá. A proposta logo foi abraçada com entusiasmo por técnicos e diretores do Sebrae Regional, por engenheiros, tecnólogos, diretores de Cooperativa e inovacionistas de todas as formações, origens, feitios, corações e mentes. Eu já ouvia Camões a declamar: Cesse tudo que a antiga rodovia canta, que uma locomotiva turbinada se alevanta.
Passados três meses de pesquisa, uma reunião foi marcada com todos os consultores contratados, as lideranças das cooperativas, a direção de Itaipu e os demais órgãos envolvidos no projeto “Oeste em Desenvolvimento”. Cada um dos consultores apresentou suas conclusões ao coletivo ao longo de um dia de trabalho. Eu fui o último a expor minhas conclusões e assisti (algo incrédulo) às mais diversas demonstrações rigorosas e inquestionáveis (com direito a equações complexas e estatísticas do mundo todo) de que “só a ferrovia salva”. Com ela, as mercadorias chegariam à Paranaguá de forma segura, com maior velocidade e a um custo muito inferior. Além disso, seriam retirados milhares de caminhões da estrada, tornando as rodovias mais seguras para as famílias e deprimindo custos de manutenção da malha viária. A frota de caminhões também diminuiria e, com ela, os elevados custos de manutenção nos quais incorriam as Cooperativas. A emissão de gases de efeito estufa diminuiria contribuindo para o bem estar de todo o planeta. As aprazíveis paisagens entre Curitiba e Paranaguá poderiam ser desfrutadas em sua plenitude com a queda do número de caminhões nas rodovias. Enfim: os benefícios da nova ferrovia eram tantos e tão universais que até o urso polar e os frangos congelados estavam rezando por ela.
Quando me deram a palavra, iniciei focando em um problema que não tinha sido considerado por nenhum dos expositores anteriormente. A privatização do sistema ferroviário no Brasil sob a batuta do Príncipe dos Sociólogos (vulgo FFHH) deixou de lado um aspecto fundamental para a transformação deste modal em uma alternativa competitiva ao rodoviarismo. Qual seja? Toda a ferrovia é um monopólio natural. A não ser que a legislação imponha o “direito de passagem”; vale dizer, que garanta o uso da ferrovia por um determinado período do dia ou da semana por empresas que operam no ramo do transporte por trilhos, mas não são a concessionária daquela linha férrea particular. Sem direito de passagem, não há concorrência. Trata-se de monopólio puro.
Sentado à minha frente durante a reunião encontrava-se o então Presidente da Cooperativa Agroindustrial de Cascavel. Eu o conhecia e sabia de seu raciocínio rápido, especialmente para questões financeiras. E lhe dirigi a seguinte pergunta:
Paiva: – Dilvo, meu caro, ajude-me a resolver um problema de ordem econômica. Os palestrantes anteriores buscaram demonstrar que o custo de transporte ferroviário seria algo como um terço do custo do transporte rodoviário. Não sei se os cálculos estão corretos. Creio que estão subestimando os custos fixos da empresa. Provavelmente, estão contando que esses custos venham a ser assumidos por aquela viúva que todos amam quando recebem subsídios e todos odeiam ao pagar impostos. Mas vamos deixar esse detalhe para lá. O que eu gostaria de saber é o seguinte, Dilvo. Imagine, que o custo de transporte de uma certa carga pela rodovia seja de R$ 100,00. Imagine também que tu foste o vencedor na disputa pela concessão da ferrovia e que só há uma ferrovia para levar a carga até Paranaguá. Imagine que o cálculo do custo do transporte desta carga para ti, concessionário, esteja correto e corresponda a meros R$ 30,00. Pergunto: Quanto tu cobrarias das Cooperativas para transportar a carga pela ferrovia?”
Dilvo (após meditar por 10 segundos) – “O transporte ferroviário é mais seguro e rápido, né? Então ele traz vantagens de qualquer forma para as Cooperativas, não é mesmo? … Bem, nesse caso, eu cobraria apenas R$ 99,90. Mas só para os amigos.” … E soltou uma sonora gargalhada.
Resposta perfeita. Eu sabia que poderia contar com a sagacidade do Dilvo e sua facilidade para perceber a diferença (evidente, para qualquer economista) entre custo de produção e preço de venda. A construção da nova ferrovia envolveria um investimento enorme. Não se realizaria sem que o Governo Federal participasse e apoiasse o empreendimento a fundo perdido. Demoraria anos. Passaria por inúmeras renegociações de mais prazo e valores. Provavelmente, seu leilão se realizaria naquele padrão “cordial e camarada” que caracteriza o nosso patropi. E, ao fim e ao cabo, não traria qualquer benefício para os usuários de transporte de carga. Pergunta que não quer calar: que vantagem as Marias levam? Uma e só uma: observar e admirar uma ferrovia novinha, com trilhos tão brilhantes que poderiam ser usados como espelho e aquelas locomotivas brancas e bicudas que a gente vê nos filmes japoneses e chineses. Não seria o máximo turma? Que boniteza! Isso é que eu chamo de desenvolvimento: tecnologia de ponta prá gaudério ninhum ponhá defeito. E Schumpeter ainda ousa “desdenhar da alegria artística de aperfeiçoar tecnicamente o aparato produtivo”. Homem sem coração!
Mas não fiquei apenas na crítica negativa da utopia ferroviária. Propus ações de maior eficácia para o enfrentamento dos exorbitantes custos rodoviários. Em primeiro lugar, as cooperativas deveriam entrar com uma ação junto ao Ministério Público questionando os leilões e os pedágios de Beto Richa. Se vencessem (como venceram!) deveriam constituir um consórcio para disputar a concessão rodoviária, propondo um valor de pedágio que apenas cobriria os custos de manutenção e melhoria da malha. A concessionária criada pelas cooperativas não iria lucrar, caso obtivesse a vitória. Mas a queda do preço dos pedágios ampliaria sobremaneira a rentabilidade das cooperativas.
Simultaneamente, lembrei que estava para ser inaugurado o Porto de Foz do Iguaçu no Rio Paraná (a jusante de Itaipu). Seu construtor e operador era um industrial vinculado ao setor alimentar, com ênfase na produção de farinha de trigo e seus derivados. A construção do porto e a aquisição de uma pequena frota de barcaças e rebocadores tinha por objetivo trazer trigo de Rosário, na Argentina. Ora, a legislação sanitária proíbe que containers e barcaças que transportam grãos para fins alimentares sejam utilizados para quaisquer outros fins. O empresário que construiu o porto pretendia trazer trigo da Argentina e retornar ao país irmão com as barcaças vazias. Vale informar que cada barcaça Mississipi transporta um volume equivalente ao de 100 caminhões padrão. E os comboios normalmente envolvem 5 barcaças. Perguntei a ele se estaria interessado em transportar soja na viagem de ida. E ele respondeu que seria um “negócio da China”. Bastaria cobrir os custos diretos (diesel, salários, seguro, desembarque em Rosário e limpeza das barcaças) que o negócio estaria fechado.
Apresentei a alternativa aos ouvintes e esclareci que não se tratava de propor a substituição dos modais rodoviário e ferroviário pela hidrovia. Tratava-se apenas de utilizar a alternativa como elemento de pressão competitiva junto aos administradores dos dois modais terrestres. Na linha: se tu não concordares em cobrar menos pelo transporte rodoviário ou ferroviário (pois a velha ferrovia Cascavel-Paranaguá, construída pelo grande André Rebouças, ainda existe e está operante), vamos utilizar a hidrovia, que nos beneficia com preços muito inferiores.
Após minha exposição, houve um debate e a conclusão (ainda preliminar, mas já bastante difundida) foi a de que a construção de uma nova ferrovia não era o caminho mais adequado para o enfrentamento do gargalo logístico. Após os discursos de praxe no encerramento de qualquer evento, e alguns cumprimentos formais e troca de cartões, me dirigi ao grupo que havia se formado com meus amigos, lideranças do Programa Oeste em Desenvolvimento. E comentei da minha felicidade por ter contribuído para impedir o que o lobby ferroviarista prosperasse. E recebi uma resposta irada do então Diretor-Geral do Sebrae do Oeste Paranaense que cito de memória.
– “Sim, tua contribuição foi brilhante. Queríamos uma ferrovia de alta velocidade. E tu veio com ‘barcaças’. Só não entendo como tu ainda tem coragem de dizer que apoia a inovação. A verdade é que o teu pensamento é retrógrado.”
E foi embora batendo as tamancas de tanta raiva que havia acumulado. Olhei para os demais e dei de ombros como quem diz: “- Fazer o quê, né? Quem já sabe tudo, não é capaz de apreender nada.”
O que importa entender é que, sim, Schumpeter está certo. Para os economistas, inovar é, primariamente, “pensar fora da casa”, mobilizando de forma não tradicional recursos que, apesar de já presentes e disponíveis na firma ou na sociedade, não eram percebidos como passíveis de mobilização pela turma que acha que “barcaça é brega”. Ao mobilizar recursos abundantes e baratos (como a Uber fez com os carros privados), emerge uma depressão de custos que conduz ao aumento da rentabilidade e do market share de firmas e territórios. A ampliação da produção leva, imediatamente, à ampliação do emprego e da renda e, por consequência à ampliação da demanda sobre os setores voltados ao atendimento dos consumidores.
Ao fim e ao cabo, esse círculo virtuoso induz a novos investimentos, com vistas à ampliação da capacidade produtiva. E estes investimentos, por sua vez, abrem a possibilidade de um novo circuito inovativo, que é consequência do anterior. Afinal, como regra geral, as novas máquinas e equipamentos adquiridos incorporam sistemas técnicos (mecânicos, hidráulicos, energéticos, computacionais, etc.) de última geração, o que conduz à ampliação da produtividade do trabalho e do capital e/ou à melhoria na qualidade dos produtos. Voltando ao nosso “causo ferroviário”: qualquer investimento em uma nova ferrovia só será rentável para a comunidade se os modais rodoviário e hidroviário estiverem operando sob condições competitivas e impondo limites (um teto superior) ao poder de precificação monopolista do novo modal. Investir em ativos “tecnologicamente superiores” pode ser irracional e levar a prejuízos, invés de lucros.
Por oposição, para a grande maioria dos engenheiros e tecnólogos o processo inovativo começa pelo investimento em ativos tecnologicamente superiores. O que, para nós economistas é o circuito derivado, o desdobramento da primeira e mais fundamental inovação. A impressão que se tem é que, para os signatários dessa perspectiva, as firmas estão dispostas a investir e adquirir novos equipamentos (por mais caros e sofisticados que eles sejam) mesmo que: 1) os equipamentos em uso estejam operantes e não precisem ser substituídos; 2), a demanda sobre a firma não tenha se ampliado; 3) ela não tenha introduzido qualquer inovação através mobilização mais adequada, racional e econômica dos recursos já existentes (como as rodovias do PR e o Porto de Foz do Iguaçu); e, portanto, 4) sem que ela tenha conquistado uma participação maior no mercado e ampliado sua produção e seu faturamento. Para a grande maioria dos economistas, essa hipótese é tão absurda que beira o nonsense.
- Nossas diferenças: muito além de Schumpeter
Durante anos, acreditei que não havia nada a acrescentar à explicação de Schumpeter das dificuldades de diálogo entre economistas e engenheiros. Demorei anos para entender que as diferenças de interpretação acerca da relação entre “inovação & desenvolvimento” não se esgotam nas distintas interpretações do primeiro termo. Ela também se estrutura na concepção que estes dois profissionais têm do processo econômico de desenvolvimento. Este ponto é muito delicado e exige uma consideração inicial.
Eu não conheço nenhum jornal diário, seja da mídia impressa, seja dos sistemas de televisão e radiodifusão, que contenha páginas e/ou seções especificamente voltados a questões de Engenharia, Física, Química, Matemática ou Biologia. De outro lado, não conheço um único jornal impresso ou televisivo que deixe de abordar temas econômicos. Na verdade, economia, política, esportes, “cultura & achologia” (objeto de dez entre dez cronistas) são impositivos. E, de uma forma ou de outra, também são impositivas as páginas policiais e de ti-ti-ti socialite.
Mas, deixemos as outras páginas para lá e voltemos ao nosso foco com duas questões. A primeira é: por que Economia está em todos os jornais? Resposta: porque a Economia afeta o dia a dia de todos nós e precisamos de orientação e informações. A segunda é: os jornalistas econômicos tem qualificação e competência para orientar e informar o público? Resposta: não, não têm. E isto tem consequências gravíssimas, como veremos. Mas, antes, cabe explicar porque tantas pessoas, sem qualquer formação na área, acreditam entender tanto (ou mais!) de Economia quantoo os próprios economistas.
2.1. O que é, como surgiu, e porque surgiu esta ciência chamada “Economia”?
A Economia é uma Ciência que surge na segunda metade do século XVIII, quando as relações mercantis já eram dominantes na Europa e a Grande Indústria dava os seus primeiros passos. A emergência coetânea do Capitalismo e da Ciência Econômica está longe de ser uma coincidência. Na verdade, a Economia emerge justamente para enfrentar uma questão que só é posta pelo sistema mercantil desenvolvido. Na aparência o sistema mercantil não é um sistema, não é uma estrutura, mas um “somatório de agentes isolados”. Não obstante, ele se reproduz como estrutura. Daí, emergem duas questões: 1) quais os circuitos percorridos pelas distintas mercadorias dentro desta estrutura? Que atividades estão interligadas por relações de interdependência (inaparente) e como elas operam? Podemos afirmar que todas as atividades estão interligadas, ainda que existam graus distintos de interpendência? Como avaliar e mensurar a interdependências das atividades econômicas?; e 2) que forças e estímulos garantem a reprodução relativamente eficiente de um sistema onde cada agente busca maximizar seus benefícios e minimizar seus custos e contribuições aos demais? O que leva agentes com interesses antagônicos a colaborarem entre si?
O primeiro grande economista do mundo foi François Quesnay, autor do Tableau Économique. Qual era o objetivo de Quesnay? Responder a primeira questão acima: e demonstrar que, malgrado as aparências em contrário, todas as firmas, setores de atividade, produtores e consumidores são interdependentes. Para Quesnay (ele mesmo, um médico por profissão), só no plano aparencial há autonomia e indiferença recíproca entre firmas e setores de atividade. De fato, o sistema econômico é uma estrutura complexa onde o dinheiro funciona como o sangue no corpo humano. Ele conecta e põe em relação os diferentes órgãos da “máquina social”, a despeito desses órgãos não terem consciência de sua interdependência, eles formam um todo. É só quando um órgão entra em pane que as conexões se tornam evidentes. E, se a pane em um órgão é irreversível, todos o corpo morre, levando consigo os demais órgãos.
Se Quesnay buscou responder à primeira questão acima, Adam Smith enfrentou a segunda, com sua teoria da “mão invisível”. A pergunta de Smith é: que estímulos e que lógica levam agentes econômicos reciprocamente indiferentes (quando não em franca oposição) a operarem de tal forma que, ao fim e ao cabo, a sociedade não só alcança se reproduzir como tende a ampliar a produtividade e a riqueza geral?
Vale dizer: a Economia surge exatamente para demonstrar que a aparência da ordem mercantil capitalista não corresponde à sua essência. Na aparência, este sistema é pura entropia. Mas, observando-o com atenção, vemos que ele segue leis de reprodução muito estritas. E quando deixa de fazê-lo entra em crise. Que leis são essas? Como as partes se relacionam com o todo? Por que, quando e como emergem desajustes neste sistema? E porque, quando e como ele é capaz de se reproduzir de formal harmoniosa e sem passar por crises? Este é o nosso objeto.
Dizer isto é dizer que a Economia, pela própria natureza de sua questão-objeto, é uma ciência estruturalista. Nós buscamos a estrutura inaparente em um sistema que se apresenta como o espaço do indivíduo e do self made man.
De Quesnay a Keynes e Kalecki (pais da moderna Macroeconomia), passando por Ricardo (criador do primeiro modelo econômico dinâmico), por Marx (que retoma o tema de Quesnay em sua análise das relações econômicas interdepartamentais), por Walras (o primeiro a criar um modelo estritamente matemático de Equilíbrio Geral), até Leontief (criador da Matriz de Insumo-Produto), a Economia vai se construindo numa trajetória de busca e investigação das conexões entre partes apenas aparentemente dissociadas. E, daí, emerge um segundo objeto: a identificação dos elos frágeis da estrutura econômica. Pois é nesses elos que emergem as “panes relacionais”, que dão origem às crises. Tal como Mark Granoveter, buscamos a estrutura e seus elos fracos. Pois são os elos fracos que podem romper; e, com seu rompimento desestruturar todo o sistema.
2.2. A aparência e o inovacionismo hightech
À Ciência Econômica, se contrapõe a leitura leiga, que toma a aparência por realidade. E que aparência é essa? É uma aparência cindida. Tal como Marx explica nos capítulos iniciais do Livro I, apesar de ser um sistema social e histórico, a forma de reprodução mercantil nos leva a toma-lo como uma estrutura dual: do lado da produção só vemos “necessidade técnica”; do lado da distribuição só vemos “liberdade individual”. No plano da produção, todas as perguntas devem ser dirigidas aos engenheiros. Como produzir batatas? Pergunte ao Engenheiro Agrônomo? Como produzir cimento? Pergunte aos Engenheiros de Materiais e Civil. De outro lado, do lado da distribuição, só há liberdade. Todos podem chegar ao topo do mundo. Os melhores vencem. Vale dizer: a leitura “leiga”, a leitura daqueles que tomam o sistema pelo que ele diz ser, mas não é, já vem contaminada de ideologia.
Afinal, quando nos deixamos confundir pela aparência da economia mercantil, assumimos que os padrões técnicos de produção não têm qualquer relação com a estrutura social, interesses de classe e disponibilidade de recursos. Os padrões técnicos – como a palavra já revela – são … técnicos. Há uma escala que diferencia de forma simples e universal, as técnicas primitivas e as avançadas. Estas últimas são, necessariamente, as melhores. Afinal, avançado é bom e primitivo é ruim. Como duvidar disso?
Se há liberdade, ela está justamente na opção por se manter no passado ou evoluir para o futuro. O que diferencia as sociedades evoluídas das atrasadas é a disposição para sair do atraso. Esta disposição está no plano da “vontade política” e da “capacidade empreendedora” dos indivíduos. Afinal, nas sociedades mercantis, os agentes econômicos são livres para fazer de si e de suas propriedades o que bem lhe aprouver. Seu único limite são suas competências e pendores. E isto é uma questão de cultura. O drama do Brasil é que nos faltam WASPs (White, Anglo-Saxon and Protestants).
Pronto: não estamos mais a um passo do meritocratismo. Já estamos dentro dele. Desta perspectiva, os vitoriosos são homens e mulheres de capacidade intelectual extraordinária e portadores de uma força de vontade e dedicação ao trabalho absolutamente únicos. Só há um caminho para o desenvolvimento: mobilizar a capacidade empreendedora e inovativa das pessoas de “maior potencial”, e apoiar seus projetos empresariais, especialmente aqueles que rompem de forma mais radical com os sistemas produtivos consolidados e que operam na fronteira do conhecimento humano.
Essa percepção se impõe como senso comum, e se encontra na cabeça da quase totalidade das pessoas. Mas, em particular, ela domina dois grupos: os jornalistas econômicos e os responsáveis diretos pela tecnologia produtiva: os engenheiros das mais diversas formações.
Ora, voltemos à citação de Schumpeter e ao meu “causo” da ferrovia e veremos que os empresários sabem muito bem quando devem dar ouvidos aos engenheiros e quando devem dar ouvido aos economistas. Afinal, com dinheiro não se brinca. E, por mais que os engenheiros tenham certeza de que o melhor a fazer é comprar um robô ou construir uma ferrovia para trem-bala, os empresários sempre vão pedir orientação para o “baixo-clero”: os economistas e os contadores. Mas pergunta-se: porque as direções dos jornalões não fazem o mesmo, e abrem espaço para economistas tratarem de economia? Há duas respostas, e elas não são excludentes. Na base de tudo está o fato de que os grandes grupos de mídia são empresas capitalistas, que se sustentam pela veiculação de propagandas de outros grupos empresariais capitalistas. E os grandes empresários têm interesses políticos e econômicos bastante determinados. Como regra geral, são avessos à taxação de lucros e dividendos, ao aumento do salário de seus empregados e da conquista do poder por partidos de esquerda. Assim, operar do ponto de vista da aparência – que endeusa os empreendedores e trata o Estado planejador e intervencionista como Geni – é uma opção que lhes convém. E quem disse que os jornalões não contratam economistas? Contratam, sim. Mas, ao mesmo tempo, eles contratam alguns poucos economistas os remuneram suficientemente bem para que eles façam preleções e defendam posições nas quais, em geral, eles mesmos não acreditam. É aquela regra básica, né: pagando bem, que mal que tem?
O efeito desse show de desinformações & abobrinhas é a crescente universalização da leitura do processo econômico como um processo impositivo no plano da produção e que premia o mérito no plano da distribuição. Os “loosers” são induzidos a recolher seu ódio às desigualdades e assumir a culpa pelo seu infortúnio: ele é que não tem competência para se estabelecer e subir na vida. Se há algum culpado para além dele mesmo, este alguém é o tal de “Estado” intervencionista e corrupto. Mas, há, também um efeito sobre parcela não desprezível da esquerda; que busca dar acesso ao mundo mágico dos bem sucedidos aos “pobrinhos inteligentes”. Para tanto, são abertas incubadoras de empresas, startups são financiadas e subsidiadas, criam-se polos tecnológicos voltados ao estímulo de qualquer pesquisa e empreendimento (desde que operem na fronteira tecnológica) e tem início a “caçada às mentes brilhantes”.
Para quem se acostumou a pensar a Economia como uma Estrutura, esse padrão de ativismo alimenta um turbilhão de sentimentos contraditórios. De um lado, não há como deixar de se emocionar pela luta – real e militante – daqueles profissionais universitários que querem ir além da docência e da produção e publicação de papers. O trabalho que fazem está baseado numa utopia muito bonita. É um pessoal que quer meter a mão na massa para mobilizar o potencial de países que – como o triste Brasil – ainda baixam a cabeça para o Império. E incluir tantos e tantas que têm potencial, mas não têm recursos. Isto merece palmas. Sem dúvida.
Por outro lado, advém uma melancolia, uma tristeza, pois, de uma perspectiva sistêmica, embasada na Teoria Econômica, tanto esforço tem chances muito pequenas de gerar o efeito almejado. A impressão que se tem é que os promotores destas iniciativas realmente acreditam que Steve Jobs, Elon Musk, Bill Gates e tantos outros “vencedores” do capitalismo moderno chegaram onde estão como o Barão de Müchausen saiu de cima do cavalo atolado na lama: puxando os próprios cabelos. Parecem acreditar que seu sucesso é fruto de competências técnico-científicas próprias e do grupo de engenheiros que eles selecionaram e contrataram. Para entender e desmistificar mais esta construção ideológica, é preciso, mais uma vez, chamar os economistas: Pliss, pipou, ler a Mariana Mazzucato é básico para entender o sucesso do “geniais empreendedores anglo-saxões.
2.3. Pausa para DR (Discutir a Relação)
Reli o que havia escrito até aqui e me lembrei de uma querida amiga que, quando lê os meus textos, diz: “- Paiva, tu és engraçado, e isto amaina tudo. Mas eu acho que tu poderias ser mais gentil ao te referires às ideias que tu criticas. Ou tu não conseguirás aproximar ninguém para a tua perspectiva.”
Bene, è vero. Se non è vero, é ben trovato. Eu imagino que não poucos colegas e amigos que militam no campo da inovação estarão se sentindo incomodados com a leitura deste texto. E não lhes tiro a razão. Mas gostaria de argumentar que até as brincadeiras mais fortes têm um sentido e cumprem uma função. São dois os argumentos.
O primeiro deles é que não temos tempo para eufemismos e contemporizações. Sinto muito. Mesmo! Mas o Brasil e o Rio Grande Amado estão com pressa. Muita pressa. Dentro em pouco encerraremos o primeiro ano do governo Lula e, a despeito do tanto que se fez (ou, antes, do tanto que se desfez!), ainda há muito para (des)fazer. Eu, AO nível de pessoa economista, estou bastante preocupado com o que virá pela frente. O caso do RS é ainda mais grave. Vivemos uma crise séria e prolongada, que vem se aprofundando a cada ano que passa.
Muito escrevi ao longo deste ano sobre o Rio Grande Amado e sua decadência assustadora. Se quisermos contribuir efetivamente para o desenvolvimento do Estado, precisamos nos entender e montar um projeto. E logo! Não cabe mais sustentar aquele pseudo diálogo do tipo “nós todos apoiamos a inovação, não é mesmo?”, “temos a mesma leitura, não é mesmo?”
Não, não é mesmo. Não temos. E isto tem que ficar definitivamente claro. Não temos tempo para jogo de esconde-esconde. Eu posso estar errado. E estou aberto e disposto para ouvir e ler argumentos contrários aos meus. Mas o debate científico exige clareza e transparência. E o timing político está nos atropelando. Nem o Governo, em Brasília, nem o Grupo de Trabalho de Inovação e Desenvolvimento do RS tem consensos e estratégias claras. Sequer sobre um tema que nos “assombra” há 20 anos: o que vamos fazer com o Ceitec? Então, people, vamos abrir todas as cartas, certo?
Além disso, há um outro ponto importante. Claro que temos que respeitar as nossas diferenças de leitura. Mas é muito importante trazer à luz uma questão que a tchurma das hard sciences não parece perceber. Meu ponto é: o que, exatamente, queremos dizer com “respeito à opinião alheia”? Vou apresentar o meu ponto de vista a partir do que sei e não sei de engenharia.
Minha formação em hard sciences é colegial. Claro que a Economia me obriga a trabalhar com Matemática e Estatística. Mas, mesmo nessas áreas, sei dos meus limites. Que são grandes. Em Física, naveguei bem na mecânica e fui até a segunda lei da termodinâmica (sobre a qual ainda tenho dúvidas). Já Eletricidade, para mim, é pura mágica. A começar pelo excesso de variáveis: voltagem, watts, amperagem, resistência, etc. Até três eu vou. Este é o número da dialética. Quatro, prá mim, já é suruba. Minha religião não permite.
De Química, nunca entendi patavina. Como foram identificados os elementos e seus átomos se eles são invisíveis? Como os químicos sabem até onde fica o átomo de carbono na proteína tal ou no glicídio qual se também nunca viram uma molécula? Para mim, é tudo coisa do demo.
Sempre gostei de Biologia. Até porque trata de coisas visíveis, como plantas, animais e células. Mais: trata de coisas vivas, passíveis de transformação e evolução. O que aproxima Economia e Biologia. Aliás, há inúmeras correntes shumpeterianas que estruturam suas leituras do desenvolvimento a partir de uma analogia (algo impressionista e informal) com a teoria de Darwin. A (mais que grande, absolutamente enorme) Edith Penrose é uma das que transita nesta seara. Mas ser curioso em Biologia não me autoriza a debater “de igual para igual” com biólogos ou médicos. Assim como meu amor pela Mecânica nunca me levou a ensinar um Engenheiro como planejar e edificar um prédio de 30 andares. Estou longe de ser modesto. Mas sei reconhecer os meus limites.
Infelizmente, nós, os economistas, não somos tratados com o mesmo respeito por outros profissionais. Há pouco tempo atrás, Miriam Leitão “corrigiu” André Lara Resende, o pai do Plano Real, por sua leitura “equivocada” sobre a relação entre juros e inflação. E o mesmo fez Haddad, “explicando” para Lara Resende que a queda da taxa de juros e o aumento do déficit público conduziriam, inexoravelmente, o Brasil à hiperinflação. Eu tive o desprazer de ouvir a ambos. E foi triste. Mas, com o tempo, a gente vai se acostumando a ouvir bobagens ditas com pompa e circunstância. Na linha “administrar o Estado é a mesma coisa que administrar uma casa. Não se pode gastar mais do que se ganha”. Ou, a outra fofa: “o problema é que não fizeram o dever de casa”.
Porém, o tema sobre o qual nós, economistas, mais recebemos aulas é outro. Vinte em cada dez não-economistas tentam nos ensinar teoria do desenvolvimento. E, em geral, quem diz: – Senta aí e fica quieto que vou te ensinar Economia – são os Engenheiros e os Administradores de Empresa. E o que eles nos ensinam?
- Que a produção de bens e serviços será tanto maior quanto maior for a produtividade;
- Que são três os fatores de produção: terra, trabalho e maquinário. A terra e o trabalho (ou, melhor, o trabalhador) são elementos naturais, que não podem ser alteradas de forma substantiva. Mas as máquinas e instrumentos de trabalho são uma criação humana. Sua quantidade pode ser ampliada pelo investimento. E sua qualidade pode ser melhorada pelo progresso técnico-científico;
- A conclusão inexorável é que o desenvolvimento é função direta (e virtualmente exclusiva) do investimento em maquinário e do desenvolvimento científico-tecnológico.
E o sarau continua com a choradeira da falta de recursos para a pesquisa. Depois, passa para a China e para os tigres asiáticos que – dizem meus professores – só se desenvolveram porque sempre investiram em Ciência e Tecnologia. (Aí eu recordo que o sábio professor, que agora faz odes à China, há poucos anos atrás, ofereceu um curso para demonstrar que ela estava fadada ao fracasso pois seu modelo de crescimento estava baseado na superexploração do trabalho, na pirataria e na exportação de bugigangas. Quase perguntei como ele avançou de uma perspectiva para outra. Mas preferi calar. A gente não deve contestar os professores, não é mesmo?)
Enfim, mais uma vez peço desculpas pelo sincericídio. Mas este ponto é importante. Reflitam, por favor, sobre a demanda de respeito à opinião alheia. Colocar o debate do desenvolvimento econômico no campo da “opinião” é muito revelador. Ele envolve pressupor que ter ou não ter formação em Economia é indiferente. Eu tenho uma “opinião”, que vale tanto (senão menos!) quanto a “opinião” de engenheiros e jornalistas. Ok. E se eu desse minha “opinião” sobre como construir uma barragem, vocês a respeitariam? Não? Ah, em Engenharia não cabem opiniões? Pois é uma ciência. Só cabe respeitar opiniões quando falamos de achologia. E Economia não é ciência. É achologia. … Sério mesmo? Posso perguntar novamente: onde está, de fato, o desrespeito?
2.3 Existe “um justo meio termo” entre as concepções “tecnicista” e “economicista” de inovação?
Sim, existe um meio termo. Não sei se ele é justo. Na verdade, acho que não. Mas existem economistas que estão mais próximos do “tecnicismo” do que outros. Assim como há engenheiros que transitam muito bem pela lógica econômica, pois conhecem o chão de fábrica e são bons leitores de Schumpeter, Penrose e Goldratt.
Um grande economista que opera no meio termo é David Ricardo. Na verdade, as três teses apontadas acima, que 20 em cada 10 engenheiros tentam nos ensinar, corresponde, em essência, às conclusões de David Ricardo no clássico Ensaio de 1815.
Com isso eu quero dizer, em primeiro lugar, que não há economista que desconheça esta leitura. Pois Ricardo é básico. Em segundo lugar, quero dizer que, ao longo dos mais de 200 anos em que ela foi apresentada pela primeira vez, a leitura “meio-termo” de Ricardo já sofreu inúmeras críticas e superações. Mas o mais importante é que, em sua versão propriamente ricardiana, a três lições que, nós, economistas, têm uma conotação muito distinta. Explico-me
Ricardo tinha um sistema na sua cabeça, um modelo de reprodução da estrutura econômica capitalista. E, com seu sistema, alcançava determinar quais seriam AS (artigo DEFIINIDO plural) inovações efetivamente relevantes para destravar a acumulação e garantir o crescimento. Creio que vale o esforço de apresentar o modelinho de Ricardo para deixar mais clara a diferença entre o projeto ricardiano e a pretensão de que qualquer hightech dá conta do recado.
Ricardo (1772-1823) era inglês e viveu no período da primeira Revolução Industrial, das Guerras Napoleônicas e da emergência da hegemonia (e da Pax) britânica. Estes eram tempos de acumulação, proletarização e urbanização aceleradas na ilha. A demanda por matérias-primas e por alimentos crescia de forma exponencial. E os industriais se deparavam com os limites estruturais da produtividade agrícola na Grã-Bretanha, em especial na produção de cereais. Ricardo identificou, aí, o primeiro gargalo, o primeiro elo fraco (prestem atenção para estas palavras!) da economia britânica.
Ricardo acreditava que os processos de urbanização e proletarização se sustentariam por um longo período à frente, e antecipava um crescente desequilíbrio entre a demanda e a oferta interna de alimentos. Ricardo tinha clareza de que ainda existiam regiões da Grã-Bretanha (ocupadas por florestas e pântanos, ou destinadas ao pastoreio) que poderiam ser convertidas para a produção agrícola. Porém, a produção oriunda dessas regiões apresentaria custos muito mais elevados, seja por limites de produtividade, seja por custos de transporte, seja pelos custos de transformação de pântanos e florestas em regiões agrícolas. O resultado é que os preços dos alimentos subiriam.
Ora, para Ricardo os salários tendiam ao nível da subsistência. A despeito da crescente demanda por mão de obra nas cidades, os cercamentos e a imigração irlandesa garantiam o crescimento da oferta no curto prazo. E a inexistência de meios anticoncepcionais eficientes e baratos garantia o aumento da oferta no longo prazo. Porém, os empresários não poderiam (pelo menos, não, de forma sistemática) pagar menos do que o necessário para a sobrevivência dos operários e de seus filhos. Um trabalhador subnutrido era propenso a erros que poderiam levar à queda da qualidade do produto e até a danificar os equipamentos. Assim, se o preço dos alimentos fosse elevado significativamente, os salários também teriam de subir. O que levaria à queda da rentabilidade das firmas industriais e à perda da competitividade da produção têxtil e mecânica da Inglaterra.
Ora, a hegemonia comercial da Inglaterra estava baseada em sua produção têxtil, e metalmecânica. Se estas indústrias perdessem competitividade, a marinha mercante inglesa se ressentiria. E a indústria naval (outro pilar da hegemonia inglesa) perderia clientela. O que acabaria por abalar a supremacia inglesa nos mares, que havia se mostrado fundamental para a derrota de Napoleão.
O que fazer? Ricardo apresentou três estratégias para o enfrentamento do problema. Em termos de ação imediata, era preciso acabar com o imposto de importação de trigo e demais cereais, com vistas a deprimir o preço dos alimentos. Ricardo acreditava que, no médio prazo, esta medida levaria à queda dos salários nominais (em libras esterlinas) sem deprimir os salários reais (em poder de compra de bens alimentares e de consumo semidurável). Assim a taxa média de lucro da indústria inglesa se elevaria e seu poder de oferecer produtos a preços ainda mais baixos consolidaria sua hegemonia no setor.
Para além dessa medida, Ricardo alertava para o fato de que não se poderia importar os alimentos perecíveis, como frutas ou leite. Logo, a produção agropecuária do Reino-Unido não deixaria de existir. Porém, seria preciso mobilizar esforços para: 1) generalizar as melhores práticas (já conhecidas) de cultivo de frutas, legumes e hortaliças, com vistas a ampliar a quantidade das mesmas em consonância com o crescimento da demanda; 2) apoiar a realização de pesquisas com vistas a identificar culturas agrícolas e pecuárias mais adequadas ao solo e ao microclima do Reino-Unido.
Por fim, Ricardo argumentou que a queda do preço dos alimentos e a consequente queda dos salários nominais e a elevação dos lucros levariam à ampliação do market share dos têxteis britânico no mundo e, por extensão, ao aumento do número de operários e da demanda de alimentos. Mesmo com a desoneração das importações, uma parcela da demanda por bens agrícolas recairia sobre a produção nacional. E não havia como projetar com precisão a eficácia dos esforços para ampliar a produtividade agrícola britânica. Além disso, o problema da tendência à elevação do preço dos alimentos pela ocupação de terras mais distantes e de menor produtividade acabaria por se manifestar também naqueles países que tinham se tornado os maiores fornecedores de alimentos para a Inglaterra (EUA, Polônia e França). E, quando isso viesse a ocorrer, os lucros voltariam a cair, deprimindo a acumulação e, por extensão, a produção metalmecânica nacional (de máquinas têxteis a canhões) e a construção naval; três pilastras sobre as quais se erguia a hegemonia bélica, mercantil e financeira do Reino-Unido.
O que fazer? Simples, dirá Ricardo. É preciso deprimir a demanda por mão de obra. Em todos os setores? Na linha “toda a inovação é inovação, não importa onde”? Não. Claro que não. Se o progresso técnico poupador de mão de obra se generalizasse, o desemprego se tornaria o novo problema da sociedade. Até porque, sem salário, não há demanda sobre a produção artesanal. E a sociedade se transformaria num campo de batalhas. Lembrem-se da Revolução Francesa e dos luditas, pliss. Lembrem-se o sistema econômico é uma estrutura. Onde as solidariedades estão ocultas. Mas elas existem, talquei?
As inovações poupadoras de mão de obra deveriam ser desenvolvidas e implantadas principalmente: nas atividades trabalho-intensivas dos setores que produzem para a exportação. Não foi difícil para Ricardo identificar a principal atividade exportadora, já mecanizada, mas ainda muito exigente de mão-de-obra: a indústria têxtil. O que lhe permitiu chegar à conclusão final: o crescimento da Economia e a sustentação da hegemonia britânicas dependiam do aumento da produtividade do trabalho no setor têxtil e, portanto, dependia do aprimoramento do maquinário. Mais: dependia de um aprimoramento muito específico: a elevação da capacidade de fiação e tecelagem por operador. O foco tinha que ser este pois, para Ricardo, o futuro do Reino-Unido e do mundo dependia desse passo.
Eu (como muitos economistas nascidos após 1815) tenho lá minhas críticas aos modelos ricardianos. Digamos que eles são um pouco meio bastante muito totalmente quadradinhos. Ricardo acreditava que o sistema capitalista era infenso a crises. Seu único problema era a carência de recursos naturais. Que poderia ser compensada com o progresso técnico poupador de mão de obra. Com menos bocas para comer, dava prá levar o sistema “numa boa” por muito tempo. E viva a CT&I.
A virtual identificação entre inovação e progresso científico e tecnológico colocam Ricardo no campo do tecnicismo dos Engenheiros. Porém, seu estruturalismo e seu foco nos elos fracos das cadeias com maior capacidade de expansão (as exportadoras) demonstram que ele era um economista da gema, da clara, da gala e da casca. Típico da visão que os engenheiros têm do tema. Como, feliz ou infelizmente, sou economista, vou continuar perseguindo estruturas e elos fracos. Talquei?
2.4) De Schumpeter a Goldratt
Um dos maiores teóricos da inovação economicamente relevante no final do século XX foi um físico judeu israeli de nome Elyahu Goldratt. Seus ensinamentos são muito mais do que básicos: são impositivos. Qualquer um que quiser falar de inovação tem que ler A Meta, seu livro maior.
Segundo Goldratt, todo o sistema produtivo opera como uma corrente. Quanto mais longa ela for – vale dizer, quanto mais elos existirem a jusante e a montante de seu núcleo ordenador – maior a probabilidade de que exista um elo fraco, um elo que não resistirá a um eventual aumento de tensão. No caso de uma cadeia produtiva, este é o elo que irá se deparar com graves dificuldades para expandir sua produção, caso a cadeia se depare com uma expressiva ampliação de demanda. Vale dizer: todas as firmas deixarão de faturar mais por carência de capacidade produtiva de um dos elos da cadeia. Pensem como em uma linha de montagem. Imaginem que há apenas uma máquina de cada padrão. Se a máquina do meio quebra, não se pode produzir mais nada. Agora amplie este problema e substitua a máquina quebrada por todo um conjunto de empresas situadas no mesmo elo da cadeia que se deparam com – por exemplo – carência de matéria prima.
Para ajudar no raciocínio, vou dar um exemplo empírico. O Brasil tem um enorme potencial para a produção de hidrogênio verde. Tem insolação adequada e água em abundância. Mas a realização da eletrólise depende de metais resistentes à oxidação, dentre os quais o de maior longevidade é a platina. Não obstante, este é um material extremamente caro e escasso. Não é difícil prever que, caso o Brasil venha a se tornar um grande fornecedor de hidrogênio líquido, irá se deparar, mais cedo ou mais tarde, com um gargalo (um estrangulamento, um nó fraco) neste elo da cadeia. Identificar ligas com metais de custo inferior capazes de substituir a platina (mesmo que tenham uma vida inferior) é, com certeza, uma área de pesquisa extremamente promissora. Especialmente se o resultado da pesquisa for positivo e patenteável.
Imagine, agora, que a cadeia de produção de hidrogênio verde venha a se instalar sem que os grupos de CT&I tenham buscado enfrentar esta questão, de sorte que não há sequer uma proposta de substituição da platina por ligas resistentes e mais baratas. emergido grupos de pesquisa voltados ao enfrentamento deste “gargalo anunciado”. O que ocorrerá? Com certeza a demanda internacional vai superar a capacidade de oferta da cadeia de produção exclusivamente pela existência desse gargalo particular. Trabalhadores capacitados para ocuparem vagas de trabalho nos demais elos da cadeia continuarão desempregados pela incapacidade produtiva do elo fraco. O governo arrecadará menos impostos e toda a longa e complexa rede de serviços prestados às famílias (farmácias, mercados, bares, restaurantes, etc.) deixarão de se beneficiar da elevação do emprego que não houve.
Desta historinha acima extraímos duas conclusões cruciais.
- O foco de qualquer programa setorial de desenvolvimento, investimento e inovação deve ser o gargalo.
- Qualquer investimento e processo inovativo voltado à ampliação da capacidade produtiva de uma firma que opera na cadeia, mas não é o gargalo, equivale a pôr dinheiro fora. Pois a firma não poderá expandir sua produção, uma vez que os fornecedores de insumos estão incapacitados de ampliar sua oferta. Ao investir e inovar, a firma a jusante do gargalo imobiliza recursos (ao invés de aplica-los no mercado financeiro) que não poderão ser utilizados produtivamente.
Estas duas conclusões podem ser sintetizadas numa frase: o investimento e a inovação têm que ter foco. E foco é exatamente o que falta ao “startupismo”, à busca desenfreada por “mentes brilhantes” em qualquer área e ao clamor por financiamento a toda e qualquer pesquisa. Por que? Simplesmente porque não é verdade que investimentos e inovações em quaisquer áreas levarão à expansão da produção, e à ampliação do emprego, da renda e da utilização da capacidade instalada em cadeias que contam com gargalos.
Há quem discorde desta conclusão? Sim. Há dois grupos que recusam esta leitura: 1) os ultra liberais, que apostam na eficácia do Deus Mercado para ajustar magicamente os desequilíbrios entre distintos elos das cadeias; 2) aqueles para os quais o financiamento ao CT&I é um fim em si mesmo, que vivem do CT&I. Para estes últimos, a defesa da relação entre CT&I e desenvolvimento socioeconômico, com geração de emprego e renda para muitos, cumpre uma função exclusivamente retórica, com vistas a ampliar o apoio social a uma demanda que, em essência, é cartorial e sindical: mais verbas para a minha categoria. PT saudações.
De ultra liberais não se pode esperar nada. São devotos de seu Deus e não ouvem qualquer contestação. Mas acredito que há muito espaço de diálogo com os “loucos por pesquisa”. E isto em dois sentidos.
Em primeiro lugar, ser louco por CT&I não implica ser louco por apenas um tema em CT&I. Creio que existem muitos cientistas e engenheiros que efetivamente acreditam que “qualquer CT&I” é igualmente capaz de promover o desenvolvimento. E na medida em que tomarem consciência do equívoco desta tese – e muitos podem dar este passo, se abrirem mão de ensinar Economia para os economistas, e tentarem nos ouvir – estarão dispostos a deslocar o seu foco de pesquisa para áreas e temas que podem trazer a solução para problemas sociais e econômicos que exigem superação para ontem.
Mas também sei que inúmeros pesquisadores tem o seu foco bem definido; estão no topo das discussões sobre um determinado tema, participam de congressos internacionais e publicam artigos nas melhores revistas da área. E que não têm nenhuma disposição para mudar de foco. É justo? É justíssimo e corretíssimo. Quem tem tamanha paixão por um determinado objeto não pode abandoná-lo. Até porque há uma enorme diferença entre dizer que certas pesquisas não têm aplicabilidade imediata e dizer que as mesmas pesquisas que não terão qualquer aplicabilidade em qualquer momento. É o que Schumpeter nos diz, na imediata sequência da passagem reproduzida na primeira seção:
Suponha-se que uma máquina a vapor e todas as suas partes componentes obedecem à adequação econômica. À luz dessa adequação faz-se o máximo com ela. Então, não haveria sentido em tentar extrair maior proveito aquecendo-a mais, contratando operadores mais experientes e capacitados e aperfeiçoando-a, caso estas operações não se pagassem; ou seja, se o maior dispêndio com combustível, com trabalhadores mais qualificados, com os “melhoramentos” e com o consumo de mais matérias-primas superasse o acréscimo no faturamento. Mas é bem razoável considerar as condições sob as quais a máquina poderia fazer mais e quais os melhoramentos que são possíveis com o conhecimento atual. Pois essas medidas já estarão elaboradas para o momento eu se tornarem efetivamente vantajosas. (TDE, Schumpeter, 1997, p. 32)
Em suma: o fato de que um determinado desenvolvimento técnico não seja economicamente consistente para sua introdução no sistema produtivo imediatamente não o torna irrelevante. Nos termos do desenvolvimento social e econômico é muito razoável e provável que ele venha a ser de grande relevância econômica amanhã. E mesmo que isto não venha a ocorrer, a ampliação de nossos conhecimentos sobre o mundo, a qualificação de nossas Universidades e dos alunos egressos das mesmas é, sim, um valor e um mérito em si e por si. É preciso ser muito utilitarista e economicista para não entender esta obviedade. Eu a entendo muito bem e estou sempre disposto a brigar pela valorização da ciência e da pesquisa universitária.
Mas justamente em função de meu compromisso com a ciência que eu me recuso a utilizar argumentos inconsistentes – e, no limite, falsos – em defesa de pesquisas cuja capacidade efetiva de promover o desenvolvimento socioeconômico do Estado no curto e no médio prazo é mínima. Eu não preciso afirmar que todo e qualquer CT&I tem a mesma capacidade de promover a geração de emprego e renda para defender a CT&I em geral. Aliás, a defesa da CT&I em geral só será efetiva de reconhecermos que há projetos capazes de trazer retornos sociais com maior velocidade e intensidade do que outros. Se nós, cientistas, continuarmos afirmando que há uma relação direta e uniforme entre CT&I e desenvolvimento socioeconômico estaremos mentindo e, mais cedo ou mais tarde, a sociedade irá nos cobrar. Nesse caso, perderemos credibilidade e capacidade de conquistar o apoio que precisamos.
- Para concluir
Em 21 de março de 2023, Odir Antonio Dellagostin ministrou palestra na UFRGS sobre o financiamento de CT&I no Brasil. Os slides de sua apresentação foram disponibilizados para os interessados e trazem informações muito interessantes. Por exemplo, somos informados que o RS responde por 8,4% da produção científica e tecnológica do país, muito acima do PR, com 6,3% de participação e de SC, com 3,9%. Lê-se, também, que o RS ocupa o primeiro lugar dentre todos os Estados em termos de produção científica e tecnológica per capita, acima de RJ, SP, PR, SC e MG.
Como se isso não bastasse, há anos que a UFRGS é considerada a melhor Universidade Federal do Brasil, graças a elevada produtividade científica, à qualidade de seus cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado e a qualificação de seus egressos. O Parque Tecnológico da PUC é reconhecido nacional e internacionalmente. Acaba de receber um dos prêmios mais cobiçados do mundo em função de seu desempenho em CT&I: o Triple E Awards. Modesto e discreto, o superintendente de inovação e desenvolvimento da PUC atribuiu a premiação ao apoio de colegas e amigos da ampla rede gaúcha de parques tecnológicos e agências de promoção de P&D e inovação tecnológica. E estes são apenas alguns poucos exemplos dentre muitos outros.
Todas estas informações nos trazem satisfação e merecem palmas. Resultam de um trabalho árduo e valoroso de tantos colegas nossos que operam em nossas renomadas academias.
Mas há um outro lado da “produção gaúcha”. Solicitaria aos que não leram meus dois últimos trabalhos publicados na RED que o fizessem. Neles abordo a dinâmica econômica do RS nos últimos 20 anos (eles se encontram aqui e aqui). Nestes trabalhos apresento um conjunto de dados muito preocupantes sobre o nosso Estado. Ele foi o Estado que apresentou a menor taxa de crescimento demográfico do país entre 1970 e 2022. Nos últimos 12 anos sua população cresceu apenas 1,74%, enquanto a população de Santa Catarina crescia 21,78%. A diferença encontra-se na migração: em 12 anos o RS expulsou mais de 300 mil jovens; enquanto SC recebia 700 mil migrantes de fora. O desempenho demográfico do RS cai a cada ano que passa, pois estamos expulsando nossos jovens, que não encontram emprego no território. Entre 2010 e 2022, de cada dez municípios gaúchos, seis apresentaram perda absoluta de população. A área destes municípios somada corresponde a 75% da área do RS. Vale dizer, a cada ano que passa, a população domiciliada em ¾ da área do RS torna-se menor.
O auge do emprego formal no RS ocorreu em 2014, e o auge do emprego na Indústria de Transformação em nosso Estado deu-se em 2013. Santa Catarina e Paraná já recuperaram todos os empregos perdidos na crise de 2014 a 2017. Contam, hoje, com mais empregados formais do que jamais contaram em sua história. O número de ocupados na Indústria nestes dois Estados já superou o número de empregados na Indústria gaúcha. Vale lembrar que até o final do século passado, a Indústria Gaúcha era a segunda maior do Brasil em termos absolutos, sendo superada apenas por São Paulo. Na entrada do Século XXI, MG nos ultrapassou. Agora estamos prestes a ser ultrapassados por PR e SC.
O Paraná acaba de nos ultrapassar em população e em PIB. Curitiba conta hoje com quase 1 milhão e 800 mil domiciliados. Porto Alegre conta 75% da população de Curitiba. Mas o número de famílias atendidas pelo Bolsa Família em Porto Alegre é 31% maior do que o número de famílias atendidas em Curitiba pelo programa nacional. No RS, a cada duas pessoas ocupadas, uma é informal. Em SC a cada 3 ocupados apenas 1 é informal.
Em síntese: tiramos nota máxima em CT&I e somos vergonhosamente reprovados em desenvolvimento socioeconômico. Pergunto aos universitários e demais defensores de que a CT&I é condição necessária e suficiente do desenvolvimento socioeconômico:
- os dados econômicos gerados pelo IBGE são falsos e ocultam a enorme pujança econômica da República do Piratini?
- Ou a produção científica e tecnológica gaúcha é de péssima qualidade e estamos enganando o Brasil e o exterior em função de uma boa estratégia de marketing? …..
Vamos combinar, que nenhuma das duas alternativas é crível. Será que, então, devemos concluir que a CT&I só é eficaz na promoção do desenvolvimento econômico se tiver foco? E que este foco deve ser definido pelos estrangulamentos produtivos das principais cadeias empregadoras e operantes no território?
E será que poderiam considerar também a hipótese de Schumpeter de que a inovação não se reduz a processos produtivos e, mesmo a inovação em processo não precisa ser de base tecnológica?
Não? Ouvi um não? Foi impressão minha, ou alguém gritou lá atrás “aí já é demais”? Certo. Tudo bem. Vamos com calma. Um passo de cada vez. Há tanto tempo que vocês, engenheiros, tentam nos ensinar o básico em Economia que fica difícil trocar de posição de uma hora para a outra. Vamos deixar este ponto para um novo encontro, ok?
*Doutor em economia e professor do mestrado em desenvolvimento da Faccat (Faculdades Integradas de Taquara).
Imagem em Pixabay.
Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaositered@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.
Toque novamente para sair.