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Opinião

A disritmia sulina

A disritmia sulina

Artigo por RED
29/07/2023 05:30 • Atualizado em 30/07/2023 21:43
A disritmia sulina

De CARLOS ÁGUEDO PAIVA*

⦁ Os problemas do Censo

Os primeiros resultados do Censo Demográfico de 2022 deixaram o Brasil atônito. Até 2021 o IBGE estimava a população brasileira em pouco mais de 213 milhões de pessoas. Mas em 2022, o Censo “encontrou” 10 milhões de pessoas a menos no Brasil. A discrepância foi tamanha que muitos a tomaram como um indicador da baixa confiabilidade de nosso sistema estatístico. Afinal, um “equívoco” de 10 milhões não é qualquer coisa.

Há alguma razão na crítica. O IBGE viveu maus momentos ao longo dos (tristes) anos de (des)governo Bolsonaro. Sofreu com cortes de verbas, mudanças abruptas de gestão, alterações no questionário do Censo. E, como se isto tudo não bastasse, passou pelo grande desafio representado pela pandemia, que impôs mudanças no calendário; além de afetar todo o sistema de estimativa populacionais em função da elevação abrupta e inesperada do número de óbitos em 2020 e 2021.

Parte da discrepância entre a população estimada em 2021 e da população censitada em 2022 advém justamente da pandemia. Como o IBGE estima a população em cada ano antes da consolidação dos registros de óbito, o órgão projetou o impacto da covid-19 no Brasil tomando por referência a morbidade média mundial. Mas o IBGE parece não ter projetado que nós seríamos hors concours em morbidade. Além disso, aparentemente, o IBGE também subestimou o crescimento da emigração ao longo dos últimos anos. Um equívoco que também é explicável. Em 2020, no auge da pandemia, a migração de brasileiros para o exterior caiu abruptamente. Porém, em 2021 a emigração teve um crescimento astronômico, que mais do que compensou a queda do ano anterior. Além disso, parte da emigração não é computável no momento da saída do viajante. Pois ele entra nos demais países como “turista”. Neste caso, mesmo quando não tem intenção de voltar para o Brasil ele é obrigado a adquirir uma passagem de retorno; e é computado como domiciliado no país.

Mas também há um outro lado. Ao contrário do que pretende o senso comum, o fato do Censo Demográfico de 2022 ter identificado uma população menor do que a população estimada para 2021 não é a “prova” de que a estimativa estava totalmente errada. Na verdade, os Censos sempre subestimam a população real. Pois casas visitadas mais de 3 vezes sem que ninguém seja encontrado é considerada vazia. Mesmo que, na verdade, a ausência de domiciliados seja meramente casual. Assim, é de se esperar (e isto logo será averiguado) que a população brasileira se encontre, de fato, hoje, abaixo dos 213 milhões projetados para 2021, mas acima dos 203 milhões identificado no Censo de 2022. Detalhei este ponto na primeira seção de um outro artigo, cuja leitura recomendo a eventuais interessados no tema.

O que importa entender, para nossos objetivos neste texto, é que: 1) a população efetiva do Brasil e de suas regiões hoje deve ser maior do que a contabilizada no Censo e menor do que a estimada nos anos anteriores: seria razoável apostar em um valor intermediário; 2) apesar das tendências à subestimação dos Censos, esta tendência tende a se distribuir com grande uniformidade; vale dizer: os diferenciais de variação populacional não devem sofrer alterações significativas. É claro que os municípios que tiveram as maiores perdas vão protestar e, muito provavelmente, ingressarão na Justiça contra o cálculo do IBGE. Pois a perda populacional envolve perdas diversas: do repasse do ICMS à queda do número máximo de vereadores. O jus sperniandi está consagrado no Brasil. Mas ele não garante qualquer legitimidade às demandas. A maioria delas é mera protelação do inevitável.

⦁ Os determinantes da dinâmica demográfica e suas diferenças

Um dos principais focos do artigo já referido de análise do Censo que publiquei na RED no dia 15/07 foi a extraordinária diferença entre a dinâmica demográfica do RS e de SC ao longo dos últimos 12 anos. Há muito tempo que o RS é o Estado com menor taxa de crescimento demográfico do Brasil. Se tomamos o período entre 1970 e 2022, o RS ocupa exatamente a última (27ª.) colocação dentre as UFs em termos de crescimento demográfico. A população do Brasil cresceu 115% e a do RS apenas 63,5%. Mas SC cresceu acima da média brasileira no período: 159,7%, ficando em 12º. lugar entre as UFs. Mais: esta performance diferenciada é relativamente recente. Entre 1970 e 1991, a performance demográfica de SC (23,07% de crescimento) era inferior à performance do Brasil (35,93%) e pouco superior à performance demográfica do RS (cuja população cresceu 15,02% nesses 21 anos). E a similaridade nas taxas de expansão demográfica de SC e RS se impôs a despeito das discretas diferenças na estrutura etária dos dois Estados. Este ponto é importante e merece alguma consideração.

Não são poucos os demógrafos, economistas e sociólogos que buscam explicar os diferenciais (bem como as convergências) de dinâmica demográfica a partir de duas determinações básicas: estrutura etária e as referências culturais que orientam o planejamento familiar. E isto não é gratuito. Afinal, a capacidade de reprodução humana – como a de qualquer outro animal – é limitada a um dado período da vida; que vai da adolescência ao climatério. Além disso, no caso específico da população humana, o processo reprodutivo envolve, como regra geral, uma decisão dos casais, que é mediada por inúmeras determinações culturais associadas à aprovação (e/ou desaprovação) social do intercurso sexual entre casais de distintos estratos sociais e condições matrimoniais, bem como do direito dos mesmos ao controle e planejamento do número de filhos pelas vias mais diversas: do coito interrompido ao aborto.

Mas o fato da cultura e da estrutura etária serem elementos relevantes não os torna exclusivos. De sorte que não se pode reduzir a dinâmica demográfica a estas duas determinações. Quando o fazemos, estamos, de fato, abstraindo a dimensão econômica, que é fundamental para o entendimento da demografia. Mais: a abstração da dimensão econômica naturaliza (a despeito das aparências em contrário) a dinâmica demográfica, reduzindo-a, de um lado, à sua dimensão biológica (ter ou não idade para a procriação) e, de outro, a elementos “culturais” que ingressam como variáveis exógenas, não explicadas e não explicáveis, como algo da “natureza social”. O que se perde nesta redução é a capacidade de entender a dinâmica demográfica enquanto sintoma econômico, enquanto expressão privilegiada de um elemento central na dinâmica econômica: a capacidade de inclusão da população pelo trabalho gerador de uma renda minimamente satisfatória.

O ponto central a entender é que os processos migratórios são tão relevantes para a dinâmica demográfica dos territórios quanto o crescimento vegetativo da população. E os fluxos migratórios são determinados, primariamente, pela busca de melhores condições de reprodução material. Mais: com a crescente integração do mundo patrocinado pela universalização da ordem mercantil capitalista, os processos migratórios tornaram-se cada vez mais intensos e relevantes. Ao ponto de se tornarem uma das principais causas das diferenças nas estruturas etárias de regiões e nações. Senão vejamos.

Países e regiões que não oferecem oportunidades de trabalho e renda para a sua juventude em termos consistentes com suas expectativas, tendem ser abandonados pelos mesmos, que migram para regiões e nações onde encontram melhores condições de reprodução social. E estes processos migratórios são a verdadeira raiz do envelhecimento relativo da população. Aliás, é muito comum que os países e regiões que expulsam seus jovens apresentem, num primeiro momento, uma elevação do percentual de idosos e de crianças. Pois os pais partem para outras regiões deixando seus filhos pequenos com os avós. O que importa entender é que a estrutura etária não pode ser tomada como um ponto de partida absoluto. Muitas vezes ela é um desdobramento do processo migratório. E isto não é tudo: ela pode estar revelando, também, diferenciais de longevidade. E, como se sabe, a longevidade é um indicador da qualidade e universalidade do sistema sanitário e, em especial, dos serviços médicos de saúde.

Um exemplo concreto pode ajudar a entender este ponto. Entre 1970 e 1980 a população brasileira aumentou em 26,6 milhões de habitantes, o que implicou uma expansão de 28,19%. Em 1970, São Paulo contava com 19% da população total do país, mas com 22% da população entre 40 e 60 anos e (coincidentemente) 22% da população com mais de 60 anos; vale dizer: a idade média dos paulistas era maior do que a do Brasil. Não obstante, em 1980 SP passou a contar com 21% da população do país. Entre 1970 e 1980, a população de SP cresceu 41,3%, vale dizer, 13 pontos percentuais acima da média brasileira, o que o colocou em 8º. lugar entre as UFs com maior crescimento populacional. De outro lado, o PR era a UF do Sul com maior percentagem de população jovem. O PR contava com 7,5% da população total do país, mas com meros 5,5% da população acima de 60 anos. Não obstante, sua taxa de crescimento demográfico foi a menor de todo o Brasil nos dez anos (10,75%). Em 1980, o Paraná contava com apenas 6,4% da população do país: havia perdido 1,1 ponto percentual em participação. A despeito de sua estrutura etária “promissora” no início dos anos 70, a crise da economia cafeeira do Paraná em meados da década e o elevado dinamismo da indústria paulista (impulsionada pelo Milagre Econômico e, posteriormente pelo II PND de Geisel) cobraram o seu preço, alavancando as taxas de imigração do PR em direção a SP.

Um outro exemplo tão ou mais significativo: entre 2000 e 2022 a população brasileira cresceu 19,74% e a população gaúcha cresceu apenas 6,8%. Porém, nesse período, o Corede Litoral Norte, no RS, apresentou um crescimento populacional de 53,08%. Este crescimento espantoso foi capitaneado pela migração de aposentados (vale dizer, de pessoas de idade elevada) para o território. que adotaram o domicílio de veraneio como domicílio permanente. Este processo redundou, inicialmente, numa verdadeira revolução da estrutura etária dos domiciliados no Litoral, com o aumento significativo da percentagem da população idosa. Porém, o movimento inicial logo foi contrarrestado pela crescente imigração de jovens para a região. Por quê? Porque a população aposentada alimenta um desequilíbrio significativo entre oferta e demanda de bens e serviços. Pois trata-se de uma população com elevado poder de compra, com grande demanda por serviços (que é o setor mais empregador da economia) mas que não ingressa no território como ofertante, seja de bens, seja de serviços, seja de mão de obra. O desequilíbrio entre oferta e demanda que resulta deste movimento, se resolveu pela atração de empresas, empresários e trabalhadores em idade ativa para o Litoral.

Por fim, é preciso entender que a clivagem entre determinações “socioculturais” e “econômicas” envolve uma simplificação. E as simplificações só têm alguma utilidade quando as tomamos pelo que são: instrumentos de raciocínio, que podem e devem ser descartados quando buscamos ir além de modelos simples e avançamos em direção ao concreto pensado. Talvez a forma mais adequada de explicar este ponto (sem ingressar em debates teóricos infindáveis) seja a maiêutica socrática, o método de ensinar perguntando.

A despeito de algumas oscilações significativas e “booms” eventuais, a taxa de crescimento vegetativo da população dos países capitalistas desenvolvidos tem sido decrescente. Pergunta-se. Até que ponto este fenômeno resulta de uma mudança cultural associada ao exacerbamento do hedonismo e do individualismo no capitalismo avançado, em detrimento dos mores culturais do século XIX, em que a família e a Igreja eram o centro da sociabilidade e a descendência era a expressão primeira da realização pessoal? E até que ponto este fenômeno é derivado da insegurança econômica dos jovens casais nos dias atuais? Qual o papel do individualismo e qual o papel das expectativas com relação à qualidade de vida e condições de trabalho de seus filhos no futuro? Ou, tomando o meu próprio caso pessoal: eu tenho três filhos, todos casados e com mais de 30 anos. Mas não tenho netos. Isto se deve ao fato de meus filhos serem hedonistas, egocêntricos e autocentrados ou se deve ao fato de que nenhum deles tem qualquer estabilidade ou segurança nos seus empregos? Ou será que os dois fatores andam de mãos dadas?

⦁ Por que é central entender as determinações econômicas da dinâmica demográfica?

Pedimos desculpas ao nosso leitor mais preocupado com os “achados” – vale dizer: com as novidades trazidas pelo Censo Demográfico de 2022 – do que com os “perdidos” – vale dizer: com os infindáveis debates teóricos e conceituais e os inúmeros exemplos do passado para a explicitação dos determinantes da dinâmica demográfica. Mas, infelizmente, a digressão acima se mostrou essencial em função das críticas feitas ao meu trabalho publicado na RED há duas semanas atrás por alguns colegas de profissão. O centro de seus argumentos encontrava-se na pretensão de que a dinâmica demográfica não seria bom indicador da dinâmica econômica; pois estaria referida primariamente à estrutura etária e a padrões culturais associados ao planejamento familiar. No fundo, do meu ponto de vista, aqueles que esgrimem esta interpretação não o fazem por ignorar o componente econômicos associado à migração. Mas porque acreditam que a economia gaúcha está “muito bem, obrigado”. Ou, ainda: acreditam que, se ela vai mal, é apenas porque a economia brasileira vai mal. E não há nada que mudar nas políticas econômicas em curso no Rio Grande Amado.

Há anos que me oponho a esta tese. E busco demonstrar que a decadência econômica do RS não pode ser explicada exclusivamente pelo baixo dinamismo econômico brasileiro nos últimos 40 anos. É preciso atentar também para nossos erros.

E, aqui, vale esclarecer um ponto. Eu sei – e, creio, qualquer economista sabe – que há um componente nacional no fraco desempenho do RS. Talvez ainda mais importante: há um componente setorial (ou estrutural). Em que sentido: ao longo de muitas décadas, o RS se manteve em segundo lugar na participação nacional do VAB da Indústria de Transformação (IT). SP (com mais de 40%) e RS (com quase 10%) correspondiam a mais da metade do VAB da IT nacional. Ora, o Brasil vem se desindustrializando aceleradamente desde os anos 90; e os Estados mais industrializados (SP, RS e RJ) vêm sofrendo mais neste processo.

No entanto, há um terceiro componente na determinação da dinâmica de uma região: o componente diferencial. Este componente está associado à capacidade de uma região deslocar sua estrutura produtiva em direção àqueles setores que apresentam uma taxa de crescimento mais elevada. Se a conquista de novos nichos de mercado é realizada antes de potenciais concorrentes, o território ganha vantagens competitivas, pois percorre a curva de aprendizado (o know-how associado ao learning by doing) e adquire vantagens de escala (internas e externas) antes dos demais.

Mas é importante atentar para um ponto crucial para que se possa entender efetivamente o papel do componente diferencial na taxa de crescimento. Um ponto para o qual, acredito eu, raríssimos analistas e planejadores econômicos gaúchos atentam: o ingresso em novos setores só alcança dinamizar a economia se houver demanda significativa e crescente para a nova produção. Ao contrário do que usualmente se pensa no RS, o crescimento diferencial não se dá tão somente porque se ingressa em setores que ninguém antes ingressou. Em especial, não se dá quando ingressamos em setores nos quais não temos qualquer tradição e conhecimento. A trajetória normal de inovação em produto é o aproveitamento de conhecimentos e equipamentos já existentes para a diversificação de mercados. Assim, uma indústria de cola para sapato deve buscar desenvolver outras colas (para madeira, por exemplo). Uma firma de embalagens para calçados deve buscar novos nichos, como embalagens para alimentos, por exemplo.

O ingresso em um setor radicalmente novo, pode ser da maior relevância para a nação. Por exemplo: dominar a tecnologia de prototipagem de microprocessadores é fundamental para qualquer país que pretenda contar com um mínimo de autonomia e capacidade inovativa na área de computação. Neste sentido, mostra-se crucial sustentar e apoiar o CEITEC, localizado no RS. Mas seria uma falácia sustentar este apoio argumentando que o CEITEC poderia ser a base para um crescimento expressivo no emprego e na renda dos trabalhadores assalariados no RS. E isto simplesmente porque este é um setor de altíssima competitividade e não há como prever qual será a fatia de mercado que uma única empresa criada com apoio do Estado justamente para dar início ao longo e complexo processo de aprendizado virá a conquistar.

Aqueles que se revoltam com o fato do Brasil estar se especializando, de forma crescente, em atividades agroindustriais se esquecem que a produção que cresce aceleradamente e que gera emprego e renda de forma substantiva é a produção que conta com um mercado: 1) em expansão; 2) ao qual somos capazes de atender ao menor custo nacional e/ou internacional. Não se trata – insistamos – de negar o papel estratégico de investimentos onde o país não tem tradição. Trata-se apenas de não confundir objetivos distintos – gerar emprego e renda para a população e estar up to date com a tecnologia de ponta no mundo – como se ambos fossem irmãos siameses. Este é o maior erro daqueles que confundem inovação com ingresso em searas caracterizadas por tecnologia de ponta. E confundem tecnologia de ponta com desenvolvimento socioeconômico. A inovação é central? Claro que sim! Mas ela não é um atributo restrito a alguns poucos setores. Todo e qualquer setor tem a sua fronteira tecnológica e gerencial específica. Todo e qualquer setor carrega consigo o potencial de inovar. Se não entendemos isto, não entendemos mais nada. E não podemos planejar o futuro do nosso Estado. Santa Catarina entendeu. E está nos dando um rolê.

⦁ RS e SC: uma disritmia para lá de surpreendente

Tomando por base as informações dos Censos Demográficos, entre 2010 e 2022 a população brasileira cresceu 6,45%. A população do RS cresceu apenas 1,74% (um quarto do crescimento nacional). E a população de SC cresceu 21,78% (3,4 vezes mais que o Brasil). SC ocupou o segundo lugar em taxa de crescimento demográfico do país, abaixo apenas de Roraima. Por quê?

Se tomamos os dados do crescimento vegetativo (nascimentos menos óbitos) do SC e do RS entre 2015 e 2022 (período de vigência da Lei da Transparência) temos o seguinte quadro:

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Importante observar que: 1) o saldo do crescimento vegetativo absoluto de SC é superior ao saldo do RS, a despeito da população gaúcha superar a população catarinense em quase 50%; 2) este resultado é fruto tanto da maior morbidade no RS (em média, 0,79% da população total ao ano) em relação a SC (média de 0,61% ao ano) quanto da taxa de natalidade inferior do RS (1,15% a.a.) com relação a SC (1,37% a.a.).

Que motivos podem ser aventados para tamanha diferença nas taxas de natalidade, mortalidade e crescimento vegetativo? Será que a estrutura etária é capaz de explicar o fenômeno? Para responder à questão apresentamos, no Quadro 2, abaixo, os dados do número de habitantes no Brasil, SC e RS por faixa etária.

Tal como se pode observar, SC e RS apresentam uma percentagem menor que o Brasil de crianças e adolescentes (entre 0 e 19 anos), uma percentagem maior de adultos em fase reprodutiva (entre 20 e 59 anos) e o RS apresenta uma percentagem significativamente maior de pessoas com mais de 60 anos.

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Porém, o ponto realmente importante é que o RS contava, em 2010, com uma população muito superior a SC em todos os grupos de idade. Se tomamos a faixa entre 20 e 59 anos como a faixa de idade reprodutiva masculina (a feminina se encerra um pouco antes), a população do RS superava a de SC em 66%. O mesmo ocorre se incluirmos os adolescentes entre 15 e 19 no grupo em fase reprodutiva: SC contava, em 2010, com 545 mil pessoas nesta faixa etária e o RS contava com 876 mil, superando SC em mais de 60%. Ora, mesmo que admitamos que a maior percentagem de idosos no RS ampliasse a taxa de morbidade, supondo uma taxa de natalidade similar nos grupos em idade reprodutiva, o saldo absoluto anual de crescimento da população deveria ser similar. Mas não foi. Apesar da população ser 60% maior, o número de óbitos no RS é mais do que o dobro de SC. E o número absoluto de nascimentos no RS supera o número de nascimentos em SC em apenas 30%. O resultado é aquele apresentado no Quadro 1: o saldo absoluto da variação populacional vegetativa (nascimentos menos óbitos) do RS correspondeu a 75% da variação populacional vegetativa de SC. A pergunta que fica é: será que jovens e adultos no RS têm menos filhos por “diferenças culturais” com SC ou por “diferenças econômicas”? … Evidentemente, a pergunta é essencialmente retórica. Afinal, o padrão de colonização dos dois Estados o extremo sul do Brasil foi muito similar e, na essência, comungam da mesma cultura. O elemento econômico parece ser preponderante neste caso. E há uma prova bastante clara desta preponderância. Vejamos abaixo.

Não dispomos de dados sistematizados sobre nascimentos e óbitos para o período anterior a 2015. Obtê-los envolveria um trabalho de pesquisa não desprezível. Mas o período disponível não é pequeno: contamos com 8 anos de informação entre 2015 e 2022. O que nos permite adotar uma proxy estatística para calcular o crescimento vegetativo da população de SC e RS entre 2010 e 2022: tomamos a média dos últimos 8 anos e multiplicamos por 12, vale dizer, pelo número de anos entre os dois Censos. Esta operação não é precisa e tende a subestimar o crescimento vegetativo da população gaúcha. Para que se entenda o ponto, basta voltar ao Quadro 1. A Covid não foi neutra, e ceifou mais vidas entre os idosos do que entre os jovens. De sorte que o RS, por ter uma percentagem maior de população idosa passou por um crescimento notável do número de óbitos durante a pandemia, que levou a um saldo vegetativo de apenas 7.663 pessoas em 2021, 20% do saldo vegetativo de SC no mesmo ano.

Não obstante, a subestimação da taxa de crescimento vegetativo da população gaúcha é útil para o nosso argumento. Pois vamos tentar calcular a taxa de emigração do RS e de imigração para SC. Se o crescimento vegetativo da população gaúcha tiver sido maior do que aquela calculada pela multiplicação da média entre 2015 e 2022 (como, provavelmente, foi) seremos obrigados a reconhecer que a diáspora gaúcha foi ainda maior. O que nos levaria a concluir que os problemas de inclusão socioeconômica da população gaúcha são ainda mais graves do que nossas hipóteses simplificadoras nos levam a perceber. Sigamos, pois, em nosso raciocínio e argumentos “otimistas”.

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Como se pode observar no Quadro 3, quando projetamos o crescimento vegetativo médio anual de SC entre 2015 e 2022 para todo o período entre os dois últimos Censos Demográficos, concluímos que sua população teria crescido em torno de 652 mil pessoas. Mas, de fato, o crescimento populacional foi 1 milhão e 361 mil pessoas. O que nos leva a concluir que esta UF recebeu, no período, mais de 700 mil pessoas como imigrantes. Por oposição, ao extrapolarmos o crescimento vegetativo anual do RS para os 12 anos entre os Censo Demográficos, concluímos que ele deveria ter passado por um acréscimo populacional de quase 500 mil pessoas. Porém, o crescimento real, de acordo com o Censo, foi inferior a 200 mil indivíduos. O que nos leva a concluir que algo em torno de 300 mil pessoas optaram por abandonar os pagos, buscando melhores oportunidades de vida em outros rincões.

⦁ Conclusão: a quem serve cantar “sirvam nossas façanhas”?

Como comentei acima, há muitos anos que venho tentando chamar a atenção para o fato de que o Rio Grande Amado tomou o caminho errado e vem crescendo como rabo de cavalo: só para baixo. Com isto quero dizer apenas que não precisaríamos destas “revelações” do Censo 2022 para entender algo que já estava manifesto por diversos indicadores levantados anteriormente. Mas, a despeito da longa e rica tradição de produção teórica em Economia e em Planejamento deste torrão amado, na porção Oriental do Rio Uruguai, tão brasileiro quanto platense, aparentemente temos uma enorme dificuldade em reconhecer nossas dificuldades e problemas.

Ao longo do texto procurei demonstrar que a diferença abissal da dinâmica demográfica de SC e do RS não pode ser reduzida a determinações “naturais”, sejam elas de estrutura etária, sejam de formação histórica e, por extensão, de padrões culturais “herdados”. Mas, agora, ao término dessa jornada investigativa, podemos reconhecer que nossos argumentos não foram 100% honestos. Há, sim, uma diferença cultural notável entre gaúchos e nossos vizinhos sulino-nortenhos (SC e PR). O RS não é apenas um Estado de colonos europeus (como SC). Nem é um Estado que se criou no meio do caminho entre SP e o extremo sul (como o PR). O RS também é um Estado platense. Temos muito de argentinos e uruguaios. A começar pela dificuldade em reconhecer que não somos europeus, que não estamos sempre certos e que não fazemos parte do primeiro mundo.

Há uma piada sobre o Mercosul que me parece muito reveladora da personalidade gaudéria. Segunda ela, o verdadeiro mercosulino tem a “modéstia” do argentino, a “alegria e autoestima” do uruguaio, a “honestidade” do paraguaio, e a “sobriedade, elegância e confiabilidade” do brasileiro.

O gaúcho é isto tudo. O que mais chama a atenção dos nossos vizinhos ao norte é a “modéstia” argentina que carregamos no peito. E que nos faz ter certeza de que estamos sempre no passo certo independentemente do que nos informe a realidade. O fato de SC, Paraná, Paraguai e o Uruguai estarem crescendo muito mais do que o RS não passa de “sorte de principiante”. Afinal, eles estão apostando no passado, na agroindústria, e nós TODOS sabemos que o futuro está na tecnologia de ponta. Pois somos muito mais cultos e espertos que os outros.

O que os nossos colegas brazucas nem sempre percebem é que também somos uruguaios. Pois somos soturnos e desesperançados. Não acreditamos em acordos, pactos e progresso. E adoramos o nosso pago. Não há nada mais lindo que o Pampa e suas coxilhas (que só nós alcançamos enxergar). E é por isso que eu gosto lá de fora porque sei que a falsidade não vigora. O gaúcho é Pampa Tech.

E, por favor, entendam que em um Estado de fronteira (especialmente de fronteira seca) contrabando não é crime. É da natureza das coisas abastecer o carro em Rivera e fazer compras em Passo de los Libres sempre que os preços estiverem melhores do outro lado. Entendemos perfeitamente nossos irmãos paraguaios. E somos solidários aos seus discursos contra a corrupção. Corrupção é visitar triplex e não comprar. Contrabando e privatização de patrimônio público a preço de banana é ação benemérita e honrada. Na dúvida, pergunte à Zero Hora. … Que não me deixa mentir sozinho.


*Doutor em economia e professor do mestrado em desenvolvimento da Faccat (Faculdades Integradas de Taquara).

Imagem em Pixabay.

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Toque novamente para sair.