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Opinião

A fuga de cérebros e outras notas sobre o Rio Grande amado

A fuga de cérebros e outras notas sobre o Rio Grande amado

Artigo por RED
16/09/2023 05:35 • Atualizado em 18/09/2023 13:07
A fuga de cérebros e outras notas sobre o Rio Grande amado

De CARLOS ÁGUEDO PAIVA*

  • Introdução 

O meu texto sobre “Economistas X Engenheiros” causou polêmica. Excelente. Espero que cause ainda mais. Já passou da hora de nos darmos conta de que o Rio Grande Amado está indo na direção errada. E a responsabilidade não é desse ou daquele governo, dessa ou daquela política em particular. O RS vai mal, em primeiro lugar, porque os gaúchos, até agora, não conseguiam reconhecer que ele ia mal. Gaudério que é gaudério tem certeza que todas as nossas façanhas são modelos para toda a Terra. Há façanhas vergonhosas? Sim. Poucas, mas há. Evidentemente, perpetradas por maragatos (chimangos), colorados (gremistas) e bolsonaristas (petralhas). Se o cara é gaudério, pode até ter um defeito e ser valente, trabalhador e esperto. Se tiver dois, a gente deixa vivo, mas não cumprimenta.  Mas se tiver três defeitos, só degolando! 

Infelizmente, eu sou uma exceção. Até bem pouco tempo, todos queriam a minha degola, sem sequer perguntar qual o meu time e partido do coração. E isto só porque eu insistia em dizer que estávamos navegando de vento em proa: só de ré. 

A maior parte dos meus amigos e colegas insistia que o meu caso era de internamento, pois a economia gaúcha era forte e rija. O único problema era a Geni. Seja a Geni nacional, sediada em Brasília, seja a Geni regional, que atende no Piratini. Não fossem pelas políticas públicas equivocadas o Rio Grande Amado estaria emparelhado com Buzz, viajando para “o infinito e além”. Em dois debates realizados recentemente no programa de conjuntura econômica das sextas-feiras às 18 horas na RED, ouvi amigos dizendo com empáfia que, a despeito da evidente crise das políticas públicas do Estado gaúcho,  o setor privado estava maravilhosamente bem. …. Como digo sempre, a sorte é que sou calmo. … 

Infelizmente, tivemos que chegar a resultados realmente péssimos para que a gauchada começasse a olhar para a vida como ela é. E mesmo este start básico só foi possível em função da ferida narcísica imposta pelo magnifico desempenho daqueles comedores de joelho de porco que vivem acima do Mampituba e do Uruguai: os catarina. Os resultados do Censo Demográfico de 2022 abriram os olhos de muitos. Entre 2010 e 2022 expulsamos mais de 300 mil pessoas; via de regra, jovens com formação educacional acima da média. Enquanto SC atraía, do RS, do resto do Brasil e do mundo mais de 700 mil pessoas para viverem e trabalharem no seu território. Com a perda de expressão populacional, o RS está correndo o risco de ter sua bancada federal diminuída em até dois representantes. E SC pode ter sua bancada ampliada em até 3 novos deputados federais. Minha sorte é que não acredito em vida após a morte. Ou já estaria rezando uma novena completa (de nove meses) com o rosário integral para Bento Gonçalves, Garibaldi, Silveira Martins, Castilhos, Borges, Pinheiro Machado, Getúlio, Jango e Brizola. E era capaz até de rezar um Trido para os Geisel e o Golbery. De tanta pena que teria do sofrimento dos nossos caudilhos ao verem SC se transformar em referência produtiva, industrial, tecnológica e política enquanto nós vamos perdendo todo o protagonismo.

Para piorar, o auge do emprego formal (carteira assinada ou funcionário público) no RS foi em 2014 e o auge do emprego industrial foi em 2013. SC e PR já recuperaram todos os empregos perdidos na crise de 2015 a 2018, assim como aqueles perdidos durante o auge da pandemia, em 2020. Em 2022 (último ano com informações disponíveis) os dois estados do sul acima do Mampituba atingiram o maior número de ocupados em suas histórias. Na verdade, os dois Estados já ultrapassaram o RS em população ocupada na Indústria de Transformação e, especialmente SC, vêm ampliando suas participações no PIB e nos diversos VABs. Enquanto o RS só perde participação dentro da economia sulina. Quem quiser ver detalhes sobre estes tristes fatos, basta resgatar meus quatro últimos artigos publicados na RED, aqui, aqui, aqui e aqui

Hoje, porém, vou dar uma pausa nos textos longos, cheios de tabelas e equações. O meu tema vai ser menos ambicioso. Achei por bem dedicar este artigo ao debate com os meus críticos. E vamos começar pela crítica mais comum. 

  • Teu texto é ótimo, mas…

Como regra geral, os comentários vêm nesse formato. No início, os elogios saem aos borbotões. Ai, como tu escreves bem, como tu és claro, como tu vais da teoria ao exemplo prático com facilidade e humor, é ótimo te ler. … Porém, não dava para ser um pouquinho mais curto? Nem é por mim, mas pelos outros. Tenho medo que muitos deixem de te ler, pois o mundo hoje é das redes sociais e da lacração. Ninguém lê textos tão longos. 

Que posso dizer? Azar é o meu. E azar é dos que se adaptaram tão facilmente a este mundo onde não há espaço para o diálogo, para o argumento, para a dialética. Não pode haver aprendizado real sem que os argumentos sejam esgrimidos, sem que sejam apresentadas as visões divergentes com a atenção que elas merecem.  De qualquer maneira, prometo tentar. E, hoje, vou conseguir. Na real, estou tão atarefado com outras atividades que não vai ser possível escrever um “texto com pesquisa”. Vou ficar nas notas. E o texto vai ficar curto. Não tanto por falta de ideias, argumentos e problemas. Mas por falta de tempo. 

  • Eu li todos os teus textos na RED, mas até hoje eu não entendi porque o RS vai tão mal 

Que bom que você não entendeu o que eu não tentei explicar. Minha tarefa até aqui foi tentar convencer aqueles que se recusavam a ver o óbvio lululante: que o Rio Grande Amado vai mal, obrigado. E vocês não fazem ideia de quantos se negavam a ver essa obviedade. Por quê? Porque, mal ou bem, nós todos somos responsáveis pela trajetória da nossa aldeia gaulesa. Ninguém realmente inteligente acredita que um território pode ir mal apenas porque os governos são incompetentes, mas os governados são geniais. É difícil olhar para um produto nosso, um produto coletivo, e reconhecer seus defeitos. O RS não tem avestruz, mas tem emas. E elas também gostam de esconder a cabeça em buracos. Quando vemos Leite afirmando e reafirmando que tudo vai bem no RS, qualquer um percebe que ele está mentindo (desde que não seja um jornalista da Zero Hora, claro!). 

Porém, quando nós mesmos, cientistas e intelectuais do campo político-ideológico da esquerda, dizemos que tudo vai bem nas Universidades gaúchas, nos Centros de Pesquisa, nas Incubadoras Tecnológicas, nos Sistemas de Apoio à Inovação, na produção de CT&I, também estamos mentindo. Quando dizemos que temos um projeto claro para o RS, que só não alcançamos implementar porque o conservadorismo avança no mundo todo e conquistou corações e mentes no sul do país, também estamos mentindo. 

Não se trata de negar a qualidade da produção científica do RS. Em todos os níveis. Ela é excelente. Na verdade, eu diria que ela é muito melhor do que a grande maioria dos nossos docentes e pesquisadores alcança, realmente, entender. E, em parte por isso mesmo, ela está tão descolada da nossa realidade mais real, mais pueril, mais cotidiana. É como se procurássemos “pelo em ovo”. O problema está escarrado e cuspido na nossa frente. Mas as nossas mentes brilhantes não podem admitir que o problema seja realmente o que parece ser. Se fosse, já teria sido resolvido. Vamos procurar noutro lugar.

Eu mesmo não gosto de explicações culturalistas. Elas são fáceis demais. Peço perdão por usar uma epistemologia que, de tão fácil, beira o bagaceiro. Mas até Popper, por vezes, pode ter razão: como contestar uma tese que afirma que a tua contestação é a prova de sua validade? Feliz ou infelizmente, porém, a cultura existe e insiste a formar as nossas mentes e percepções. O gaúcho é over e radical. Quase como um Porteño. Eu reconheço: sou gaúcho prá dedéu. 

O grenalismo, o chimango-maragatismo, é um traço cultural extremamente negativo e que nos assola de uma forma absurda. E ele não se expressa apenas na pretensão de que eu estou certo e o que está do outro lado não tem nada a me ensinar, não tem nada de bom, não diz nada que preste. Esta é, por assim dizer, a forma mais folclórica da nossa incapacidade de ouvir o outro e aprender. Mas ela tem uma forma que, do meu ponto de vista, consegue ser ainda pior: é a sua versão “sensata”, a versão “Zero Hora”. A versão radical, sanguínea, é aquela representada pelo esquerdista que tem certeza que tudo se resolveria com o fim da propriedade privada e o liberal raivoso cujo lema é “quanto menos estado melhor”. Mas a versão Zero Hora consegue ser pior justamente porque ela conquista respeito e aliados ao ser um misto de tautologia, obviedade e conservadorismo light. Não se trata de mais ou menos Estado, mas de “fazer o dever de casa”, de entender que “administrar um Estado é como administrar uma casa: não se pode gastar o que não se tem”. Eça pode não ser maior que Machado. Não é. De forma alguma. Mas ele criou o maior personagem da literatura lusa: o Conselheiro Acácio. Se morasse no Rio Grande Amado, com certeza, seria jornalista da Zero Hora. 

Mas não importa se a versão é esquerdista, direitista ou murista. O resultado é um só: somos incapazes de agir coletivamente. Até porque não somos capazes de convergir, de chegar a qualquer síntese. E quando só há antagonismo, radicalidade e certeza entre os “líderes”, só há incredulidade e pasmaceira no “povo”. 

Há muito me convenci que o RS não tem condições alguma de pagar a dívida estadual. Escrevi diversos artigos sobre isso. Vou lançar um livro na Feira do Livro desse ano sobre o tema. Se nos uníssemos, poderíamos levar nossas demandas a Brasília. A formação da nossa dívida é totalmente atípica. Mas como organizar uma ação coletiva se, num dia, Eduardo Leite diz que já resolveu tudo e, agora, não há mais problema de caixa? E no outro dia, ele afirma que não há como pagar nada e temos que renegocia? E se a ZH aplaude sempre? Desde que, claro, articule-se um novo acordo. E se pague. Pois dívida, é sagrada.

 Em qual versão o povo vai acreditar? Se for inteligente, em nenhuma. E o povo brasileiro é de uma inteligência absurda. E, sem confiança, também não vai se mobilizar para nada. Pois não há como levar a sério os discursos tonitroantes e as soluções fáceis dos novos chimangos, dos neo maragatos, ou da mídia pretenciosa, reacionária e vazia de inteligência, cultura e vontade de contribuir para o desenvolvimento do nosso Estado. Simplesmente não há como confiar em ninguém que afirme que a “solução é simples e ele sabe exatamente qual ela é”. E nisso nós somos mestres. 

O segundo traço cultural é a megalomania. O gaúcho parece nascer com uma certeza: SC está fadada a ser aquela coisa pequerrucha, nanica, tradicional, que produz frango, porco e tijolo e que tem praias bonitas. Mas o nosso nome já diz qual é o nosso destino: ser Grande. Não queremos estas coisicas catarinenses. Nossas demandas são por ter o segundo polo automotivo do Brasil; sermos liderança em P&D nas áreas de petróleo, gás e energias renováveis; termos a primeira fábrica de prototipagem de chips do Hemisfério Sul; liderarmos a recuperação da indústria naval brasileira; sediarmos o maior cluster armamentista da América do Sul; dentre tantos outros devaneios.

 Isto está errado? Sim, está. Não está errado almejar algo realmente grande. Está errado deixar de olhar o que se tem de fato para projetar o que se quer. Onde eu quero chegar é uma coisa. Outra, muito diferente, é pretender que eu possa dar “grandes saltos para a frente” por vontade política e macheza. Não se trata de pretender que a vontade não cumpra um papel. Cumpre. Desde que seja real. Quem tem vontade de mudar tem coragem de se olhar e ver o que é. É preciso olharmos para o que somos e, a partir daí, avaliar como podemos conquistar o que almejamos. 

Eu passei muito tempo trabalhando com o Sebrae do Paraná e a Federação das Indústrias do Estado do Paraná. E fiquei pasmo com as diferenças de perspectiva de empresários e gestores políticos paranaenses e gaúchos. No Paraná – e, creio, também em SC – a questão fundamental que políticos e lideranças empresariais se colocam é entender os problemas e as demandas dos empresários paranaenses (e catarinenses). São as demandas deles que devem ser ouvidas, os problemas reais, comezinhos, no limite do ridículo, que devem ser enfrentados e solucionados. O Estado e as entidades empresariais paranaenses e catarinenses tem foco. E o foco é o empresário paranaense e catarinense. …. Por mais estranho que isto possa parecer para nós. 

Na cabeça do gaúcho – seja ele de esquerda ou de direita – isso é coisa de político subserviente ao capital. Para gaudério da gema, até a Marcopolo, Randon, Kepler-Weber, SLC e Taurus são pequenininhas demais (e reacionárias demais) para serem ouvidas. E também não estamos aqui para atender demandas da Santa Clara, da Piá, da Languiru, ou da CCGL. E nem me fale em cooperativas vinícolas (e seus escra-vinhos) ou na produção de arroz, gado bovino ou erva-mate. Gaudério que é gaudério pensa grande. Nosso horizonte mínimo é Ford, GM, Motorola, Nestlé, Souza Cruz e KMW. Quem cuida de empresecas locais são os catarina e os paranaenses. … É gente humilde, que vontade de chorar. 

  • A fuga de cérebros 

Há poucos dias atrás, fui fazer uma exposição sobre o desempenho socioeconômico recente do RS para um grupo de intelectuais que tem como tema organizador de suas reflexões a questão da Ciência, Tecnologia & Inovação e o papel desta tríade para o desenvolvimento. Ao longo de pouco mais de uma hora de exposição, tentei demonstrar a importância do foco nos elos fracos, nos gargalos e, portanto, olhar com muita atenção para as cadeias produtivas efetivamente existentes no Estado e que vêm apresentando dificuldades em sua expansão. 

Ao final da exposição, abriu-se o espaço para perguntas. Para minha surpresa, uma das primeiras perguntas que me foi dirigida foi: O que, na sua opinião, deve ser feito para cercear a fuga de cérebros? 

 Eu tentei deixar claro o quão surpreso eu estava com a pergunta. Fui até rude, dizendo que achava que ele não tinha me escutado. Mas, fiquei com a impressão de que simplesmente continuamos sem nos entender. 

Do meu ponto de vista, responder a esta questão é absolutamente banal. Não se trata de impedir qualquer fuga de cérebros. Mas de parar de formar cérebros que só se encaixam produtiva, social e economicamente fora do RS e fora do Brasil. 

O que eu acho mais incrível na concepção “engenheira” de inovação e desenvolvimento é que eles tomam o futuro como aquilo que está acontecendo agora nos países tecnologicamente mais desenvolvidos. E querem transformar o Brasil nisso imediatamente. Logo, formam pessoas para enfrentarem exatamente as questões que estão sendo tratadas, hoje, no Japão, na Coreia, na China, na Alemanha, nos EUA, na Finlândia e na França. E quando as pessoas vão trabalhar nesses lugares, eles perguntam como impedir isso? Não há como impedir algo que você produziu e almejou. Se o ideal é o que se faz lá, para onde você acha que o recém formado vai? Só não irá se a formação for ruim. Mas o problema é que não é. Nossas universidades têm qualidade internacional. Logo, continuaremos exportando cérebros. É evidente. Nós é que estamos promovendo isso. 

  • A questão do startupismo

Um amigo me liga para dizer que achou pesada minha crítica ao que eu chamei de startupismo, vale dizer, o apoio – via incubação e orientação para a conquista de financiamento e investidores – às pequenas empresas inovadoras. Em especial, às empresas inovadoras no sentido da “engenharia”: tecnologicamente inovadoras, que operam naquele patamar de C,T&I que é o sonho, o desejo e a quimera de “todos nós” (sic). Segundo esse meu amigo, o que eu teria que entender é que as startups são como uma carteira de ações adquirida com algum grau de aleatoriedade: algumas rendem bem; outras, nem tanto; e outras simplesmente não dão certo. E isto é normal. É da vida.

Respondi que não tinha qualquer objeção a seus argumentos. E eles apenas provam que, mais uma vez, a minha crítica não foi entendida. Eu não estou afirmando que as firmas estão fadadas ao fracasso. Muito antes pelo contrário. Tenho a mais absoluta certeza que o trabalho que se faz no RS de incubação, orientação e apoio às micro e pequenas empresas de alta tecnologia é de padrão internacional. E tenho que certeza que muitas prosperarão. Minha questão está longe de transitar por aí.

O que eu digo é que este tipo de investimento envolve tomar a economia como o que ela não é: um não sistema, um amontoado de empresas, uma realidade entrópica. A economia é um sistema. Cada região conta com algumas poucas cadeias produtivas de grande expressão. Elas têm gargalos. E seu crescimento depende da superação destes gargalos. Quem está estudando isso no RS? Eu não estou falando sequer das incubadoras tecnológicas ou dos sistemas de apoio à inovação e às startups. Eu estou falando dos economistas. Quem estuda isto no RS? A antiga FEE não fazia isto. Duvido que o DEE faça. A UFRGS não faz. A PUC tampouco. E nem os Pós-Graduações em Desenvolvimento Regional. Nem, que eu saiba, a FIERGS, o Sebrae, o SESI ou o que for.

Para ir no ponto: se o objetivo é promover startups, então façam isto. Mas só não pretendam que, da “emergência de várias empresas inteligentes e vencedoras” venhamos a ter um grande crescimento na economia gaúcha. Não teremos. Pois a economia gaúcha – como qualquer economia – não é um “bolo” de empresas. É um sistema. 

E se o foco continuar sendo tecnologia “de ponta”, padrão japonês, não reclamem pela fuga de cérebros. Sintam-se orgulhosos de estarem produzindo “capital humano” de padrão internacional. E vejam nessa fuga o reflexo do sucesso do projeto abraçado. Se vocês não querem olhar para o que nós somos e temos, se não querem olhar para nossos problemas, para nossa “pequenez”, então deem parabéns àquele discípulo que realizou os seus sonhos de viver e trabalhar em um país moderno, um país do futuro, um país competente. Nós colhemos o que plantamos. Não é mesmo? 

  • Então está explicado? É isso que nos faz andar quase que de ré?

Não. Até aqui temos apenas uma parte da explicação. Tal como eu também apontei em outros textos, o baixo crescimento do RS é indissociável de alguns problemas de especialização. A soja e o calçado são duas especializações que vêm se mostrando bem problemáticas. Por motivos distintos. Mas ambas estão nos puxando para trás. Vou tentar tratar disso em outra oportunidade. A grande cadeia metalmecânica – na qual somos especializados, desde máquinas e implementos agrícolas até máquinas industriais – também tem lá suas peculiaridades e vem sofrendo de forma muito pesada a exposição competitiva à qual estamos submetidos pela opção de controlar a inflação por ancoragem cambial. 

Não podemos tratar desses problemas aqui e agora. Por quê? Porque o nosso ponto é, exatamente, afirmar que os problemas específicos e peculiares às nossas cadeias produtivas mais relevantes não são insolúveis. Desde que alguém se dedique a estuda-los e a fazer a inovação que importa: enfrentar, de forma genuinamente original, ousada, os gargalos, impedimentos e desafios dessas cadeias. 

Aqui eu me sinto obrigado a fazer uma confissão. Há muitas coisas nos EUA que eu admiro muito. A começar pela “arrogância catarina” que tantos os caracteriza. Aquele tipo de “arrogância” que, infelizmente, nos falta. O norte-americano típico é aquele sujeito que é tão arrogante que ousa pretender fazer um whiskey a base de milho capaz de concorrer com o scotch. E não apenas inventa o Bourbon como se dá ao requinte de produzir algo o Jack Daniels. Os gaúchos têm certeza que, de soja e arroz, é impossível fazer qualquer coisa relevante. Quanto mais algo refinado, elegante e caro.

Mas, então, ninguém pensa em agregar valor à soja? …  Sim. Pensam, sonham e deliram com isso. Não são poucos os que levantam suas vozes iradas contra a falta de agregação de valor nos produtos que exportamos. Como se estivesse em nosso poder definir se os chineses vão comprar soja seca e a granel ou shoyu e tofu. Vocês têm alguma ideia dos custos de transporte de “tofu”? Têm alguma ideia da diferença de qualidade do nosso tofu e daquele produzido na China? 

Não basta produzir saquê no Brasil para os japoneses estarem dispostos a comprar o nosso saquê, em vez de produzirem eles mesmo de acordo com técnicas milenares e controle de qualidade únicos. Porém, daí não se extrai a conclusão que não possamos produzir saquê – e outras bebidas a partir do arroz – para o mercado interno e com tecnologia e padrões de qualidade próprios. Nós temos uma cadeia vitivinícola de excelência. Somos produtores agrícolas dos mais diversos insumos para a produção de fermentados e destilados: de uva a cevada, de batata a maçã, de arroz a trigo. Mas a nossa indústria de bebidas não é foco de nenhum industrialista ousado e inovador. Afinal, é uma indústria menor, de base tradicional. … A sorte é que sou calmo. …

  • Nada como um bom bate-papo com um amigo das hard-hard-sciences 

Um amigo me liga para dizer que não entende minhas críticas. Ele tem a impressão que eu não consigo entender que há uma diferença fundamental entre indústrias “tradicionais”, “modernas” e “de ponta”. Reconheço. Não entendo. Pior ainda e com toda a sinceridade: ouso até sentir pena de quem ainda opera com essa distinção. Tanta pena que quase entro em depressão. 

Sim, eu sei que muita gente opera nesse diapasão. E muita gente famosa! Economistas que cobram fortunas por suas palestras, onde afirmam o que todo mundo sabe. Tem uma grande serventia: fazer com que aqueles que pagam pelas palestras pensem que são realmente muito inteligentes. And so what? A ignorância pretenciosa é muito mais difundida e democrática do que o câncer. Prospera em todas as classes sociais e em todas as profissões. Mas este tema é demasiado complexo para tratar teoricamente. Usemos a maiêutica para enfrentar mais deste desafio. Perguntas de um Economista para um amigo Engenheiro: 

Economista: Caro Amigão Engenheiro, do seu ponto de vista, qual o segmento industrial mais “moderno”? A produção de calçados ou a produção de máquinas com controle numérico baseadas em CAD-CAM? 

Engenheiro: As máquinas, claro. Há sapatos desde que os homens eram nômades, desde pelo menos 10 mil anos. As máquinas de controle numérico são do século XX. E vou te dizer mais. Elas já estão sendo superadas. O processo de automação não está mais baseado em programas estáveis, que definem os cortes realizados pelas máquinas com precisão e, simultaneamente, com base em padrões rígidos. A automação moderna possibilita a variação de padrões sem programação rígida. Esta é a fronteira. 

Economista: Então tu propões que a gente deixe de lado o decadente setor coureiro-calçadista e joguemos nossas fichas nestes novos sistemas de automação industrial? 

Engenheiro: Claro que sim! Esta é a indústria do futuro. Até porque estas máquinas – que, na verdade, são robôs que operam com sistemas cada vez mais complexos de percepção que imitam o olho humano e as habilidades manuais que, até pouco tempo atrás, só os homens tinham – têm como principal insumo os nanoprocessadores , que hoje têm a espessura de poucos átomos. 

Economista: Caro amigo engenheiro, há fábricas de máquinas com controle numérico no RS e capacidade de percepção das diferenças anatômicas dos objetos sobre os quais elas operam? E elas estão acompanhando os progressos na área de automação e atentas para o potencial da inteligência artificial na geração automática de novos programas para sua operação?  

Engenheiro: Sim, há! Várias. Por isso é que eu te digo que não dá para entender como é que o RS pode estar tendo um desempenho econômico tão mal. Eu mesmo dou consultoria para várias dessas empresas. Algumas delas foram startupadas nos melhores Parques Tecnológicos do Rio Grande Amado. E elas são ótimas. Excelentes. Up to date prá dedéu. 

Economista: E, que eu mal pergunte, elas fazem cortes e recortes do que mesmo? 

Engenheiro: Em geral, estas máquinas são adquiridas pelos produtores de calçados (onde fazem os cortes de solados e do couro ou do plástico); pelas firmas de vestuário (onde fazem os moldes e os produtos de malharia); pelas firmas de implementos agrícolas (para garantir a homogeneidade das peças); pelas firmas de armamentos; e pelas firmas de cutelaria e material médico básico (como bisturis e outros instrumentos). Mas elas não fazem só cortes. Por exemplo, uma ordenhadeira totalmente automatizada identifica as peculiaridades e diferenças no ubre do gado vacum, a começar pela altura que o mesmo se encontra do solo e todas as suas características anatômicas. Ela higieniza o ubre sem gerar qualquer ferimento no gado e extrai o leite sem contato manual. E, ao fim e ao cabo, analisa a qualidade do leite em um sistema computadorizado que opera com informações muito sofisticadas de química e biologia. 

Economista: Mas, do seu ponto de vista, não haveria qualquer problema se deixássemos de apoiar a indústria calçadista, têxtil-vestuário, implementos agrícolas, armamentos, cutelaria e material médico? Sem falar, é claro, da agropecuária. É isso?

Engenheiro: Sim, claro. Temos que privilegiar as indústrias de ponta. Não as indústrias tradicionais. 

Economista: Ah. Acho que agora eu entendi. Para que apoiar a indústria tradicional se podemos fabricar máquinas modernas? O que importa é ampliar a produtividade! Não é mesmo?… Só uma dúvida final. Com o perdão da ignorância. Eu tenho muita dificuldade para entender inovação industrial. Sem a agropecuária e as indústrias que tu chamas de “tradicionais”, para quem venderíamos as máquinas modernas? Para o Japão?  


*Doutor em economia e professor do mestrado em desenvolvimento da Faccat (Faculdades Integradas de Taquara).

Imagem em Pixabay.

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