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Opinião

Matriz de Patrimônio Financeiro e Fluxos de Fundos

Matriz de Patrimônio Financeiro e Fluxos de Fundos

Artigo por RED
14/07/2023 05:30 • Atualizado em 16/07/2023 00:11
Matriz de Patrimônio Financeiro e Fluxos de Fundos

De FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

A realidade inverte a aparente relação de causa e efeito apontada pelo monetarismo ilusório: salários e preços, de acordo com o nível de emprego e produção, são determinantes da quantidade de dinheiro na economia – e esta não é causa de inflação. O dinheiro de banco é demandado em relação aos salários e preços a serem pagos.

Na verdade, o dinheiro bancário só existe sob forma de partidas dobradas nas escrituras dos bancos. Por essa moeda ser escritural, não pode ser fornecida independentemente da demanda por ela. Quando criada, existe na forma de ativo e/ou de passivo para o público, composto tanto por titulares de depósitos quanto por tomadores de crédito.

Historicamente, o dinheiro nunca foi apenas um meio de pagamento, através de uma moeda-mercadoria usada para facilitar as trocas, pois sempre foi uma unidade de conta, usada para calcular dívidas decorrentes da criação de propriedade privada de bens. Por extensão, moeda de crédito é uma dívida usada para liquidar compras ou outras dívidas.

O fato de a oferta de moeda bancária ser endógena (criada no mercado) é questionado pelo desconhecimento da prática contábil dos bancos. Muitos leigos pressupõem o sistema bancário operar apenas sob regras impostas a ele pela Autoridade Monetária.

O dinheiro de crédito financia gastos deficitários de consumidores e empresas. O dinheiro criado os permite gastarem mais além do recebido de renda via salário, lucro, juros e aluguel.

Os vendedores são simultaneamente creditados com o dinheiro ganho e debitados com ele. O mesmo dinheiro (fluxo de renda) é “gasto” por meio de ordens de transferências ou “poupado” em ativos financeiros, inclusive depósitos bancários. Ninguém pode poupar sem adquirir um ativo, seja dinheiro, seja títulos de dívida.

É necessário romper com a noção de dinheiro restrito a um estoque e considerar os fluxos monetários separadamente dos ativos financeiros como os depósitos bancários realmente são. Ordem de pagamento atendida por um banco define um fluxo circular de dinheiro, sendo o banco, assim como o pagador e o recebedor, simultaneamente creditado e debitado com uma determinada quantidade de unidades monetárias.

Os pagamentos resultam na formação de ativos e passivos. Vinculam vendedores e compradores por meio dos bancos. Os vendedores concedem crédito aos compradores. Estes podem, assim, adiar suas próprias vendas de mercadorias ou força de trabalho.

No sentido estrito, o dinheiro escritural compreende sobretudo unidades de conta. Com elas os bancos debitam e creditam simultaneamente suas contas.

Uma Matriz de Patrimônio Financeiro (MPF), também conhecida como Matriz de Balanço Patrimonial, é uma representação contábil útil para uma abordagem macrossistêmica financeira. Mostra a posição financeira, seja de uma entidade, seja do sistema, em um determinado momento.

Essa matriz é composta por ativos, passivos e o patrimônio líquido da entidade. Os ativos representam os recursos controlados pela entidade, como dinheiro, investimentos, propriedades etc. Os passivos são as obrigações financeiras da entidade, como dívidas, contas a pagar, empréstimos etc. O patrimônio líquido é a diferença entre os ativos e os passivos e representa o valor líquido da entidade.

A Matriz de Fluxo de Fundos (MFF), por sua vez, é uma ferramenta financeira com registros das entradas e saídas de fundos de uma entidade ou uma economia durante um determinado período. Ela rastreia e categoriza as origens e os usos de fundos, permitindo uma análise detalhada dos fluxos financeiros.

Normalmente, é dividida em categorias, como fluxo de caixa operacional (receitas e despesas operacionais), fluxo de caixa de investimento (compra e venda de ativos de longo prazo) e fluxo de caixa de financiamento (captação e pagamento de recursos financeiros).

A diferença entre uma e outra é a MPF representar a posição financeira estática de uma entidade, em um determinado momento, geralmente, no fim de um período contábil ou ano fiscal. Já a MFF mostra a dinâmica dos fluxos financeiros ao longo de um período específico.

A MPF é amplamente utilizada para avaliar a solidez financeira de uma entidade, fornecer informações sobre sua estrutura de capital e capacidade de pagamento de dívidas. A MFF é útil para analisar a origem e o uso de fundos em uma entidade, avaliar a geração de caixa e a capacidade de financiar suas atividades operacionais, de investimento e de financiamento.

Há décadas o IBGE e o Banco Central do Brasil buscam montar uma MFF. Fiz uma visita ao Banco Central com essa proposta, em 1985, antes de sair do IBGE para fazer o doutorado. Márcio Silva de Araújo, em Matriz de Fluxo de Fundos: Definição e Harmonização das Contas Financeiras (DF: NT n. 4, nov 2001), mostrou esse desafio.

O conjunto das operações financeiras representadas em uma Tabela de Operações Financeiras (TOF) se associaria a contas no lado real da economia. Refletiriam a produção de bens e serviços e a distribuição e utilização da renda, através do saldo da conta de capital, para cada setor institucional.

A consistência entre fluxos e estoques se estabeleceria com essa integração e tornaria a MFF uma fonte de estatística superior às demais conhecidas. Por seu intermédio, poder-se-ia analisar de qual modo a criação da moeda se canaliza pelo sistema financeiro, e como se dá a adaptação da oferta à demanda de capitais.

Além da finalidade básica de fornecer informações para a elaboração do Sistema de Contas Nacionais, Araújo (2001) destacou dentre o conjunto de aplicações os seguintes usos: fonte de dados; obtenção de coeficientes técnicos fixos; projeções de curto prazo para fluxos financeiros; uso para planejamento de médio e longo prazo da economia; instrumento de análise para a Autoridade Monetária.

Como fonte geradora de dados, a MFF permitiria melhor visibilidade da estrutura do mercado financeiro, bem como suas relações com os demais setores da economia. Além disso, sua construção, por necessitar informação básica em maior detalhe das transações financeiras ocorridas no sistema econômico, exigiria maior refinamento e qualidade em sua obtenção, contribuindo assim para o aprimoramento das estatísticas de base em geral, e das estatísticas financeiras, em particular.

Afinal, as Contas Financeiras estão sendo divulgadas em conjunto com o Sistema de Contas Nacionais com variações trimestrais de ativos e passivos nas seguintes aplicações: ouro monetário e DES; numerário e depósitos; títulos de dívidas de curto prazo e de longo prazo; empréstimos de curto prazo e longo prazo; participações de capital e em fundos de investimentos; planos de seguros, de previdência e regime de garantias padronizadas; derivativos financeiros; outras contas a receber/pagar como créditos comerciais e adiantamentos; outro. Ainda não vi nenhuma análise acadêmica ou de especialistas do mercado financeiro a respeito delas.

O Banco Central do Brasil passou a divulgar trimestralmente, a partir de outubro de 2022, as estatísticas da MPF. Apresenta os estoques de ativos e passivos financeiros de todos os setores institucionais do país, além do resto do mundo, com abertura por contraparte e instrumento financeiro.

A MPF constitui importante instrumento para o conhecimento da estrutura financeira da economia brasileira, das inter-relações entre setores institucionais, além de contribuir para a análise de conjuntura, previsão e planejamento macroeconômicos. Torna possível calcular a covariância (ou não) entre o estoque de Patrimônio Financeiro Bruto e o fluxo do PIB do país.

Avaliando as estatísticas na perspectiva bidimensional da MPF (quem financia quem), ela informa o setor institucional composto por sociedades não financeiras ser financiado por todos os demais setores. Destaca‑se o resto do mundo, expandindo seus investimentos em ações proprietárias e empréstimos a essas empresas, assim como as famílias possuem de ações e títulos de dívida direta como debêntures.

Ao consolidar a diferença entre os ativos e os passivos financeiros foram revelados os setores institucionais liquidamente emprestadores da economia brasileira de dezembro de 2018 a junho de 2022. Eram as famílias (de 72% a 76% do total concedido) e o resto do mundo (de 28% a 24%). Em contrapartida, os setores liquidamente tomadores eram as sociedades não financeiras (cerca de 62%) e o governo (cerca de 38%).

O sistema financeiro apresentava suas sociedades financeiras com posição consolidada quase equilibrada (diferença entre ativos e passivos com resíduo próximo de zero), devido à sua função de intermediação de recursos. Afinal, todos os setores institucionais interagem através dos subsistemas de financiamento, gestão de dinheiro e pagamentos.

Os analistas necessitam incorporar estes instrumentos de análise. Ainda é um desafio.


*Professor Titular do Instituto de Economia da UNICAMP. Ex vice-presidente da Caixa Econômica Federal (2003-2007).

Imagem em Pixabay.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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