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Opinião

Brasil: do iberismo ao americanismo

Brasil: do iberismo ao americanismo

Artigo por RED
21/09/2022 00:09 • Atualizado em 02/10/2022 01:05
Brasil: do iberismo ao americanismo

De ENNO DAGOBERTO LIEDKE FILHO*

Sérgio Buarque de Holanda – Uma Visão do Paraíso 2 .

A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade,
nisto que uma e outra nascem do coração.
Sérgio Buarque de Holanda

Se você leitor fez o teste em anexo sobre os candidato(as) na Eleição de Outubro, certamente já percebeu a atualidade da obra Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, cujos setenta/ oitenta anos de publicação foram comemorados, com releituras, seminários e debates. Desta obra, a noção de cordialidade típica do brasileiro, proposta por Sérgio Buarque de Holanda, foi a idéia que, adquirindo vida própria e notoriedade, tem se prestado a múltiplas e, por vezes, profundamente equivocadas, interpretações. Este artigo assume que essa noção só é passível de pleno entendimento se compreendida no contexto da grande transição histórica incompleta, então, na década de trinta do século passado, segundo o autor , que a sociedade brasileira vivenciava; transição desde uma dominância plena do iberismo para uma dominância crescente e desejada do americanismo, o qual, “brincando” como título do outra obra do autor, poderíamos classificar como uma Visão muito particular do Paraíso possível nesta Terra-Pátria. As noções de iberismo e de americanismo possuem, como será visto a seguir, um sentido extremamente próprio, particular e inovador na obra de Sérgio Buarque de Holanda, distinguindo- se das noções correntes que tendem a conceber, positivamente a primeira, enquanto “herança ibero-lusitana”, e negativamente a segunda, colando-a ao american way of life e à ideologia expansionista-predatória do Império Americano.

Sem procurar realizar neste texto uma revisão, capítulo por capítulo, dos temas tratados, das conceituações sugeridas e dos insights interpretativos, cabe indicar alguns pontos que podem vir a orientar a (re)leitura desse clássico do pensamento social brasileiro. Consideramos que a relevância e a fragilidade das contribuições histórico-teóricas e políticas de Raízes do Brasil emergem das inovações e ambigüidades conceituais do tratamento da problemática articuladora dessa obra – a reconstrução da história social brasileira desde suas origens ibéricas para apreender o sentido e as insuficiências da grande revolução brasileira, compreendida como democratização da sociedade, da cultura e da política nacional. A hipótese que sugerimos é de que essas inovações e ambigüidades se dão pela utilização, sem contudo ocorrer a explicitação plena, de dois tipos ideais (no sentido metodológico weberiano), polares, de éthos sócio-cultural e político – iberismo e americanismo – que imantam o conjunto da obra, articulando o seu argumento.

Nos primeiros cinco capítulos, o autor busca, sob a forma de um rico painel-mural, apreender a formação histórica das características básicas do iberismo no Brasil, em um processo em que, em um Mundo Novo, uma Velha Civilização foi implantada, mais pelo aventureiro do que pelo trabalhador. O iberismo caracteriza-se por culto à personalidade, falta de hierarquia, ausência de espírito de organização espontânea, ânsia de prosperidade sem custo, concepção da inteligência como ornamento e prenda, bem como por cordialidade e individualismo. Distingue-se a América Portuguesa da América Espanhola, por ser aquela uma “civilização de raízes rurais” centrada em uma “exploração litorânea”, e ter cuidado “menos em construir, planejar ou plantar alicerces, do que em feitorizar uma riqueza fácil e quase ao alcance da mão”; enquanto essa se caracterizou pelo que faltou à colonização portuguesa: “por uma aplicação insistente em assegurar o predomínio militar, econômico e político da metrópole sobre as terras conquistadas, mediante a criação de grandes núcleos de povoação, estáveis e ordenado”. Esse contraste tem sua expressão nos tipos sociais polares o semeador e o ladrilhador.

Nos capítulos 6 e 7, Sérgio Buarque de Holanda realiza, de forma esquemática, um balanço da grande transição que então se configurava na sociedade brasileira e das perspectivas sócio- culturais e políticas de dominância do americanismo – no limite, de uma sociedade moderna, racional e democrática – em um contexto marcado pelo personalismo, pelo caudilhismo e, então, pela presença das opções fascista e comunista. Enquanto o oposto do iberismo, o americanismo tem a sua noção sugerida, en passant, no Capítulo 7 Nossa Revolução , sendo suas principais características: a sociabilidade; existência de hierarquia ainda que com mobilidade; o espírito espontâneo de organização, combinado com quietismo e ordenação; o espírito de sacrifício na busca de prosperidade associado ao trabalho; uma concepção de inteligência como recurso instrumental; e o predomínio da neutralidade afetiva e do comunitarismo.

Do conjunto de características dos dois tipos polares, nenhuma mereceu destaque maior do que a sugerida cordialidade típica do iberismo, particularmente em sua forma brasileira. O homem cordial, expressão tomada de empréstimo do escritor Ribeiro Couto (1898-1963), refere-se, segundo Sérgio Buarque, à “lanheza no trato, à hospitalidade, à generosidade”, que representam “um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal”.

Em longa nota ao capítulo sobre o Homem Cordial, Sérgio Buarque reafirma que, diferenciando-se da noção apologética sugerida por Cassiano Ricardo de “bondade” ou “homem bom”, a noção de cordialidade sendo “estranha, por um lado, a todo formalismo e convencionalismo social, não abrange, por outro lado, apenas e obrigatoriamente, sentimentos positivos e de concórdia. A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem assim, da esfera do íntimo, do familiar, do privado.” Trata-se de ter presente que elas “pertencem, efetivamente, para recorrer a um termo consagrado pela moderna sociologia, ao domínio dos ‘grupos primários’, cuja unidade, segundo observa o próprio elaborador do conceito [Charles Cooley] ‘não é somente de harmonia e amor'”. Consideramos que um aspecto relevante da noção de cordialidade tem escapado à crítica, dificultando o entendimento da obra de Sérgio Buarque: o seu parentesco com, ou a possível influência do conceito weberiano de ação afetiva, a qual é “especialmente emotiva, determinada por emoções e estados sentimentais atuais”.

Referindo-se ao sentido do cataclisma vivenciado, então, pela sociedade brasileira, sugere que este parece ser “o aniquilamento das raízes ibéricas de nossa cultura para a inauguração de um estilo novo, que crismamos talvez ilusoriamente de americano, porque seus traços se acentuam com maior rapidez em nosso hemisfério”. Destacando que no Brasil iberismo e agrarismo se confundem, argumenta o autor que “se a forma de nossa cultura ainda permanece largamente ibérica e lusitana, deve atribuir-se tal fato sobretudo às insuficiências do ‘americanismo’, que se resume até agora, em grande parte, numa sorte de exarcebamento de manifestações estranhas, de decisões impostas de fora, exteriores à terra. O americano ainda é interiormente inexistente”.

Podemos sugerir que, para dar conta das transformações ocorridas nestes últimos oitenta anos e da situação vivida hoje pela sociedade nacional, este argumento e a tensão histórica entre iberismo e americanismo talvez possam ser relidas à luz dos conceitos de revolução passiva e de transformismo propostos por Antonio Gramsci, o que permite compreender plenamente a atualidade da conclusão do autor de que “a democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal- entendido”.

Quando da elaboração de Raízes do Brasil, isso ocorria porque “uma aristocracia rural e semifeudal importou-a (a democracia, N. A.) e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos e privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas.” Hoje, vive-se em nosso país, uma situação de democracia inconclusa, em que a dominação liberal-conservadora, “temperada”pelo iberismo e sua “cordialidade” típica, subordinada aos interesses financeiros internacionais, adquiriu traços proto- fascistas e é potencializada pelo transformismo o qual se caracteriza pelas tentativa de apropriação, pelas classes dominantes, das bandeiras históricas das classes subalternas, e de cooptação de suas lideranças mais significativas , tendo como seu contraponto uma sociedade civil amorfa, em que predomina a luta individualizada pela sobrevivência diária.

A grandeza e o otimismo parcimonioso de Raízes do Brasil se revelam quando, frente à transição inconclusa desde a dominância plena do iberismo para a desejada dominância do americanismo, Sérgio Buarque de Holanda explicita uma Visão do Paraíso possível em Nossa Terra- Pátria, declarando que o Brasil necessita de uma “revolução vertical”, que seja capaz de trazer “à tona elementos mais vigorosos, destruindo para sempre os velhos e incapazes”. Em outras palavras, somente quando, a médio e longo prazo, vencida a antítese liberalismo-caudilhismo, quando liquidados os fundamentos personalistas e aristocráticos e superada a dominância da cordialidade atávica, “teremos finalmente revogada a velha ordem colonial e patriarcal, com todas as conseqüências morais, sociais e políticas que ela acarretou e continua a acarretar”.

*Professor de Sociologia aposentado da UFRGS.

Imagem em Pixabay.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

 

Teste anexo citado pelo autor:

O presente teste é uma “atualização” do Teste Eleitoral referente à Eleição de 2006, publicado no Jornal da
Universidade/UFRGS, em novembro de 2006.

Este teste foi elaborado a partir das ideias de Sérgio Buarque de Holanda para ajudá-lo a entender quem são
realmente os(as) candidatos(as) na Eleição de Outubro. Parte-se da certeza – como cidadãos de bem que
somos – de que a Justiça Eleitoral eliminou(ará) das listas eleitorais os corruptos e todos os tipos de
delinqüentes, identificados e processados, por isso o teste só trata das idéias e ações políticas dos(as)
candidato(as).

Como fazer:

1) Selecione um candidato(a) da eleição 2022 e verifique se prega/defende/valoriza itens do Iberismo ou do
Americanismo. Some os pontos: _____.
2) Como “pregar não é necessariamente agir/fazer” , verifique se o(a) eleito(a) age conforme itens do
Iberismo ou do Americanismo. Some os pontos: ______.
3) Some os pontos obtidos em 1) e 2), divida por 2,e veja "qual é", realmente, a postura política do
candidato(a) eleito(a) .

Resultados:

0 1,5 Pontos – O Iberista. Para ter certeza de que o(a) candidato(a) é realmente o que parece ser, verifique
se ele/ela é, ou gostaria de ser latifundiário(a), coronelista, elitista, machista e racista.
2 4 Pontos – O Ibero-Americanista. Tipo híbrido, que alguns pensam ser transitório, mas que se revela como
uma permanência “camaleônica” secular na Política Nacional, com risco de sofrer endemicamente de
“cordialismo” e de estar sempre “aberto” a algum tipo de “fisiologismo” ativo ou passivo.
4,5 6 Pontos – O Americanista. Para ter certeza de que o(a) candidato(a) é realmente o que parece ser,
refaça o teste, incluindo os seus principais amigos e aliados.

O quadro:

 

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