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Opinião

Nas Olimpíadas da exclusão, só Sócrates nos salva!

Nas Olimpíadas da exclusão, só Sócrates nos salva!

Artigo por RED
11/04/2024 05:30 • Atualizado em 14/04/2024 00:31
Nas Olimpíadas da exclusão, só Sócrates nos salva!

Por SÍLVIA CAPANEMA*, de Paris

Não é novidade o fato de que os jogos olímpicos de Paris têm se tornado, para os moradores da cidade e de suas diversas periferias, um evento bastante impopular. Obras intermináveis e atrasadas, poucas estruturas novas, úteis e duráveis para a população, aumento dos preços da moradia – que já são absurdos -, inflação,  encarecimento dos transportes e verdadeira sensação de “salve-se quem puder”. Nesse sentido, o jornal 20 minutes, diário de distribuição gratuita no metrô de Paris, publicou recentemente um artigo irônico mas bastante revelador: “Especialista em sobrevivência explica aos parisienses como sobreviver durante as duas semanas dos jogos olímpicos” (edição de 20 de março de 2024). Poucos são os parisienses e banlieusards (moradores da periferia) que terão condição de pagar o preço exorbitante dos ingressos para as olimpíadas, os transportes vão estar lotados e até interditados para os moradores, a sensação de exclusão é imensa. Ainda pode ser que as coisas mudem, mas o evento até agora não empolga ninguém, muito menos as classes populares. 

No marasmo e desgosto geral sobre o tema, um momento pelo menos conseguiu mudar o placar: a inauguração da Rue Docteur Socrates, no coração da Vila Olímpica situada na cidade de Saint-Ouen, município de mais de 50 mil habitantes na periferia norte de Paris. O evento, no dia 30 de março passado, surgiu como um intervalo de festa e de conscientização política, em presença do irmão do jogador Sócrates, o ídolo Raí, que se tornou herói local depois de vestir a camisa do Paris Saint-Germain nos anos 1990. O prefeito de Saint-Ouen, Karim Bouamrane, emocionou os presentes com seu discurso trazendo lembranças de infância que idolatravam Sócrates na seleção de 1982, lembrando a luta do movimento da “democracia corinthiana” e as ameaças ainda recentes a todas as democracias e ao projeto de “igualdade, liberdade e fraternidade” com e emergência das extremas direitas pelo mundo. Filho de imigrantes argelinos, Karim lembrou ainda a sua infância nas moradias sociais da periferia francesa, que eram, segundo ele, não muito diferentes das favelas brasileiras. Claro que a vila olímpica está longe de ser uma solução para a crise da moradia, com um M₂ caríssimo e apenas pouco mais de 15% dos apartamentos destinados a se tornarem « moradia social » de qualidade, mas pelo menos a mensagem passada foi forte, legítima, as intenções são positivas. 

No palco, também estavam presentes Marcelo Freixo, presidente da Embratur, o tetracampeão Raí, o presidente do Comitê Olímpico Brasileiro, Paulo Teixeira e o embaixador do Brasil na França, Ricardo Neiva Tavares. Uma exceção à hegemonia masculina (futebol não é mesmo um espaço onde a paridade de gênero vigora), foi a presença da ministra dos esportes Amélie Oudéa-Castéra. Ela, que é muito contestada pelos movimentos sociais e sindicatos na França, com passagem relâmpago no ministério da educação por privilegiar as escolas particulares de elite, lembrou a bela amizade do presidente Lula e de Macron em visita recente ao Brasil. Podemos evocar aqui rapidamente Roland Barthes, em sua obra clássica Fragmentos de um discurso amoroso, já que sabemos que somente amar não basta, é preciso sempre “produzir provas de amor”, tal qual a mensagem passada pelo recente ensaio fotográfico Lula-Macron no Brasil. 

O filho de Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira, Gustavo Vieira, também estava presente, bem como o ator Antônio Pitanga, homenageado do festival de cinema brasileiro da associação Jangada que acontecia no mesmo período em Paris.

Mas o bonito mesmo da festa foi a presença de dois representantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, o Joba e a Neidinha (como são conhecidos no movimento), que vieram para o evento convidados por Raí. No meio do público e dos habitantes, abriram uma bandeira vermelha de 4,5M X 5M, com uma imagem de Sócrates contornada pela identificação do “Campo de Sócrates Brasileiro, Escola Nacional Florestan Fernandes” e, abaixo, uma frase do jogador traduzida para o francês: “Ganhar ou perder, mas sempre com democracia”. A bandeira gigante, carregada por alguns representantes da comunidade brasileira na França, por franceses e por membros de uma delegação das cidades de Jenin e de Tulkarem na Palestina, foi uma das mais marcantes presenças no evento, embora as mídias brasileiras pouco ou quase nada tenham mencionado sobre ela. Ali, atrás do estandarte, estavam representadas as camadas populares brasileiras, bem como grande parte da luta que consolidou, sem dúvida alguma, Sócrates como uma figura de reconhecimento internacional até os dias de hoje.

Outra beleza, vista de longe e até dos bairros de Paris, foi o painel da artista RafaMon, com Sócrates Brasileiro (este é o nome composto dele), com camisa da seleção brasileira e de punho levantado, portando uma coroa de flores coloridas, trazendo, na cabeça, uma faixa onde se lê égalité, ao lado dos outros dois termos do emblema francês: liberté e fraternité. O painel, com um texto mesclando francês e português, dá boas vindas à cidade de Saint-Ouen, e está fixado em cima de um prédio alto, parte dos conjuntos habitacionais sociais da França construídos massivamente nos anos 1960 e 1970 nas periferias como meio de abrigar os grandes contingentes de trabalhadores nacionais e imigrantes. Belíssima obra de arte no espaço público.

O prefeito Karim Bouamarane, fã de esporte e de futebol, marcou um golaço com a escolha do nome da rua, que diz ser a primeira a portar o nome do jogador no mundo. Na verdade, há outra via Doutor Sócrates em Ribeirão Preto, inaugurada em fevereiro, o que também é um reconhecimento ao brilhantismo e engajamento coletivo do atleta “doutor”, que se formou em medicina depois de deixar os campos. Infelizmente, Sócrates não está mais vivo, e até Raí já se aposentou do futebol, embora continue atuando majestuosamente com a sua associação “Gol de Letra”. 

Nós, francesas, franceses, brasileiras e brasileiros na França, que lutamos pela Rue Marielle Franco e obtivemos o Jardin Marielle Franco inaugurado em Paris em 2019, não podemos esquecer que o futebol mundial e brasileiro em particular ainda é um campo frequentado pelo machismo, a homofobia, o autoritarismo, a violência contra a mulher, o sexismo, o racismo, a xenofobia e a intolerância, onde jogam “estrelas” atuais como Neymar e, até há pouco tempo, Daniel Alves e outros. Ainda será preciso trocar muitas placas de ruas e nomes de espaços públicos, substituir muitos “craques”, para lembrar que é no chão – e não nos palcos – onde estão o MST e o povo empobrecido, sem recursos, direitos, por vezes aniquilado e oprimido. É para lá que deviam projetar os holofotes das comunicações, em tempos olímpicos, de guerra ou de paz. 


*Historiadora, professora na Université Sorbonne Paris Nord e parlamentar no Departamento de Seine-Saint-Denis, na periferia de Paris.

Fotos: Arquivo pessoal da autora.

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