VOCÊ DECIDE! Quem não quer o conforto de um motorista 24 horas por dia à disposição!

Por LUIZ ALBERTO DE VARGAS*

Há muitos anos, grande sucesso fazia um programa de TV chamado “Você decide”, comandado por Pedro Bial que, causando grande furor, inaugurava a era das enquetes interativas, formato que se tornou recorrente na televisão brasileira. Seria o precursor do BBB e no “No moral”, ambos, aliás, conduzidos pelo mesmo Pedro Bial.

Após uma dramatização de um caso real, o público respondia por meio do telefone uma pergunta que, em geral, encerrava um dilema moral. As questões apresentadas, muitas vezes dilacerantes (aborto, incesto, roubo, traição) e os resultados eram, muitas vezes, surpreendentes. As respostas, talvez, não contribuíssem muito para a resolução dos problemas morais, mas seguramente diziam muito a respeito do público que respondia as enquetes.

Assim, tinha o inegável mérito de mostrar um pouco do que, de fato, somos (ou éramos) o que, efetivamente, acreditávamos.

Outro dia, lendo uma pesquisa em que motoristas de aplicativos respondiam que não queriam ter vínculo empregatício, lembrei-me do velho “Você Decide!”.  Por que trabalhadores que, de um ponto de vista jurídico-trabalhista, teria todas as vantagens de ter reconhecida sua vinculação laboral com as empresas de aplicativo parecem preferir a condição “empreendedores autônomos”, quando isso, na prática, implica uma completa desproteção laboral e previdenciária e a remoção das travas jurídicas a uma feroz exploração do trabalho?

Talvez a resposta diga menos a respeito dos motoristas de aplicativo – e diga mais a respeito de nós mesmos.

Pois, se fizéssemos uma pesquisa mais ampla, não apenas entre motoristas de aplicativo, mas de todos que se beneficiam desse tipo de transporte, quase certamente a aprovação desse tipo de trabalho “colaborativo-espoliativo” seria um estrondoso sucesso, confirmando a propaganda das grandes empresas que monopolizam esse tipo de transporte de que este seria um “irretrocedível” avanço na área do transporte de pessoas, algo que confirmaria a desnecessidade de limitações regulatórias que “reduzissem sua eficiência”. Parece que a população está realmente disposta a pagar menos por serviços de transporte, mesmo que isso implique fechar os olhos quanto às reais condições de trabalho dos motoristas de aplicativo.

Já se fizéssemos a pergunta “Quanto você está disposto a pagar menos” e, principalmente, “você tem real conhecimento das consequências desse desconto no pagamento das corridas?”, talvez as respostas fossem mais diversificadas.

Sem querer chatear o leitor com conceitos complicados, como o da “externalização dos custos laborais”, é preciso realizar uma reflexão mais cuidadosa a respeito do preço que deveria ser pago pelo consumidor para viabilizar um motorista profissionalizado, disponível 24 horas sete dias na semana, com carro com boa apresentação.

Não é preciso recorrer a Marx (basta Adam Smith!) para lembrar ser o trabalho a fonte da valorização do capital e, assim, que é exatamente a superexploração do trabalho que viabiliza o lucro das empresas de transporte permitindo que o preço do transporte por aplicativo seja tão competitivo em relação a formas tradicionais de transporte de passageiros como os táxis, as lotações e, mesmo, os ônibus municipais e da região metropolitana.

Não apenas o enorme custo econômico e social representado pelo sucateamento dessas formas tradicionais de transporte, com o desemprego de milhares de trabalhadores, deve ser contabilizado.

Além desse, teríamos de acrescer os seguintes “custos” que não aparecem no cálculo apressado das vantagens desse tipo de transporte desregulado:

– custos de acidente de trabalho envolvendo motoristas não-cobertos por qualquer seguro social – já que esses trabalhadores  são “autônomos” e responsáveis por recolhimentos – que não estão calculados no valor pago pelas empresas de aplicativo;

– custos de assistência social (Benefícios de Prestação Continuada) que a sociedade inevitavelmente se obrigará a pagar na velhice e na doença desses trabalhadores sem cobertura previdenciária;

– custos decorrentes do risco de acidentes de trânsito que, infelizmente, tenderão a ocorrer em maior número e gravidade por conta de trabalhadores exauridos por terem de trabalhar em condições cada vez mais adversas, já que, sem cobertura sindical eficaz que assegure uma negociação coletiva suficiente, haverá uma tendência de retribuição menor pelo trabalho desenvolvido;

– custos decorrentes de acidentes com terceiros, já que, seguindo a tendência desregulatória e de não-responsabilização das empresas pelos seguros com acidentes de trânsito, é provável que os veículos tornem-se cada vez mais inseguros, já que a retribuição paga pelas empresas, hoje, não cobre os custos de manutenção dos carros, muito menos com seguros que tem de ser suportado pelos próprios motoristas;

– custos ampliados por conta de obras viárias e de infraestrutura urbana decorrentes de significativo aumento do já caótico trânsito das grandes cidades, que tendem a se agravar com a persistência de um superado transporte individualista em detrimento de um transporte público de qualidade;

– custos energéticos por conta utilização de veículos movidos a derivados de petróleo em detrimento de outras formas de transporte mais racionais que utilizem formas de energia ecologicamente mais adequadas, como podem ser o transporte ferroviário, aquático ou, mesmo, elétrico;

– custos que recairão sobre os cidadãos em geral que, pelo aumento dos engarrafamentos que já inviabilizam o transporte nos horários de pico nas grandes cidades (veja-se o rodízio em São Paulo), causando prejuízo irreparável em suas atividades diárias, com repercussão incalculável na economia em geral.

Isso, certamente, sem considerar que, a partir do momento em que os transportes por aplicativo se consolidem como um monopólio, excluindo definitivamente outros tipos de transporte urbano, é provável (como acontece com todos os monopólios) que o preço ao consumidor suba significativamente e seja direcionado, na sua maior parte, para ampliação do lucro das empresas.

Ou seja, talvez todas as vantagens econômicas que, o consumidor de hoje tem com o preço relativamente barato do transporte por aplicativo tenha de ser pago pelo consumidor e pelo cidadão de amanhã com juros (de Banco Central do Brasil!) e com a inevitável deterioração dos serviços públicos.

Agora, sim: a partir dessas premissas ocultas, Você Decide!

Como antes, a resposta provavelmente será menos importante para solução de nossos dilemas morais, mas mostrará um pouco mais o que realmente somos e o que queremos como nosso futuro.

*Luiz Alberto de Vargas é Desembargador do Trabalho e membro da Associação de Juízes e Juízes para a Democracia

Foto: Reprodução/Web

Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaositered@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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