Sobre a chamada “crise da democracia”

De TARSON NÚÑEZ*

Nesta semana o pensador norte-americano Michael Sandel, professor de Harvard, proferiu palestras em São Paulo e em Porto Alegre debatendo “o descontentamento com a democracia”. Este tema vem se tornando recorrente nos debates contemporâneos do mundo ocidental, tanto na mídia como entre os cientistas sociais. Nos últimos dez, quinze anos, há uma intensa produção de pensadores que vem se dedicando a analisar o desgaste das instituições, a intensa polarização política, e o repúdio crescente dos cidadãos em relação à política convencional. A constatação de que os sistemas políticos tradicionais do mundo ocidental estão em uma crise profunda já pode ser considerada consensual entre todos os estudiosos deste campo do conhecimento.

No entanto, um olhar mais cuidadoso sobre este tema pode mostrar um quadro distinto. Se analisarmos esta crise de maneira mais profunda, menos influenciada pelo senso comum, é possível constatar que este tema comporta uma abordagem diferente. Não se trata de negar a existência de uma crise de legitimidade do sistema político como um todo, mas de identificar corretamente o que é que está em crise. Esta é a única forma de caminhar no sentido de construir soluções, uma vez que a única forma de conseguir uma resposta correta para um problema é a de fazer as perguntas certas.

No caso da crise em questão o problema central é o de identificar o que é mesmo que está em questão. E as respostas até agora, que são insatisfatórias, decorrem do fato de que se estabelece uma relação direta e unívoca entre o sistema liberal representativo e a democracia. A visão hegemônica nos países ocidentais resume a democracia a um conjunto de liberdades e direitos e de procedimentos formais, entre os quais se destaca o de realização periódica de eleições para definir quem vai exercer o governo.

Mas democracia é mais do que uma forma de escolher governos. Democracia vai além de eleições. Democracia tem a ver com a possibilidade de que os cidadãos tenham voz ativa nas decisões dos aspectos da vida coletiva, o que vai muito além de escolher um governo a cada quatro anos. Charles Tilly, professor da Universidade de Columbia e um dos principais estudiosos do tema, desenvolveu uma abordagem muito adequada sobre o tema. Para ele democracia é um modelo político onde todos os envolvidos possam ter poder de decisão, de forma igualitária, sem correr riscos e temer ameaças dos poderosos e estabelecendo decisões que serão cumpridas por todos. Esta visão mais abrangente da democracia vai além da escolha de governos, se constituindo em um modelo de comportamento social que pode ser aplicado em todos os âmbitos da vida social. O que está em crise, portanto, não é a democracia. O que está em crise é este modelo minimalista de democracia, que resume democracia ao processo de escolha dos governantes.

Há uma outra forma de abordar esta questão, que comprova esta tese de que não há uma crise da democracia e sim uma crise do modelo liberal representativo. Se formos capazes de olhar de forma mais ampla para a democracia como processo de ampliação do direito dos cidadãos de participarem das decisões em todas as esferas da vida pública e privada, poderemos constatar que via de regra os cidadãos apoiam amplamente a democracia. Se pensarmos na democracia como uma ampliação dos espaços de participação e de decisão dos cidadãos em todos os âmbitos da vida pública, será fácil verificar que a maioria das pessoas prefere e apoia processos democráticos.

Em julho deste ano tive a oportunidade de participar de um encontro na Cidade do México que reuniu pesquisadores, ativistas e gestores do mundo inteiro que trabalham em projetos de democracia participativa. E o quadro que pude visualizar é a de que existe uma dinâmica de crescimento das experiências democráticas pelo mundo, com um aumento da participação cidadã e do interesse de governos por experiências de participação democrática. Isto mostra que a insatisfação dos cidadãos em relação aos seus governos não significa um desapreço pela democracia. Em todos os momentos nos quais os cidadãos encontram espaços democráticos de participação, o que se vê é uma adesão significativa e um forte engajamento.

Na Escócia, o governo nacional desenvolve uma intensa política de apoio a orçamentos participativos. Todos os recursos que o governo nacional aloca para os municípios precisam passar por processos de decisão nos quais os cidadãos são chamados a participar. Em Portugal, além de muitas cidades que implementam orçamentos participativos, todas as escolas do ensino médio recebem verbas adicionais do Ministério da Educação que são decididas com a participação direta de estudantes, pais e professores. No Peru e na Polônia os governos nacionais criaram leis determinando que todos os governos municipais realizem orçamentos participativos. Em Moçambique, na China, nos Estados Unidos, no Senegal e na Finlândia existem orçamentos participativos em muitas cidades e regiões. E estes exemplos são apenas alguns, entre muitos. O último mapeamento identificou mais de 11 mil iniciativas de Orçamentos Participativos em todos os continentes.

Esta expansão de experiências participativas pelo mundo não se resume a implantação de orçamentos participativos. No Quênia o governo estabeleceu mecanismos de participação dos cidadãos no legislativo, através dos quais os cidadãos interagem diretamente com os parlamentares nos processos decisórios. No Canadá e em vários países da Europa, os cidadãos têm sido convidados a participar das chamadas “Assembleias do Clima”, onde se discutem alternativas de políticas públicas para enfrentar a crise climática. A lista de experiências democratizantes pelo mundo afora é imensa, o que demonstra que pelo mundo inteiro existe interesse pela participação política, pela cidadania.

O que se pode perceber a partir de todos estes exemplos é de que não existe um desinteresse pela democracia, pelo contrário. Em todas as ocasiões em que se abrem espaços para a participação dos cidadãos e onde estes percebem que os processos funcionam e dão resultados, as pessoas se interessam, se envolvem e valorizam os espaços cívicos. O que está em crise é um modelo particular de democracia, que se limita à eleição periódica de governantes. Isto porque, entre outras coisas, escolher um governo não garante que os interesses dos eleitores sejam respeitados. O que se pode perceber é que o desgaste da política resulta das fragilidades da democracia liberal representativa, onde a participação política dos cidadãos se resume a votar de quatro em quatro anos.

A insatisfação dos cidadãos é menos contra o direito de escolher os seus representantes e mais contra o fato de que estes representantes, uma vez eleitos, tendem a responder mais aos seus financiadores de campanha do que aos seus eleitores. A insatisfação dos cidadãos não é contra o fato de eleger governos, mas sim contra o fato de que os governos eleitos atendem mais às demandas dos poderes econômicos do que as demandas dos cidadãos. E isto é muito perceptível para os cidadãos. Uma pesquisa realizada em 2021 pela Escola de Políticas Públicas da Universidade de Mariland mostra que 91% dos norte-americanos consideram que seu governo é dirigido para atender os interesses de pequenos grupos de privilegiados enquanto apenas 9% afirmam que o governo atua para atender todo o povo.

O sistema liberal representativo, onde o eleitor delega a políticos profissionais a condução das políticas públicas, é facilmente capturado pelo poder econômico. Os financiadores de campanhas, os grupos econômicos privilegiados, as máquinas eleitorais têm um poder desproporcional neste modelo. E os modelos de campanha, onde o marketing eleitoral é mais importante do que as ideias e as propostas dos candidatos, tende a induzir o eleitor a escolhas que muitas vezes não correspondem aos seus anseios. O sucesso em uma campanha eleitoral muitas vezes depende da capacidade de fazer propostas demagógicas do que de programas e propostas. E a possibilidade dos eleitores terem um controle efetivo sobre os políticos eleitos é virtualmente nula. É este sistema político facilmente corrompível que é rejeitado pelos cidadãos, e não a democracia em si.

A rejeição à política e aos políticos, portanto, não é uma rejeição à democracia. Pelo contrário ela deve ser considerada uma crítica dos cidadãos à falta de democracia. No mundo inteiro sempre que se abrem oportunidades de participação democrática a adesão dos cidadãos mostra justamente que as pessoas querem participar do processo democrático. Aqui no Brasil, entre março e julho, o processo de discussão e decisão das prioridades do governo federal no Plano Plurianual contou com uma participação significativa por parte da população. Mais de 50 mil pessoas participaram diretamente nas plenárias presenciais e mais de 1,5 milhão de pessoas votaram no processo de consulta on-line.

A tese de que há uma crise da democracia traz consigo uma hipótese fatalista e equivocada de que os cidadãos estariam se tornando antidemocráticos, passando a apoiar líderes populistas que se colocam como alternativas contra “tudo que está aí”. No entanto, os fatos mostram que sim, os cidadãos estão revoltados, mas sua revolta é plenamente justificável na medida em que o sistema liberal representativo de fato não vem garantindo a expressão da vontade dos cidadãos. Os cidadãos gostam da democracia, e sempre que podem, participam ativamente dos processos políticos. O que está em crise é o modelo liberal representativo de democracia.

A solução da chamada “crise da democracia”, portanto, passa por construir mais espaços de participação democrática. A sobrevivência da democracia depende de nossa capacidade de ir além dos limites da democracia liberal, de criar mais e mais espaços nos quais os cidadãos possam discutir e deliberar acerca das políticas públicas. Frente a um modelo que dá sinais cada vez mais evidentes de sua falência, é fundamental que sejamos capazes de gestar um modelo que permita ampliar e aprofundar a democracia.


*Doutor em Ciência Política e pesquisador do Observatório das Metrópoles.

Imagem em Pixabay.

Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaositered@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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