Santa Teresa de Ávila e o Porto de Arroio do Sal

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Por CARLOS ÁGUEDO PAIVA*

Mais lágrimas são vertidas pelas preces atendidas, do que pelas preces não atendidas.

Santa Teresa de Ávila, Livro da Vida.

Introdução

Santa Teresa de Ávila foi a primeira mulher consagrada como doutora da Igreja Católica. Esse protagonismo está muito longe de ser trivial: a concessão do título doutoral envolve estudos minuciosos dos textos publicados em vida; e o escrutínio de seus trabalhos foi particularmente exigente. Afinal, a despeito do papel central da Virgem Maria no panteão católico, as igrejas cristãs originais (Católica Romana, Ortodoxa Grega, Coopta Egípcia, dentre outras) vicejaram em um ambiente patriarcal e atribuíram às mulheres papéis subordinados e secundários em suas estruturas. A proeminência de Teresa de Ávila foi conquistada arduamente e se baseou em seus méritos intelectuais excepcionais.

Grande leitora e intérprete de Santo Agostinho, Teresa de Ávila desenvolveu uma concepção profundamente dialética do “desejo”, antecipando algumas das contribuições mais originais de Sigmund Freud e John Maynard Keynes. Segundo Teresa, uma das maiores ilusões humanas é a pretensão de que sejamos capazes de identificar claramente o que queremos e quais as nossas prioridades e objetivos na vida. E isso não apenas pelo fato – tão explorado por pensadores das mais diversas tradições teológicas e filosóficas –de que os desejos materiais – riqueza, poder, fama, sexo etc. – não são aplacáveis e não são capazes de trazer a paz e a tranquilidade que está na base da verdadeira felicidade. Esse é apenas o ponto de partida de Teresa. Ela vai muito além, apontando para a nossa dificuldade (e, no limite, incapacidade) para

  1. projetar todas as consequências da eventual realização de nossos desejos;
  2. compreender plenamente as razões, os determinantes centrais, dos nossos desejos, e o que eles contém de “compensação” de desejos mais profundos, irrealizáveis e/ou inconfessáveis.

O primeiro elemento está no centro da teoria keynesiana da incerteza e da inviabilidade de um cálculo rigoroso do retorno futuro de investimentos produtivos. O segundo elemento está no centro da teoria freudiana do desejo compensatório. Analisemos esses dois elementos e como eles se manifestam de forma particularmente notável no Projeto do Porto de Arroio do Sal.

O Fetiche do conhecimento empresarial

No plano ideológico, liberais e socialistas têm visões muito distintas da contribuição dos empresários à sociedade. Os liberais veem os empresários como agentes iluminados, portadores de um tirocínio e de uma força de vontade peculiar, que os leva a perceber oportunidades de ganho onde outros só veem riscos e incerteza. Já os socialistas tendem a subestimar a complexidade das funções empresariais e associam os seus ganhos à exploração de trabalhadores mal remunerados e à oferta de bens e serviços de qualidade duvidosa a preços aviltantes. No plano da ideologia, as duas leituras são incompatíveis. Mas, no plano estritamente lógico elas são irmãs siamesas: ambas atribuem aos empresários um conhecimento da realidade, um domínio sobre suas atividades e uma capacidade de calcular o benefício futuro de seus investimentos que, de tão precisos, seria preciso atribuir-lhes poderes divinos. Nos termos de Keynes, liberais e socialistas comungam do “fetiche do conhecimento empresarial”.

    Por oposição, a teoria do investimento de Keynes parte de dois princípios: 1) o investimento produtivo (por oposição ao meramente financeiro) envolve a construção de prédios, a aquisição de máquinas e a adoção de padrões técnicos que são “longevos” (que se preservam no tempo) e que apresentam baixíssima liquidez; 2) é impossível projetar com rigor a rentabilidade dessas imobilizações no prazo de sua vida útil, que varia entre dez e vinte anos. Por quê? Porque as variáveis que afetam a rentabilidade são múltiplas (no limite, são infinitas) e de grande complexidade, tais como: a taxa de câmbio futura (que define o preço de bens concorrentes oriundos do exterior); a velocidade e radicalidade das inovações técnico-produtivas (que pode levar à depressão radical do valor dos equipamentos adquiridos e, até, à necessidade de abandoná-los, sucateá-los); a emergência de substitutos de maior qualidade e menor preço; o custo futuro de insumos básico (petróleo, energia elétrica, aço etc.); o ingresso de novos produtores no mercado; mudanças radicais no sistema logístico capazes de deprimir fortemente os custos de transporte da mercadoria concorrentes produzida em outras regiões; depressão do mercado local ou nacional, em função da emergência de desemprego cíclico ou estrutural; etc. Por oposição, as aplicações financeiras oferecem uma rentabilidade potencial menor, mas são mais seguras. Seja como concessão de crédito (aquisição de títulos bancários, empréstimos a terceiros com a exigência de garantias etc.), seja pela aquisição imobiliária (que geram aluguéis e tendem a se valorizar no tempo).

    De acordo com Keynes, a incerteza é tamanha que a decisão de investimento produtivo sempre comporta uma dimensão de irracionalidade, de impulso, de “espírito animal”. Essa leitura é muito similar às leituras e Josef Schumpeter e Max Weber. A diferença sutil é que Weber vai associar esse comportamento não estritamente racional com a emergência histórica de um sistema cultural específico: a ética calvinista. E Schumpeter afirmará que os empresários buscam driblar a incerteza associando os investimentos produtivos com a conquista de vantagens competitivas associadas a inovações. Mas, ao contrário do que muitos pretendem, Schumpeter não diverge de Keynes e Weber. Para Schumpeter as inovações tendem a ser replicadas, contestadas e superadas e não alcança garantir a rentabilidade efetiva no médio e no longo prazo. Os empresários superestimam suas vantagens competitivas e seus ganhos prospectivos. E o fazem para driblar a ansiedade natural associada a uma aposta sobre o futuro incerto.

    Na verdade, todos os grandes teóricos do investimento produtivo afirmam o mesmo: as decisões de investir pressupõem que os empresários ocultem de si mesmos o grau de incerteza com o qual se deparam e abracem a ilusão de que contam com conhecimentos que, de fato, não têm e não poderiam ter. Pois, como diz o ditado popular: O futuro a Deus pertence.

    Mas a função empresarial é uma função social. De sorte que a autoilusão é condição necessária, mas insuficiente. Como regra geral, os investimentos produtivos pressupõe algum financiamento (bancário ou por associação) e apoio governamental. E a conquista de sócios, créditos e subsídios do governo pressupõe a socialização da “certeza ilusória”. Todos os envolvidos têm que ser convencidos de que irão comprometer seus recursos com empreendimento rentáveis. E “inúmeros cálculos” são produzidos com o objetivo de convencer a todos os envolvidos que os reis-empresários sabem exatamente o que fazem (e vestem).

    Todos os leitores conhecem a história da “roupa do rei pelado”, não é mesmo? Ela era invisível para os burros, mas era perfeitamente visível para os “doutos”. … Pois é! E o que não faltam são doutos vendo roupas no rei nu. A começar pelos doutos midiáticos.

    Em terra de rei nu, quem lê só um jornal vira cego

    Há aproximadamente um mês atrás, um grupo de moradores do Litoral Norte me convidou para participar de um debate sobre o projeto do Porto Meridional que deveria realizar na 23ª. Festa do Pescador de Arroio do Sal. Aceitei de bom grado. Mas, poucos dias depois, fui “desconvidado”: a mesa já estava definida e o meu nome fora recusado. Mais: os proponentes do meu nome foram informados que os sete painelistas já confirmados eram franco entusiastas do empreendimento e que o “debate” não previa falas oriundas do público. Ou seja: o assim chamado Fórum – Impactos do Porto Meridional não se voltará a debater o projeto do Porto. Será apenas um espaço de defesa, propaganda e doutrinação sobre as presumidas vantagens desse empreendimento.

    Decepcionada com o fracasso de sua iniciativa e chocada com sua própria ingenuidade, uma das articuladoras do meu nome, confidenciou: “Admiro o trabalho da jornalista Giane Guerra. Quando vi que ela seria a mediadora, acreditei que haveria debate. Qual a necessidade de ‘mediação’ numa mesa em que todos têm a mesma leitura e que o público não pode falar? Ela virou mera garota-propaganda do Porto!”

    Não acompanho o trabalho da jornalista-mediadora e não posso avaliar se sua decisão de participar desse “NÃO-debate” é contradiz sua postura profissional cotidiana. Sei que um dos princípios elementares do jornalismo é a exposição das distintas posições sobre temas complexos e polêmicos. Mas me surpreendeu a surpresa de minha interlocutora. Afinal, Giane Guerra não foi contratada como jornalista para esse “NÃO-debate”. Ela apenas emprestou sua imagem para promover o evento. E isso não significa, necessariamente, que ela apoie o projeto. Ninguém precisa ser fã de dobradinha para fazer propaganda de mondongo. Basta não ter uma posição de “princípios” contra seu consumo.

    Mas a principal razão de minha surpresa com a “confidência” da defensora do meu nome é outra: mesmo sem conhecer o trabalho de Giane Guerra, eu diria que as chances de ela ser favorável à instalação de um Porto em Arroio do Sal são de, no mínimo, 90%. Por quê? Porque não há categoria profissional mais propensa a ficar extasiada com a beleza das “roupas do rei pelado” do que a dos jornalistas. Explico-me.

    A profissão do jornalista é árdua. Ele trata de todos os assuntos que são de interesse público – de política a astrologia, passando por economia, futebol, artes, cultura, pandemia, aquecimento global, descobertas do telescópio James Webb, crimes, tráfico de drogas, corrupção pública e desfile de modas. E deve apresentar todos esses temas de forma sintética, simples e clara. É uma tarefa tão banal quanto calcular a quadratura do círculo: você pode errar feio, ou errar bonito: mas vais errar sempre. Pois é impossível!

    Qual a tática para enfrentar essa impossibilidade? Confiar nos “especialistas”. Especialmente quando os temas são “técnicos”. … Ora, a Economia não é técnica, mas parece ser. A ilusão advém dos números. Praticamente todas as nossas variáveis – PIB, produtividade do trabalho, taxa de desemprego, renda per capita, participação dos impostos na renda total etc. – são numéricas. E isso empresta um “ar” de hard Science que é tão falso, quanto conveniente. Qual a conveniência? Simples: a função específica do economista é PREVER O FUTURO! Somos nós que produzimos os “projetos de investimento empresarial” para a avaliação de órgãos de financiamento e governos E somos nós que criamos e avaliamos políticas econômicas a partir de seu impacto previsível … no futuro. O problema – evidente – é que o futuro é apenas uma aposta: não é rigorosamente apreensível. Mas temos que pretender saber o que não sabemos. Ou perdemos o “emprego”.

    Felizmente, de tanto polemizarmos entre nós, os jornalistas já nos classificam como “técnicos confusos”. Assim, se o tema é “política econômica e suas consequências”, os jornais costumam abrir espaço para o contraditório. Mas quando o tema é “os ganhos sociais e empresariais de empreendimentos específicos” os jornais superam as dúvidas chamando outros especialistas a opinar: os administradores e os empresários. Faz-se uma “média aritmética” das opiniões e – Bingo! – “a verdade técnica” aparece. O fato de que a opinião de muitos dos entrevistados reflitam tão somente seus intere$$es (ou, como diria Santa Teresa: suas ilusões sobre seus interesses) é convenientemente abstraído.

    Se o jornalista ainda ficar em dúvida, a regra é: pergunte ao editor. Que, por sua vez, pergunta aos seus chefes; vale dizer, aos administradores e/ou proprietários do veículo jornalístico. Os quais mantém boas relações com seus anunciantes: empresários dos demais setores. Que irão mostrar grande convicção nas vantagens “sociais” associadas aos projetos de investimento sob análise. … Alguns, mais ousados, talvez até cheguem a anunciar sua disposição em ampliar os aportes para o faturamento do veículo midiático caso ele se posicione firmemente ao lado do “empreendedorismo” e em oposição aos “caranguejos” avessos ao desenvolvimento. … Mas não será a regra. Há temas que não devem ser tratados entre cavalheiros. Pelo menos, não de forma explícita. Seria demasiadamente indecoroso e vulgar. Para bons entendedores, meia palavra bas! E está formado o consenso técnico necessário para que os jornalistas apresentem “a única verdade”, sem necessidade de dar a palavra a caranguejos avessos ao desenvolvimento econômico e obcecados com o meio-ambiente e o aquecimento global.

    Há exceções a esse padrão? Claro que há. Há jornalistas de viés investigativo que prezam sua autonomia profissional e intelectual e insistem em dar espaço para o contraditório. Mas eles são cada vez mais raros nas redações da mídia corporativa. A internet e as mídias alternativas vêm ampliando as fontes de informação. Hoje, o leitor interessado em temas específicos não precisa mais se informar pelo (cada vez mais ultrapassado) “jornal multitemático”. Quem ainda consome essa mídia tradicional é o sujeito que busca (e se satisfaz com) “um pouco de tudo”; sem grandes aprofundamentos. E esse consumidor privilegia as mensagens curtas, claras e objetivas. As matérias investigativas, os “textões”, a exposição e exploração de perspectivas distintas não “vendem” mais com antes. E os melhores jornalistas vão sendo afastados paulatinamente das redações.

    Cada vez mais, restam-nos apenas os propagadores dos pretensos “consensos técnicos”. Aquela turma que saúda com euforia cada recontratação da dívida pública estadual com o governo federal como “a definitiva solução do problema fiscal”. Aquela turma que ovacionou todos os empreendimentos que, no passado, foram conquistados com subsídios pesados e que já abandonaram o Estado (Souza Cruz, Philip Morris, Nestlé, Pirelli, Duratex, etc., etc, etc.). Para a mídia gaudéria não existem fracassos. Sirvam nossas façanhas de modelo a toda a Terra!

    Agora, de acordo com a A ILUMINADA, ILUMINISTA E ILUMINADORA MÍDIA CHARRUA O RIO GRANDE AMADO VAI SER SALVO PELO PORTO DE ARROIO DO SAL! … Ueba! Viva! Urra! ….. Faz de conta que eu já não vi esse filme dez vezes!

    O componente compensatório das convicções desejantes empresariais

    Para Freud, viver é administrar a insatisfação do desejo. Nos primeiros meses de vida do bebê, a mãe é tudo: é alimento, é calor, é afeto, é cuidados, é atenção, é amor. E ele quer essa fonte de prazer sempre ao seu lado e só para si. A impossibilidade de ver esse desejo contemplado, a necessidade de dividir essa fonte de prazer com o pai, com os irmãos e com os demais membros da parentela, é fonte de insatisfação, dor e revolta. Pouco a pouco a criança aprende que o pai e os irmãos também são provedores de alimentos, carinhos e cuidados. E emerge a culpa pelo egoísmo primitivo. Mas essa culpa não suprime a dor inicial. Pelo contrário: é uma nova fonte de dor e insatisfação. Que precisa ser enfrentada com o deslocamento do desejo para focos compensatórios, para conquistas secundárias.

    Os jogos infantis são a expressão maior dessa busca saudável por compensação: eles nos permitem dar vazão às pulsões eróticas (libido) e destrutivas (tânatos) sem transpor as regras sociais que são impostas a todos com vistas ao controle do egoísmo de cada um. Ao ingressarmos em um jogo, buscamos a vitória. Essa é a satisfação prometida. Ela é ínfima e fugaz comparada àquela que almejávamos na primeira infância: monopolizar a atenção da mãe. Mas viver é aprender a se satisfazer com “menos”; é aceitar o abismo entre desejo e realidade. Ao buscarmos a vitória num jogo, damos inúmeros passos no processo de amadurecimento: 1) aceitamos “gozos” menores; 2) reconhecemos nosso direito ao “gozo”, vale dizer: nos perdoamos pela inveja do pai e dos irmãos; 3) reconhecemos a existência de regras que limitam o exercício de nossas pulsões libidinais e agressivas sobre membros de outras famílias (mas sem abuso: um carrinho não dói!); 4) e nos exercitamos para suportar novas e impositivas perdas e insatisfações, pois a vitória é o que se busca sempre, mas que só se conquista eventualmente!

    A vida em sociedade é um grande jogo infantil. O núcleo familiar – seja o primitivo (pais, irmãos, avós, primos), seja aquele construído por nós (cônjuge, filhos, netos, sobrinhos) – é o centro dos nossos afetos e prazeres. Mas também é o centro de nossas maiores dores, traumas, carências e perdas. O mundo extrafamiliar é onde exercitamos nossos jogos em busca dos “gozos compensatórios”. Construímos times (empresas, igrejas, sindicatos, associações, partidos etc.) e disputamos com os times construídos pelos nossos “adversários”. E tal como nos jogos infantis, o objetivo, o prêmio, dos jogos adultos é a nossa vitória e a derrota do time adversário. Mais: tal como nos jogos infantis, nos damos ao direito de, eventualmente, descumprir certas regras. Afinal, se os adversários são tontos e o juiz é desatento, que mal há em errar a bola e acertar a canela do craque do outro time, ou cavar uma falta caindo ao tropeçar nas próprias chuteiras? … É do jogo; faz parte da brincadeira. Não é mesmo? … Sim e não.

    Onde vale o sim? Se o meu objetivo é ganhar, e o time adversário é mais fraco que o meu, mas contratou o Messi para o jogo decisivo da Copa, dar um carrinho forte no “agente do desequilíbrio”, tirá-lo do jogo às custas da expulsão do agressor “faz parte do jogo”. Com certeza, Messi e o técnico do time adversário sabiam, de antemão, do risco que corriam.

    Onde vale o não? Subornar o juiz para que ele valide um gol de mão, marque pênaltis inexistentes e expulse o Messi sem motivo real é roubar o resultado. Uma tal vitória não tem nenhum valor. …. A vitória nos jogos infantis e sociais é COMPENSATÓRIA. O gozo que ela proporciona é limitado e não vale a pena entregar a alma, renunciar a princípios morais elementares, para conquistar essa vitória. Isso não é “malandragem”. É psicose. Há uma grande distância entre dar um carrinho pesado e subornar o juiz há grande distância. Quem a percorre, na próxima disputa proporá o assassinato do Messi.

    O leitor que veio até aqui, deve estar se perguntando: POR TODOS OS DEUSES E DEUSAS ATUAIS E ANTIGOS, O QUE ISSO TEM A VER COM O PORTO DE ARROIO DO SAL? … TUDO!

    Contratar o melhor debatedor para esgrimir argumentos em prol do Porto de Arroio do Sal num evento público realizado durante uma festa municipal nas instalações da Câmara dos Vereadores é “do jogo”. Excluir o time adversário da disputa, dar a vitória ao “time da casa” por VO e cercear a fala do público é “comprar o juiz”. …. Ultrapassa-se uma linha vermelha.

    Só se dá esse passo quando se perde a compreensão de que as satisfações compensatórias, as vitórias em embates secundários, são meramente …. compensatórias e secundárias: elas não são um fim em si. Voltemos à analogia dos jogos: não importa se eu torço para o Grêmio ou para o Internacional, eu quero que o meu time vença. Qual seria a forma mais segura de conquistar vitórias todos os anos? Proibindo a existência (ou a participação nos jogos) dos demais times! Qual a consequência? Meu time seria campeão todos os anos. Como as vitórias seriam conquistadas sem esforço, os jogadores deixariam de treinar, perderiam forma física, ganhariam peso e se tornariam uns “pernas de pau”. Ninguém mais iria aos estádios, meu clube abriria falência e não haveria mais futebol gaúcho. …. Grande “vitória”, essa!

    Na verdade, a contribuição educativa dos jogos – sejam os infantis, sejam os sociais – encontra-se no aprendizado que extraímos quando nos deparamos com eventuais derrotas. Elas nos ensinam mais que as vitórias. Nos tornamos mais resilientes, mais combativos, mais unidos e mais dispostos a inovar, inclusive pela incorporação das técnicas e lances que garantiram a vitória dos adversários sobre nós. A competição é emulativa e nos faz crescer. O monopólio, o silenciamento do outro, a imposição da vitória em jogos secundários é o caminho seguro para a decadência, para a incapacidade de aprender, de inovar. É o caminho certo para a derrota final. … Infelizmente o Rio Grande Amado está percorrendo esse caminho mais uma vez.

    E por que o faz? Justamente porque o RS não vai nada bem. A economia gaúcha vem apresentando uma performance medíocre que se expressa com perfeição em sua dinâmica demográfica: por oposição a Santa Catarina – que é o Estado que mais recebe imigrantes do resto do país – o RS expulsa seus jovens (que não encontram empregos remunerados à altura de sua qualificação), apresenta um saldo migratório negativo e a menor taxa de crescimento populacional dentre os Estados brasileiros nos últimos 50 anos. Essa performance resulta (dentre outros fatores) dos graves equívocos na condução da política de desenvolvimento econômico estadual, pautada na atração de empresas forâneas de alta tecnologia (vale dizer: intensivas em capital e pouco empregadoras) a partir da oferta de subsídios escorchantes; ao invés de privilegiarmos (como SC e PR) o apoio às empresas e cooperativas gaúchas e às – já ricas e complexas – cadeias produtivas regionais.

    Ora, a consciência da performance insatisfatória leva a uma espécie de desespero, que exacerba o valor atribuído a cada novo projeto de investimento. Na concepção desses “desesperados”, toda e qualquer crítica ao mais recente projeto “salvacionista” é uma agressão, é um crime de “lesa-gauderismo”, uma traição imperdoável à luta pela retomada do crescimento econômico do Estado. Aqui está o fundamento da confusão apontada acima entre “demandas secundárias e compensatórias” e “demandas prioritárias”: o que deveria ser visto como um “complemento” passa a ser visto como “essencial”. E não se pode transigir com aqueles que se opõe ao que é essencial. O resultado é a repetição (neurótica) do erro: a imposição de decisões equivocadas pelo silenciamento das críticas. Por mais pertinentes que elas possam ser.

    O problema central dessa “estratégia” encontra-se justamente no fato de seu fundamento estar correto. O RIO GRANDE DO SUL NÃO TEM O DIREITO DE ERRAR MAIS UMA VEZ. JÁ ERROU DEMAIS. Mas, para não errar mais uma vez, ele teria que debater, ouvir, discutir. Até porque as consequências perversas da instalação de um Porto em Arroio do Sal serão muito maiores do que as consequências dos equívocos anteriores vamos estar dando um tiro no membro mais forte e ativo da nossa economia, no nosso “pé bom”.

    A única região do Estado que apresenta uma performance demográfica e um crescimento do emprego e da renda superior ao padrão catarinense é o Litoral Norte. E os “desesperados por novos projetos” querem instalar um sistema logístico complexo, custoso, com parcas chances de ser bem-sucedido às funções para as quais se volta (a logística) que impactará fortemente sobre aquele que é o principal polo turístico e imobiliário do Estado. E para conquistarem mais essa “vitória de pirro” silenciam os críticos e usam e abusam de argumentos falaciosos, dentre os quais se salienta a pretensa inexistência de ônus para os exauridos cofres públicos estaduais. Para a crítica dessas falácias, leia-se, por favor, os artigos anteriores que publiquei sobre o tema, disponíveis aqui e aqui.

    O pior de tudo é perceber que a “opção pela surdez” vem se disseminando entre as lideranças políticas gaúchas. Em seu nascedouro o projeto do Porto Meridional esteve associado ao ex-Prefeito de Passo Fundo Fernando Machado Carrion e ao atual Senador do RS pelos Progressistas Luiz Carlos Heize. Mas, ao ganhar apoio dos setores empresariais do Planalto e da Serra, lideranças políticas dos mais diversos partidos vieram a se somar ao coro dos defensores do empreendimento, incluindo figuras políticas de proa como o atual governador do Estado, Eduardo Leite, e o deputado federal pelo PT, Paulo Pimenta. A razão apresentada pelos novos defensores do empreendimento é, usualmente, a mesma: os empresários o demandam.

    Mas não é preciso ser, nem um devoto de Santa Teresa de Ávila, nem um keynesiano radical, para entender que as demandas empresariais não são razão suficiente para apoiar esse ou aquele projeto. Basta ser um leitor de um dos maiores consultores empresariais do mundo: Michael Porter.

    No Prefácio à segunda edição de seu aclamado As Vantagens Competitivas das Nações, Porter alerta para algo tão básico, quanto elementar: o foco dos empresários encontra-se na gestão dos seus negócios. Sua visão é especificamente microeconômica. E, por isso mesmo, as demandas que fazem aos governos são, muitas vezes, viesadas e equivocadas. Como regra geral, os empresários solicitam dos governos: 1) proteção (fiscal e aduaneira) e subsídios tributários e creditícios; 2) baixa proteção social e salários baixos; 3) sistemas logísticos ágeis e baratos. Quando obtêm a proteção demandada, as empresas tendem a adiar inovações e perdem capacidade competitiva de longo prazo. O mesmo ocorre quando os salários são deprimidos juntamente com os benefícios sociais: adia-se a introdução de inovações voltadas à ampliação da produtividade do trabalho, ao mesmo tempo em que a demanda interna por bens e serviços é deprimida pela queda de poder aquisitivo da população. A demandas por sistemas logísticos ágeis e baratos é essencialmente correta. Mas o impacto fiscal, social e econômica da disponibilização de novos equipamentos logísticos é elevadíssimo. Essa demanda pressupõe uma análise rigorosa de custo-benefício do projeto demandado, bem como das alternativas existentes ao mesmo. Uma análise que os empresários não sabem e não podem fazer. Essa é uma tarefa do poder público.

    Ora, os impactos econômicos de um porto no Litoral Norte serão enormes: estamos colocando em risco o crescimento demográfico, do emprego e da construção civil na única região do Estado que apresenta uma performance superior a Santa Catarina. Ao contrário do que pretendem os arautos do Porto Meridional, os impactos fiscais sobre o RS serão enormes, pois o sistema logístico de acesso ao litoral norte é débil e falho. E existe uma alternativa de solução para os gargalos logísticos do RS – a ferrovia Norte-Sul -, que iria onerar os cofres federais e daria guarida à sustentação e ampliação do sistema portuário da Metade Sul (Pelotas, Rio Grande e São José do Norte). … Mas a surdez e as convicções insistem e persistem.

    Só nos resta rezar: Santa Teresa que estais no céu, rogai por nós, pobres pecadores. Não nos faça verter ainda mais lágrimas pelo atendimento de preces desesperadas!


    *Carlos Águedo Paiva é Economista, Doutor em Economia e Diretor da Paradoxo Consultoria Econômica.

    Ilustração de capa:IA

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    Uma resposta

    1. Perfeito. Mostra o poder da fala fantasiosa sobre a dor e carência da população sobre soluções fantasiosas criadas pelos que as criam

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