Pressupostos de uma cidadania ativa

translate

Por LINCOLN PENNA*

Há quem diga, com razão, que precisamos de um projeto político para enfrentarmos os desafios deste século ainda em seu primeiro quarto de existência. Todavia, de pouca eficácia consiste apenas na formulação de um projeto político se não contamos com uma militância cidadã.

Não basta, no entanto, fazer essa ponderação se não tivermos de fato uma atividade coletivamente organizada para deslanchar toda e qualquer propositura no sentido de promover as grandes e necessárias transformações de nossa realidade. Para tanto, é indispensável um trabalho de conscientização permanente com vistas à formação de cidadania, sem a qual as boas intenções e elucubrações permanecem somente em nossa imaginação.

A atual juventude, cuja geração cresceu em torno das redes sociais, se de um lado tem recebido uma enxurrada de informações nem todas elas bem fundamentadas e verídicas, tem se dedicado cada vez menos à leitura. Situação que é no mínimo preocupante para uma nação que necessita de cidadãos pensantes, sem o que nenhuma mudança significativa voltada para tornar mais digna a vida de inúmeros contingentes sociais ainda excluídos de bens fundamentais jamais os alcançarão. Essa é uma tarefa prioritária que levada consequentemente só reforça o desejo de se produzir um projeto político capaz de nos conduzir a novos horizontes.

Essa demanda pela participação cidadã não é nova. Joseph Comblin já dissera faz tempos, mas esse seu dizer não está superado, ao contrário, sua atualidade pode ser constatada, o que não quer dizer que pode também ser objeto de contestação de quem quiser fazê-lo. Mas, o que disse ele tem uma relevância que muitos a subscrevem. Ei-lo:
“É ao nível de cada cidadão (…) que poderá levantar-se a esperança de uma alternativa que abra o caminho à existência de uma geração mais livre e mais audaciosa, à qual caberá o encargo de construir um mundo baseado na liberação dos oprimidos e na paz entre os homens.”
Afinal, os grandes pensadores do mundo das ideias produziram as suas obras em plena juventude ou, quando muito, numa idade intermediária à qual costumamos definir como madura, ou seja, suficientemente vivida para permitir exibir os seus pensamentos. A lista é longa, mas vale lembrar que Karl Marx e Friedrich Engels começaram a elaborar os seus escritos filosóficos e políticos aos vinte e poucos anos.

Essa maturidade precoce de uma intelectualidade do século XIX se explica basicamente pela avidez da leitura, coisa que hoje em dia tem sido lamentavelmente substituída pela excessiva troca de mensagens, que pouco acrescentam à formação e a erudição mínima que seja de quem está em busca de poder fazer a leitura do mundo. Prática que decorre do somatório de informações obtidas através do conhecimento para que se possa construir um arcabouço visando a nossa conexão com o mundo. Conexão que se renova sempre que novas demandas se imponham.

Interagir é importante, mas ele não pode prescindir do conhecimento sistematizado e sujeito sempre a questionamentos. Vale lembrar a máxima do historiador francês Pierre Vilar ao dizer ser a história uma ciência em construção e em movimento constante. Com isso pretendeu dizer que o próprio conhecimento não é eterno quanto às suas premissas, pois elas estão sujeitas a novas e frequentes interrogações. Assim como essa constância implica que não se pode cristalizar para a eternidade saberes que correspondem a produção de um tempo vivido. Eles se renovam sem perder o elo com a produção original.

Por último, é insuficiente alertar para a necessidade de se pôr em prática um processo de formação de cidadania sem que se defina os seus propósitos, isto porque existem concepções distintas e até antagônicas quanto ao sentido e ao conteúdo dessa formação. Haja vista nas escolas militares, por exemplo, em que as disciplinas letivas ou simplesmente transmitidas pelos conteúdos programáticos estão eivadas de valores hierárquicos e rígidos quanto ao comportamento de seus alunos.

As próprias escolas cívico-militares alardeadas e já implantadas em alguns estados da federação contêm um conjunto de procedimentos que visam muito mais, ou até somente isso, o acatamento às normas instituídas, inibindo por completo os questionamentos, o exercício da dúvida diante de certos postulados tidos e apresentados como definitivos. O impedimento desse comportamento que estimula à reflexão é vedado nessa modalidade que infelizmente conta com apoio irrefletido de muita gente.

A interdição da dúvida busca o enquadramento do alunado, seja ele nas corporações militares ou nas tais escolas cívico-militares. Cabe reproduzir o que o filósofo Albert Camus dissera certa ocasião com absoluta convicção: “O que é um rebelde? Um homem que sabe dizer não”. Para muitos a rebeldia é uma transgressão, porém existem casos e situações em que a rebeldia exerce um papel inovador, quebra paradigmas e abre janelas para horizontes até então desconhecidos nas relações sociais.

A recusa desde que amparada nas convicções de quem pensa e age em oposição a determinados mandamentos e ordens absurdas é meritório. O não fazer aquilo que constrange os valores civilizatórios e humanitários deve merecer o acolhimento da razão, porquanto o oposto transita à beira da irracionalidade, que nem sempre contempla a capacidade do ser humano de apreender, compreender e interpretar a realidade diante da qual precisa manifestar-se. Precisamos construir um processo de aprendizagem que reforce a nossa faculdade de divergir quando a divergência tem por objetivo o entendimento e a construção de consensos mínimos que nos ajudem a tomada de decisões, de modo a contemplar os nossos legítimos impulsos sem macular ou afetar duramente a quem reaja de maneira contrária.

Afinal a escola da vida implica em estarmos em permanente correção de eventuais desvios de conduta, de comportamentos que venham a agredir nossos coetâneos na viagem da vida. Para isso, é de fundamental importância que construamos essa atitude contribuinte para o bem-estar social. Este só tem sentido se contemplar a humanidade integralmente, sem distinções que venham a excluir quem quer que seja.

 

*Lincoln Penna É Doutor em História Social; Conferencista Honorário do Real Gabinete Português de Leitura; Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Presidente do Movimento em Defesa da Economia Nacional (MODECON); Vice-presidente do IBEP (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos).

Foto de capa: Divulgação

Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

 

Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia..

Gostou do texto? Tem críticas, correções ou complementações a fazer? Quer elogiar?

Deixe aqui o seu comentário.

Os comentários não representam a opinião da RED. A responsabilidade é do comentador.

plugins premium WordPress

Gostou do Conteúdo?

Considere apoiar o trabalho da RED para que possamos continuar produzindo

Toda ajuda é bem vinda! Faça uma contribuição única ou doe um valor mensalmente

Informação, Análise e Diálogo no Campo Democrático

Faça Parte do Nosso Grupo de Whatsapp

Fique por dentro das notícias e do debate democrático