Pela formação de uma frente ampla, realmente ampla!

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Por JOSÉ FORTUNATI*

Vibrei muito com a vitória de Yamandú Orsi, para a presidência do Uruguai. Tenho uma grande afeição por este pequeno e valoroso país que começou quando cheguei em Porto Alegre, na década de 1970, e fui morar na Casa do Estudante Universitário da UFRGS onde conheci dois estudantes uruguaios que se tornaram grandes amigos. Esta relação terminou propiciando uma série de viagens ao país vizinho, quer para jogar futebol ou simplesmente para passear. Ao assumir como vice-prefeito na gestão do Raul Pont acabei estreitando ainda mais os laços com o Uruguai através de um belo projeto chamado “Porto Alegre em Montevideu” em que artistas da capital gaúcha se deslocavam durante duas semanas para Montevidéu apresentando a sua arte nos mais variados espaços, inclusive em praças públicas. O inverso também ocorria em outro momento.

Com esta convivência aprendi a conhecer o povo uruguaio, a entender a sua forma de organização política, a preocupação com a área da educação, as dificuldades enfrentadas especialmente nos embates com a Argentina, o amor pelo futebol (os gaúchos e os uruguaios muito se parecem neste quesito), o mate amargo sorvido individualmente, o que sempre me cativou e acabou criando esta relação de respeito para com o país vizinho.

Ao longo deste tempo acompanho com atenção o debate político que se trava por lá, a paixão do uruguaio pela política e a forma diferenciada com que eles conseguem realizar os embates eleitorais. Desde sempre acompanho a caminhada da Frente Ampla do Uruguai que se define como uma coalização eleitoral artiguista, democrática, anti-oligárquica, anti-imperialista, antirracista e antipatriarcal. Dela fazem parte vários partidos socialistas, social-democratas, comunistas, a esquerda cristã, organizações de esquerda e até indivíduos que queiram contribuir com o programa da Frente Ampla, abrangendo um espectro político que vai da centro-esquerda a esquerda.

Com a vitória da Frente Ampla um sopro de esperança voltou a confortar a esquerda brasileira na medida que, quase ao mesmo tempo, somos “brindados” com a eleição da Donald Trump nos Estados Unidos, cujas consequências nefastas passaremos a sentir a partir do próximo ano.

É natural, portanto, que a vitória da Frente Ampla do Uruguai venha a ser lembrada como um modelo a ser seguido pelos democratas brasileiros pensando no processo eleitoral de 2026, quando o embate com um candidato da extrema- direita vai ocorrer e ele estará a postos para tentar retomar o Palácio do Planalto. Sou daqueles que acreditam que o confronto eleitoral de 2026 vai se assemelhar com a difícil eleição do Lula em 2022, e por isso também advogo a formação de uma Frente Ampla para enfrentarmos este processo eleitoral. Aliás, é importante lembrar que a proposta da formação de uma Frente Ampla sempre esteve em nosso meio, com as difiuldades conhecidas para a sua implementação. Foi com o objetivo de ajudar a construir esta frente que aceitei, em 2023, o generoso convite do vereador Marcelo Sgarbossa para compor o seu gabinete parlamentar juntamente com militantes de outras siglas partidárias, onde foi formado o Movimento pró Frente Ampla de Porto Alegre.

A vitória da Frente Ampla do Uruguai deve servir de alento e, de certa forma, de modelo, pois devemos ter a clareza de que as condições políticas eleitorais do país vizinho são muito semelhantes às nossas, mas devemos ter a convicção de que as diferenças existentes chegam a ser abissais neste momento e não podem ser desconsideradas. Desejo contribuir com esta reflexão levantando alguns pontos distintos e decisivos na minha avaliação.

Vamos aos fatos. O nosso querido país vizinho tem uma população de 3,423 milhões de pessoas num território de 176.215 Km2., sendo que o Brasil tem aproximadamente 216 milhões de habitantes numa área de 8 milhões e 510 mil Km2. Na prática o Uruguai tem uma população menor que ocupa um território menor do que o RS com os seus quase 11 milhões de habitantes que ocupam 282 mil Km2. Para alguns isto representa apenas um pequeno detalhe, mas para quem vive a militância política em qualquer área sabe das inúmeras dificuldades encontradas para “nacionalizar” projetos e propostas entre nós. Enquanto no Uruguai encontramos um país praticamente coeso em torno de seus valores e conceitos, no Brasil temos um “país continental” com “vários” países dentro de si, com o aspecto positivo de todos falarem a mesma língua.

Um dos alicerces básicos para que o Estado Democrático de Direito possa se consolidar nas suas várias esferas é contarmos com um povo educado e politizado. Outra diferença estratosférica. Enquanto os alunos das escolas uruguaias, junto com os chilenos, apresentam os melhores desempenhos da América Latina, com índices de primeiro mundo, os alunos das escolas brasileiras, infelizmente, são muito insuficientes no seu desempenho segundo o PISA -Programa Internacional de Avaliação de Estudantes. Enquanto o Uruguai erradicou o analfabetismo funcional há décadas, no Brasil o número de jovens que terminam o ensino médio sem compreender o sentido de um pequeno texto tem aumentado assustadoramente, sem falar no contingente de jovens que tem abandonado as escolas.

Na política as realidades se tornam ainda mais divergentes, na medida em que no Uruguai a disputa ocorre com partidos consolidados, com propostas claras de governo e com um respeito muito grande pela democracia. Os partidos Colorado e Nacional dominaram a história eleitoral por dezenas de anos e a Frente Ampla, surgida mais recentemente, é formada especialmente por partidos menores com longa tradição na história do país. Os deputados e senadores uruguaios são escolhidos, em primeiro lugar, nas denominadas eleições internas com uma definição muito clara por parte dos eleitores de quem deva estar na nominata final. O sistema uruguaio está regido por um sistema de “duplo voto simultâneo, onde os partidos políticos organizam seus candidatos em lista. Dessa maneira o eleitor apresenta, no dia das eleições gerais, seu voto através de uma única folha de votação individualizada de um partido político e cada voto é representado por uma lista colocada na urna de votação. Ou seja, o eleitor vota na lista fechada apresentada pelo partido e não em nomes individuais. Além do Uruguai a lista fechada é o sistema eleitoral utilizado na Argentina, Portugal e Espanha, como exemplo.

No Brasil, segundo os registros do TSE, temos 29 partidos oficializados, sendo que uma minoria tem história, consistência política, filosófica e ideológica. Com raras exceções o que percebemos é que os partidos políticos muito mais servem para servir aos interesses patrimonialistas de alguns. Com isso o Brasil acaba se ressentindo da existência de um número maior de partidos consolidados numa posição política, onde se verifica, a cada eleição, o aluguel de siglas de acordo com interesses escusos. É a famosa “sopa de letrinhas” que faz mal a saúde da democracia brasileira. Além disso, as candidaturas são apresentadas de forma pessoal, com destaque para quem, de uma forma ou de outra, possa somar mais votos para a legenda partidária, independentemente do que pensam e defendem. Desta forma o “influencer” da hora que resolve se candidatar, a personalidade que nada entende da política, os candidatos que interessam ao presidente do partido, terminam formando a chamada “lista aberta” em que o eleitor vota num nome específico sem, na maioria dos casos, estar preocupado com a orientação partidária. O voto é personalíssimo o que redunda em mandatos personalíssimos. Por isso, não é raro verificar-se que em projetos importantes parlamentares do mesmo partido votem de forma absolutamente opostas.

Como no Brasil a “fidelidade partidária” é uma abstração política, diferente do Uruguai, o Governo tem que “negociar” voto a voto e não consegue realizar um debate com os partidos somente, consolidando o fisiologismo e as negociatas que estrangulam a utilização dos recursos públicos.

Também, é fundamental entender o momento político existente nos dois países. No Uruguai estamos presenciando uma alternância de poder digna das melhores democracias liberais. Isto já ocorreu com a passagem da faixa de José Mujica (Frente Ampla) para o atual presidente Luis Lacalle Pou (Partido Nacional de centro direita) e já começa da mesma forma com a eleição de Yamandú Orsi. O candidato derrotado no segundo turno, Álvaro Delgado (Partido Nacional) nem esperou o resultado das urnas para cumprimentar o novo presidente afirmando que “com tristeza, é claro, mas sem culpa, podemos parabenizar aqueles que venceram e tiveram a preferência do povo. E o fazemos com sinceridade e de coração, com desprendimento e com sentido muito republicano”. Ou seja, um profundo respeito para com o processo eleitoral e com a manutenção do Estado Democrático de Direito.

Se nas questões abordadas anteriormente temos uma enorme diferença com os nosso “Hermanos”, neste último ficamos com a impressão de vivermos em planetas distintos. No mandato anterior o presidente da República alimentou o ódio e a revolta contra as instituições democráticas. Mais do que isso, arquitetou um verdadeiro golpe de Estado para manter o seu grupo no poder, não hesitando sequer em planejar tirar a vida do Presidente e do Vice, eleitos democraticamente, e do então Presidente do TSE. As manifestações rocambolescas de 8 de janeiro de 2023 estavam devidamente orquestradas para a retomada golpista do poder. Não só o ex-presidente não cumprimentou o novo eleito, como se negou a passar a faixa presidencial se refugiando nos EUA onde continuou incentivando um golpe contra a democracia brasileira.

A terrível polarização política que vivenciamos separando irmãos, famílias, amigos, vizinhos e colegas de trabalho de forma permanente, que tem dividido o país num rasgo preocupante, não é encontrada na disputa uruguaia. Desta forma, é natural que no Uruguai as propostas programáticas acabem dividindo os eleitores de acordo com a sua visão de mundo. Por aqui o mais importante para quem sonha com uma democracia liberal que contemple direitos sociais e políticos, que respeite a diferença entre as pessoas quer seja pela opção sexual, religiosa, sem discriminação racial, que permita maiores e melhores oportunidades de estudo e trabalho para todos, é entender que, ao contrário dos irmãos uruguaios que fazem um saudável debate sobre visões de mundo de forma respeitosa e por isso pode conformar uma Frente Ampla mais restrita com partidos e movimentos de centro-esquerda e esquerda, é compreender que a nossa realidade nos impõe a necessidade de construirmos uma Frente Ampla realmente “ampla” abarcando todos os democratas, independente de visão de mundo, sigla partidária ou visão ideológica para que tenhamos forças para combater uma extrema-direita cada vez mais articulada e poderosa, que conta com a simpatia dos grandes grupos empresariais e financeiros do país.

Estreitar esta Frente Ampla significa concordar com a volta e a entrega do comando do país a quem tentou de todas as formas solapar a nossa tênue democracia. Espero que a soberba dos democratas americanos nos traga ensinamentos e humildade para a construção desta alternativa de poder.

 

 

*José Fortunati, foi Prefeito de Porto Alegre (2 mandatos), Deputado Federal e Secretário de Estado da Educação do RS

Foto da capa: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com. Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

 

 

 

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