Por SOLON SALDANHA*
Na manhã desta segunda-feira, 21 de outubro, voltou a operar, mesmo que com restrições, o Aeroporto Internacional Salgado Filho. Isso ocorreu exatos 171 dias depois que pousos e decolagens foram interrompidos pela maior enchente acontecida na história da capital gaúcha, agravada pela negligência do prefeito municipal Sebastião Melo, que não realizou a necessária manutenção do sistema de proteção da cidade. A principal empresa de comunicação do Rio Grande do Sul teve o cuidado de enviar repórter e cinegrafista para Campinas, de onde embarcaram no primeiro voo com destino a Porto Alegre. Entretanto, não houve o relato de que tal retomada se deu principalmente porque o Governo Federal assumiu boa parte dos custos da reconstrução necessária do terminal.
Para quem louva a privatização de tudo como alternativa para que se atinja excelência nos serviços prestados, convém lembrar que o repasse de dinheiro público para acelerar a reabertura atingiu R$ 425,9 milhões. O valor foi aprovado pela Agência Nacional de Aviação Civil, a Anac, em 23 de agosto. Antes disso, como forma de pressionar – talvez o termo mais apropriado fosse chantagear – o Governo Federal, as providências andavam muito devagar. Segundo a Fraport, empresa concessionária do aeroporto, que tem sede na Alemanha, o valor do seguro contratado por ela não seria suficiente para assegurar a retomada. Entretanto, não foi dita a razão do contrato feito ter valor relativamente baixo. Se pode de algum modo aferir que o motivo tenha sido o custo das apólices, óbvio que sem a comprovação necessária.
Em números redondos, do valor total R$ 362 milhões foram destinados para a infraestrutura do aeroporto, enquanto os demais R$ 64 milhões garantiram a manutenção das atividades durante o período de tempo destinado à reconstrução. Vamos lembrar ainda que a Base Aérea de Canoas foi cedida para que voos comerciais continuassem operando nas proximidades de Porto Alegre. E, outro detalhe: não está afastada a possibilidade de novas transferências para a Fraport, se ela comprovar que tudo o que recebeu ficou aquém de suas necessidades.
As privatizações no Brasil são la crème de la crème para o capitalismo, sejam com recursos nacionais ou vindos de fora do país. Por aqui, além de ser possível adquirir empresas por um valor muitas vezes apenas simbólico, como o que o governador Eduardo Leite fez, ao vender a antiga CEEE pela módica quantia de R$ 100 mil, há dispositivos que ainda protegem e muito os compradores. O mais indecente de todos talvez seja a previsão do “reequilíbrio financeiro”, aplicado na hipótese do lucro da privatizada não alcançar o que pretendiam. Sendo direto e reto, funciona assim: caso operem no azul, a grana toda é dos “investidores”; rendendo menos do que o esperado ou dando prejuízo, o governo garante. Ou seja, risco sempre zero.
Em situações de calamidade, então, se evidencia ainda mais o absurdo. E os grandes empresários, defensores ferrenhos do “Estado Mínimo”, choram suas lágrimas de crocodilo e exigem, via imprensa, que este se torne de imediato em “máximo”. Venha a nós tudo, ao vosso reino nada. Pagar impostos, nunca – e nem são as empresas que pagam de fato, sendo todas elas apenas fiéis depositárias –; exigir retorno, sempre. Agora, vá um de nós, simples mortais, nos darmos mal em um pequeno negócio que abra: não haverá solidariedade de nenhum deles e nem a possibilidade de ajuda oficial.
Querem um exemplo concreto do que eu afirmo, do peso da omissão e dos “interésses”, como dizia Brizola? Durante os incêndios que assolaram as regiões Norte e Centro-Oeste do Brasil, recentemente, não se viu um único avião daqueles que os grandes produtores rurais usam para pulverizar veneno nas suas lavouras ser disponibilizado para o combate às chamas. Deixaram tudo por conta dos poderes públicos. Pouco ou nada interessam a eles questões comunitárias. Lembremos que a imensa maioria destes focos foi criminosa e que o agronegócio é quem mais se beneficia em nosso país de incentivos e de isenções de impostos.
Para concluir, uma coincidência numérica precisa ser ressaltada. Nosso aeroporto ficou, como coloquei na abertura, 171 dias fechado. Esse é o número do artigo que, no Código Penal brasileiro, define o estelionato como crime. Ele consiste em “obter vantagens ilícitas para si ou para outrem, em prejuízo de terceiros, por meio de artifícios, ardil ou qualquer outro meio fraudulento”. A pena para quem o pratica é de reclusão de um a cinco anos, mais multa.
Foto: reprodução do jornal O Globo/Este foi o primeiro pouso no Salgado Filho, em 171 dias
*Jornalista e blogueiro.
Texto publicado originalmente no Blog Virtualidades.
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