O médico que viu Rubens Paiva morrer: o testemunho que revelou o assassinato do deputado

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Por  CLARISSA DESTERRO*

Quinze anos depois do desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva, um depoimento mudou o rumo da história. Em 1986, o médico Amilcar Lobo, que atuava como avaliador dos limites da tortura durante a ditadura militar, quebrou o silêncio e revelou o que sabia – e que muitos já suspeitavam: Paiva foi assassinado pela Polícia do Exército no Rio de Janeiro.

A declaração de Lobo veio dias após a determinação do procurador-geral da Justiça Militar, Francisco Leite Chaves, com respaldo do então ministro da Justiça, Paulo Brossard, para a reabertura do inquérito. Em entrevista à Veja, publicada em 3 de setembro daquele ano, o médico relatou ter atendido Paiva no quartel da rua Barão de Mesquita, na Tijuca. Ele descreveu um quadro brutal: um homem coberto de hematomas, com suspeita de hemorragia interna, e poucas palavras antes de morrer.

O médico que viu Rubens Paiva morrer

Amilcar Lobo era segundo-tenente médico do Exército quando, em uma madrugada de 1971, foi chamado para atender um preso. O relato que fez à Veja foi chocante:

“Quando cheguei ao quartel, fui à última cela do lado direito do 2º andar, na área que se chamava presídio. Na cela, onde habitualmente ficavam cinco ou seis pessoas, havia só um preso, deitado sobre uma cama. Ele era uma equimose só. Estava roxo da ponta dos cabelos à ponta dos pés. Ele havia sido torturado, mas, quando fui examiná-lo, verifiquei que seu abdômen estava endurecido, abdômen de tábua, como se fala em linguagem médica. Suspeitei que houvesse uma ruptura do fígado ou do baço, pois elas provocavam uma brutal hemorragia interna. Eu nunca havia presenciado um quadro desse tipo. Aquele homem levara uma surra como eu nunca vira. Fiquei na cela com ele durante uns 15 minutos. Durante todo esse tempo ele esteve deitado. Estava consciente. Não gemia. Disse só duas palavras – Rubens Paiva.”

“’Olha, aquele cara morreu’, me disseram. Perguntei se ele foi para o hospital. ‘Não, morreu aqui mesmo’.”

De acordo com ele, o caso ficou gravado em sua memória por conta da repetição do nome. “Eu nunca havia ouvido esse nome, não sabia quem era. Não o esqueci porque a situação em que ele estava me impressionou e também porque eu nunca sabia o nome dos presos que atendia. Nunca tomava a iniciativa de perguntar quem eram”

A versão falsa do Exército:

havia sido sequestrado por um grupo de “terroristas” enquanto era transportado por militares em um Volkswagen. A narrativa, recheada de contradições, registrada em sindicância conduzida pelo major Ney Mendes, referendada pelo general Sylvio Frota e endossada pelo Ministério da Guerra e pelo comando do I Exército, já não se sustentava. Por quinze anos, Lobo guardou o que sabia, temendo pela própria vida e pela segurança da família. Mas, ao ver no Jornal Nacional que o caso seria reaberto, decidiu falar.

Assim, a revista Veja, em edição de 10 de setembro de 1986, expôs os detalhes da operação de acobertamento. Segundo a publicação, sargentos do DOI, junto com um capitão, forjaram o sequestro para justificar o sumiço do ex-deputado. Era uma narrativa inverossímil: como um homem de quase 100 quilos, sob custódia militar, poderia ter escapado de um carro escoltado por soldados armados? A reportagem dizia ainda que os nomes dos oficiais diretamente envolvidos no acobertamento do assassinato de Paiva eram: Sargento Jacy Ochsendorf e Souza, Sargento Jurandir Ochsendorf e Souza e capitão Raimundo Ronaldo Campos. A versão do exército citava os dois primeiros como a escolta de Paiva, e o último como motorista.

O caso foi uma das farsas mais marcantes do período da ditadura, e a reportagem da Veja foi uma peça central na exposição do crime. O filme Ainda Estou Aqui utilizou trechos dessa edição para reconstituir a luta de Eunice Paiva, esposa do ex-deputado, em busca da verdade.

A reação de Eunice: “Meus filhos sabem que são órfãos.”

Com o depoimento de Amilcar Lobo, Eunice Paiva rompeu um silêncio de mais de uma década. Em entrevista à Veja, declarou:

“Agora posso me considerar viúva, e meus filhos sabem que são órfãos.”

O filho de Rubens, o escritor Marcelo Rubens Paiva, definiu a atitude do médico como “um ato de coragem”. Eunice, por sua vez, afirmou que lutaria pelo reconhecimento oficial da morte do marido e pela responsabilização do Estado.

A entrevista de Lobo foi o início de uma reviravolta no caso. Dias depois, o médico foi chamado para prestar depoimento oficial na Polícia Federal. O jornal Diário do Pará noticiou que o interrogatório ocorreu a portas fechadas e durou três horas. Ao deixar o prédio, Lobo se limitou a dizer que repetira ao delegado o que já havia contado à imprensa.

Quem foi Amilcar Lobo?

Formado em medicina em 1969, Amilcar Lobo especializou-se em psicanálise antes de servir ao Exército. Ele entrou para a instituição após adiar o serviço militar durante os anos de faculdade, mas, ao ser designado para o quartel da Polícia do Exército, encontrou-se no centro do aparelho repressivo da ditadura.

Lá, foi apelidado de “doutor Cordeiro”. Por três vezes, tentou dar baixa, sem sucesso. Acabou permanecendo até 1974, quando foi desligado e passou a atuar como psiquiatra em clínica particular.

O médico foi a primeira testemunha capaz de comprovar a morte de Paiva sob custódia e com a aquiescência do Estado.

Lobo morreu em 1997, aos 58 anos, por complicações cardíacas. Sua entrevista de 1986 permanece como um dos depoimentos mais contundentes sobre os crimes cometidos pelo regime militar no Brasil.

Texto baseado na matéria: https://www.migalhas.com.br/quentes/425664/em-entrevista-medico-revelou-assassinato-de-rubens-paiva-pelo-estado


Publicado originalmente no Jornal Nota.

Foto de capa: Reprodução

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Respostas de 6

  1. A tortura seguida de assassinato do deputado Rubens Paiva revela a nobreza de caráter da vítima já que sofreu as consequências da recusa em delatar sua família e seus correligionários políticos que estariam sujeitos às mesmas inenarráveis atrocidades sofridas por ele nas dependências da polícia do exército.

    1. Querida amiga Ceci, em primeiro lugar: sinto saudades de ti e de nossas conversas francas. E seguindo, com a mesma franqueza, Amilcar Lobo não foi um quase herói. Só falou quando já havia alguma liberdade e as “limpezas de arquivo” já (e ainda, como voltaram a se tornar em nossos tempos) não eram tão comuns. Além disso, falou quando já havia, desde 1973 quando a psicanalista Helena Bessermann o denunciou ao jornal clandestino Voz Operária republicada pelo periódico argentino Cuestionamos, movimentação para responsabilizá-lo por sua colaboração com os crimes da ditadura, que resultou em 1980 no seu desligamento da Associação Psicanalítica do Rio de Janeiro e na suspensão do seu registro profissional pelos CRM-RJ e CFM, respectivamente, em 1988 e 1989.
      Vale a pena dar uma olhada em https://wiki.historiadapsicologia.com.br/index.php?title=O_caso_Am%C3%ADlcar_Lobo
      Grande abraço!

  2. Só os psicopatas, os desalmados, são capazes defender as ditaduras, as torturas e mortes daqueles que pensam diferentes. Por isso, julgamento justo e punição severa para todos que pedem a volta da ditadura. Sem anistia!

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