O esquecimento e a morte

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Por SOLON SALDANHA*

A morte me parece um momento extremamente solitário, mesmo que a pessoa que esteja se despedindo da vida física enfrente aquele instante acompanhada de outras a quem ame. Porque estas demais ficam do lado de cá da porta, sem sequer uma fresta para poder espiar os passos seguintes de quem vai embora: estes a pessoa sempre os dá sozinha, ainda que do outro lado também possa existir quem a esteja esperando. Talvez não apenas se formos examinar a situação via mitologia grega, pois então temos Caronte. Ele é o barqueiro da morte, que transporta as almas para o outro mundo. Sendo filho de Nix (a Deusa da Noite) e de Éboro (o Deus da Escuridão), ele tem o direito de cobrar uma pequena moeda de cobre para cumprir o roteiro, garantindo a passagem. Quem não a leva consigo termina condenado a ficar vagando eternamente entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Mais uma maldição que os desprovidos têm que enfrentar, como se não bastassem as anteriores.

A mesma figura de Caronte é recorrente em diversas outras mitologias antigas. Aparece entre os nórdicos, mesopotâmicos, etruscos e romanos, além de vários outros povos. Sobre ele e sua função escreveram Aristófanes, Eurípedes, Luciano de Samósata e Pausânias, por exemplo. Mas, é desnecessário dizer que as religiões ocidentais nem de perto registram que algo assim possa de fato ocorrer. O que de comum todas têm é que, uma vez fora do plano físico, a vida continua e pode ter diversos caminhos distintos, em geral muito alinhados com aquilo que é dolorosamente dito como aceitável para os encarnados, sem considerar suas diferenças naturais e circunstâncias: uma espécie de meritocracia.

Só que o tema de hoje não é nem mitologia, nem religião. O objetivo é abordar a solidão psicológica da passagem. O que ocorre, como afirmei, mesmo que haja aqui uma justa despedida e que, logo adiante, se possa esperar uma boa recepção. E foquei nesse tema ao saber que fora enfim esclarecida a morte de Gene Hackman, um grande ator estadunidense, ganhador de dois Oscar, que encontraram morto em sua casa. Aliás, sua esposa – a pianista Betsy Arakawa – e o cãozinho do casal também estavam sem vida na residência. A perícia comprovou que ela morrera pelo menos sete dias antes dele, vitimada por uma síndrome pulmonar causada por contaminação de hantavírus (*). Como ele estava com a doença de Alzheimer, não se deu conta disso. O cão não recebeu mais alimento e morreu de fome. Gene, também sem cuidados, sofreu uma parada cardiorrespiratória, depois de dias vagando pela casa. Ou seja, para eles não houve o primeiro dos acompanhamentos desejáveis.

Assustador é que ninguém se deu conta da primeira morte, devido à total falta de cuidado, de presença, de acompanhamento. Por decorrência, as demais também não puderam ser evitadas. Mas, onde estavam os seus amigos, familiares e vizinhos? Não houve visita nem ligação telefônica alguma, ao longo de todo este tempo? A repercussão foi grande, muito mais em função de ser o casal famoso do que pelo fato em si. Não são raras as mortes descobertas bem depois de acontecerem, neste nosso mundo atual, onde prevalece o individualismo. Esquecimento e morte, não importando exatamente a ordem dos fatores, são muito frequentes, embora pouco divulgados. Aqui mesmo no blog já contei a história de uma mulher que morreu em sua casa, em bairro de Porto Alegre, sem que ninguém se desse conta.

Tem algo errado acontecendo com todos nós. Como estamos permitindo que pessoas se tornem invisíveis? Aliás, as ruas também estão cheias deles. Passamos por eles sem os ver. Moramos ao lado sem saber quem está além das nossas paredes. São raros os que sabem os nomes dos porteiros, de quem os atende na farmácia da esquina, da pessoa que tem a função de higienizar os corredores do prédio onde moram. Qual a razão de nos tornarmos mais próximos dos “amigos desconhecidos” das redes sociais, das subcelebridades da televisão, dos “influenciadores” que tentam nos vender produtos e ideias, ao invés de pessoas reais e verdadeiramente próximas?

A vida em comunidade vem se deteriorando. Os clubes sociais não são hoje em dia o que já foram. Associações de bairro não têm o apoio que necessitam. As escolas estão abandonadas, as universidades trocando o convívio pelo EaD. Nem templos religiosos têm cumprido seu antigo papel agregador, se transformando em espaços de comercialização da fé, com compra e venda da “salvação” e promessa de curas e prosperidade. As famílias fazem cada vez menos refeições com seus membros juntos, ou as dividem com atenção dada aos celulares. Sindicatos foram implodidos, partidos políticos são uma verdadeira piada. E as redes sociais estão aí, para jogar sobre tudo isso uma pá de cal. Aliás, jogar cal sobre cadáveres já foi hábito considerado necessário. Sua alcalinidade inibe a atividade biológica que acompanha a decomposição da matéria orgânica. A cal absorve o líquido cadavérico e evita o mau cheiro. Acho bom que se volte a investir nesse produto.

(*) O Hantavírus é um organismo acelular, sendo sua estrutura formada basicamente por proteínas e ácido nucleico, como todos os demais vírus dos quais se tem conhecimento da existência. Sua inalação, em geral pela poeira contaminada pelos que foram eliminados na urina, nas fezes e na saliva de ratos silvestres, causa uma doença que pode ser fatal, a Hantavirose. Ela não deve ser confundida com a Leptospirose, uma vez que essa última é bacteriana. Mas, ambas são zoonoses transmitidas por roedores. Já a doença de Alzheimer, também citada no texto, se trata de uma demência neurodegenerativa que causa deterioração da memória e do pensamento. É a forma mais comum de demência que acomete as pessoas idosas.


*Solon Saldanha é jornalista e blogueiro.

Texto publicado originalmente no Blog  Virtualidades.

Foto de capa: Gene Hackman, de 95 anos, e a esposa dele, Betsy Arakawa | Reprodução/Instagram

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Respostas de 2

  1. Tudo que tem um princípio, inexoravelmente terá um fim. Mas a finidade da vida humana — a expressão máxima da Natureza — deveria ser comemorada como se fosse a diplomação de um aprendizado na Escola da Vida, por ter vivido como um “eterno aprendíz”; conforme diz o verso do saudoso Gonzaguinha. E lembrando que o saudoso jornalista Léo Batista, citou uma frase de uma menina de rua, da qual ele nunca esqueceu; e que é a seguinte: “Só morre de verdade, quem nunca mais é lembrado”. J.B.Say-y+ntos =Benigno.

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