Por JORGE BARCELLOS*
O gancho do texto desta semana veio do artigo de Priscilla Machado de Souza “Querer escrever e querer ser lida: dá no mesmo?” (disponível em https://abre.ai/nSq0). No ensaio, a autora vê o desdobramento do escritor como empreendedor de si no esforço dos autores para sustentar sua atividade literária. “Um livro ou uma obra vai se tornando refém da pessoa – e, publicitariamente, da persona – que o escreveu”, diz Souza, apontando para o que chama de “blogueirismo compulsório”, que, segundo ela, ““impacta na atividade literária em si”. Como consequência, esse pensamento me leva à seguinte questão: qual texto se sustenta sozinho hoje? Melhor dizendo, quais textos são capazes de chegar aos leitores sem a influência ativa da persona – nos casos de fama e engajamento – e/ou do trabalho de difusão incansável da pessoa do autor? Quais textos ainda merecem ser lidos anonimamente ou no regaço de um pseudônimo qualquer?”
Se Souza desconfia do fato de que leitores estão em extinção, que vivemos numa sociedade que substitui leitura por likes, em que o “escrever por escrever também não soluciona”, fico pensando no que Souza diria do outro Souza que descobri, o escritor campeão de obras escritas na plataforma Clube dos Autores, onde publico meus livros: Vitor Amadeu de Souza, que possui ali 10.079 livros escritos. Você leu direito: mais de dez mil livros. O escritor brasileiro simplesmente botou no bolso o também escritor brasileiro José Carlos Ryoki de Alpoim Inoue, que publicou 1.127 livros, até agora o campeão de publicações no mundo segundo o livro dos Records ou Guinness World Records. Sir Hugh Beaver, então diretor da cervejaria Guinness e seu criador no ano de 1955, certamente se espantaria com o país que possui dois escritores na lista dos maiores do mundo e onde existem 9,1 milhões de pessoas analfabetas, que não sabem nem ler nem escrever, e 29% da população analfabeta funcional, ou seja, reconhece letras e números, mas é incapaz de se expressar pela escrita.
O escritor de faroeste de bancas de jornais
Primeiro o oficialmente reconhecido como campeão de livros. Sabemos quem é Inoue graças à reportagem de Lais Coelho à Revista Piauí (disponível em https://abre.ai/nSrB). Descendente japonês nascido em Campos do Jordão em 1946, escreveu em 7 dias 200 páginas da obra “Onde está Pablo Escobar?”: “”Vendi 400 exemplares só no lançamento, um dos melhores que já fiz. Nem precisava tanta pressa: o traficante só foi pego mais de um ano depois”, diz a reportagem. Inoue publicou 1.106 livros em 25 anos. “Seu milésimo centésimo sétimo volume – as memórias eróticas de um velho tarado – está a caminho”. Ficou famoso pelos livros de faroeste enxuto, “Os Colts de McLee”, romance escrito integralmente à mão em trinta dias para a editora Monterrey, fez sucesso em bancas de jornal e, tempos depois, valeu ao autor uma proposta da Editora Abril. Foi essa linha de publicações de faroeste de banca de jornal que lhe rendeu um lugar no Guinness Book, o livro dos recordes, quando então tinha um “contrato em mãos e o dever de produzir quase um livro por dia útil”. Mas quem escreve tanto também é vítima do destino. “Depois de muito tempo lutando contra a repetição, ele concluiu que o melhor a fazer era se entregar a ela. A partir de um determinado momento de sua obra – que ele, compreensivelmente, já não sabe dizer quando foi –, todos os barmen passaram a se chamar Larry, todos os xerifes viraram Masterson e todas as prostitutas latinas, Dolores. Mas o autor faz questão de frisar que só mantinha os nomes. “Os personagens eram diferentes.”
Para escrever tanto, é preciso método. Eu tenho 26 livros publicados, pois meu método, além de ser baseado em escrever tudo o que digo em palestras, foi reunir tudo o que escrevi na vida, processo que já narrei em Como se faz um Ensaio e Sem indicação de importância (disponível em jorgebarcellos.pro.br). Artigos de jornais, trabalhos de faculdade, palestras, transcrição de entrevistas, tudo. É claro que escrevi muita coisa que me levou tempo, como a tese de doutoramento (ao menos dez anos) e outras rapidamente (meu livro sobre a pandemia levou quatro meses). Hoje meu método principal para publicar livros é reunir o que escrevo para portais como Sler e reunir periodicamente em livros, exatamente como faz Slavoj Zizek, que muitos admiram. Se ele pode, eu também posso. Os livros e autores são diferentes, cada um faz como pode. Não é preciso passar décadas para fazer um bom livro. E eu escrevi muito sobre a história da capital para exposições e palestras e, por isso, meu próximo livro será sobre História de Porto Alegre com essa produção. Terá 700 páginas. Cada um escreve do jeito que pode. O que me surpreende em Souza é a quantidade de livros escritos.
Diz Lais Coelho que o método de Inoue envolve escrever todo o tempo. Sua mulher até hoje se choca ao lembrar como ele conseguia conversar sobre as compras do mês ou as contas a pagar enquanto digitava os livros. “Ele fazia isso sem perder o fio da meada e sem errar”, disse ela. “Parecia possuído”. Quando, nos anos 90, o diário The Wall Street Journal mandou um correspondente passar um dia ao lado do escritor para vê-lo produzir um livro, registrou: “Ele produz capítulos inteiros durante suas idas ao banheiro”, relatou o jornalista Matthew Moffett, após ficar das 23h às 5h30 ao lado de Inoue. Na ocasião, o brasileiro pariu Sequestro Fast-Food, romance de 210 páginas que acabou publicado pelo jornal americano e cujo protagonista foi baseado no repórter.”
O campeão de livros do mundo
Penso nele e em mim mesmo quando vejo a produção de Vitor Amadeu de Souza. Como é possível alguém publicar mais de dez mil livros na vida e o que isso diz do mundo em que vivemos? Mil como fez Inoue já acho um colosso, mas mais de dez mil? As obras de Souza estão listadas em sua página no Clube dos Autores (disponível em https://abre.ai/nSsl). Passo lá para conferir e vejo que sua apresentação é a mesma do seu LinkedIn (disponível em https://abre.ai/nStI). Com também achei um currículo inacreditável, transcrevo-o aqui: “Doutorando em Engenharia de Defesa, mestre em Física (CBPF), especialista em Eng. Robótica, Eng. Elétrica, Eng. Eletrônica e Eletromecânica, Eng. Telecomunicações, Eng. Controle e Automação, Eng. Biomédica, Eng. Instrumentação, Eng. Automotiva, Eng. Industrial 4.0, Eng. Dados, Eng. Computação, Eng. Software, Eng. Redes e Segurança de Dados, Eng. DevOps, Eng. Mecatrônica, Eng. Sistemas embarcados, Eng. Manufatura mecânica, Eng. Confiabilidade, Eng. Manutenção, Eng. Qualidade, Eng. Materiais, Eng. Produção, Eng. Produto, Eng. Embalagem, Eng. Transportes, Eng. Rodoviária, Eng. Suprimentos, Eng. Conhecimento, Eng. Negócios, Eng. Projetos, Eng. Energias Renováveis, Eng. Processos, Eng. Metalúrgica, Eng. Química, Eng. Ambiental, Arquitetura de Software, Cloud Computing, Machine Learning e IA, Internet das Coisas, Ciência de Dados, Full Stack, Estatística Aplicada, Bioestatística e Gerenciamento de Projetos, MBA em Eng. Econômica, Análise de Dados e Web 3.0. Bacharel em Engenharia de Computação, licenciado em Matemática, Física, Química e Filosofia, analista de sistemas e técnico em eletrônica, eletrotécnica, telecomunicações, informática, logística, comércio, administração e meio ambiente, atuando na área de projetos elétricos, eletrônicos, automação, sistemas embarcados, firmware e software há vários anos.” São, se contei certo, 58 títulos acadêmicos, de especialização à doutoramento. Eu fiz duas formações, aliás, três, considerando a formação inicial em história, e o mestrado e doutorado em educação e quase morri. Como alguém consegue fazer 58 especializações, eu juro que não sei.
Pensou que acabou? Ainda não. Ele define sua área de trabalho assim: “Desenvolvo projetos de hardware e software voltados para a área industrial, automotiva, médica, científica, comercial, automação, dentre outras, sob demanda. Professor universitário e administrador da Cerne Tecnologia, empresa voltada para desenvolvimento de projetos embarcados, comercialização de kits didáticos e educação tecnológica na área de MCU, FPGA, linguagens de programação, desenvolvimento de projetos e layout de circuito impresso. Ao longo dos anos, escrevi vasto acervo literário técnico e científico, além de ser associado ao SBC e SBIC. Alguns temas abordados: DFT, FFT, PDS, CAN, MODBUS, LIN, TCP/IP, filtros digitais, sistemas digitais, sistemas de potência, big data, grafos, PID, fuzzy, FPGA, VHDL, Verilog, CLP, DSC, DSP, ARM, inversor de frequência, soft-starter, energia solar, IoT, LoRa, Java, PHP, JS, REST, Spring Boot, Spark, CSS, SQL, VB, VC#, perceptron, robô NAO, UML, React, dentre outros”. Das expressões acima, a partir da sigla SBC, confesso que não entendi nada, só ouvi mesmo falar de Java como linguagem de programação e olhe lá. Eu queria pedir desculpas ao próprio autor se acaso ler este ensaio por minha ignorância. Eu queria que ele entendesse que não estou desfazendo de sua produção, que é enorme, mas estou usando o seu caso para exemplificar os sentidos da produção em geral, da de livros em particular, e como isso expressa o significado do excesso de objetos que criamos na atualidade. O que é isso e como vejo é o tema das próximas linhas.
Pode ser até mais de dez mil livros
Já disse que o que mais chama a atenção em Souza é o tamanho de sua produção e olha que fiquei na dúvida no total. É que, apesar de a apresentação de sua própria página citar o número de 10.079 livros, quando vamos ao link em que o autor lista suas obras completas, o número se eleva para 14.838 livros ou resultados. “Bem que achei que 10 mil era pouco”, penso sorrindo. Faça você mesmo a sua exploração. O primeiro livro de sua página no Clube dos Autores é “Engenharia Disciplinada de Software: Fundamentos e Aplicações em Java, Parte III” (disponível em https://abre.ai/nStX). Quando você vai aos detalhes, começa a entender um pouco melhor o método do autor. A obra tem 25 páginas (25!), brochura com orelha no tamanho A5. Nela, o autor tem como objetivo “apresentar, de forma prática e fundamentada, a aplicação da Engenharia Disciplinada de Software utilizando a linguagem Java. A proposta é unir conceitos teóricos sólidos com exemplos reais, permitindo que o leitor compreenda não apenas “como fazer”, mas também “por que fazer” de maneira estruturada e orientada a boas práticas.” O autor disponibilizou as primeiras 8 páginas das 25 para o leitor interessado. Vejo que os direitos são do autor e da empresa Cerne Tecnologia de Treinamento, que suponho seja sua, onde trabalha e produz os seus textos. Eu entendo isso. Eu mesmo fiz meus livros como produto de minha atividade de trabalho, primeiro reunindo as palestras que dava como servidor do Memorial da Câmara e após, da Escola do Legislativo. Se você trabalha num lugar e tem oportunidade de fazer palestras ou dar aulas, reunir seus escritos em livros é decorrência apenas da sua capacidade de organização. Eu tinha. E pelo visto, Souza também. Já vi professores darem aulas magnificas, mas não serem capazes de prepará-las de modo as transformarem em livros, o que entendo é uma lástima, já que suas aulas eram excelentes. Cada um sabe de si não? Esta obra de Souza é recente, de agosto do corrente ano, dedicando-se a divulgar os recursos de aprendizado que sua escola possui para trabalhar com peças de computadores em geral e a introdução, praticamente reproduzida identicamente na apresentação do livro no site.
Reproduzo aqui o primeiro parágrafo do primeiro capítulo que trata da chamada Engenharia Disciplinada de Software. Seu título I é intitulado “Switch statements” e inicia com a seguinte expressão: “Switch statements exaustivos para enums são estruturas de decisão em que cada constante do enum é tratada explicitamente, sem recorrer a um ramo default. A ideia é tornar o código à prova de mudanças silenciosas: quando alguém adiciona um novo valor ao enum, o compilador deve acusar que há locais onde esse novo caso ainda não foi contemplado. Em Java moderno, isso é obtido de forma mais segura com switch expressions (Java 14+); se você cobre todas as constantes do enum e não declara default, o código compila; mas se amanhã surge uma constante extra, a expressão deixa de compilar até que você acrescente o novo caso”. Eu não sei quanto a você, mas eu não entendi nada. Então, pedi para a AI Perplexity, a quem já agradeço, traduzir para que possa ser entendido por uma criança de cinco anos e ela me retornou com o seguinte: “Imagine que você tem uma caixinha de surpresas com poucas bolas coloridas: vermelha, azul e amarela. Você quer falar para um amigo o que fazer com cada bola: a vermelha é para chutar, a azul para lançar para cima e a amarela para abraçar. Um “switch exaustivo” é como você garante que falou direitinho o que fazer com cada bola, sem deixar nenhuma de fora. Se um dia alguém colocar uma bola verde nova na caixinha, seu amigo vai perceber que você não contornou o que fazer com ela e vai te avisar para você ensinar a ele. Assim, ninguém fica brincando errado sem perceber! Quer tentar explicar para mim o que cada bola faz? Assim praticamos juntos!”
Realmente, agora faz sentido para mim! (risos). Ainda assim, vendo a página indicada de obras do autor, como aparece no Clube dos Autores e como ele a indica, ainda aparecem diferenças na lista de apresentação das obras. Faço esta pesquisa para saber qual sua última obra publicada. Na página de obras do autor, a obra que aparece em primeiro lugar, e, portanto, deveria ser a última, é “Implementando Super-Resolução de Imagens Programado em Python” (disponível em https://abre.ai/nSvK). Esta já é bem maior, com 120 páginas sobre o tema. Vou à página 332 da, sua lista de obras com o objetivo de encontrar sua primeira obra publicada pelo Clube dos Autores. É “Apresentando uma lista de Irmandades Religiosas com display LCD programado no Arduino” (disponível em https://abre.ai/nSvN). A obra tem 20 páginas no tamanho A5 e me surpreende que tenha sido publicada em 23 de dezembro de 2019. Primeiro porque, na época em que nós nos recolhemos para passar o Natal em família, o autor passou escrevendo sua primeira obra do site. Segundo porque, se for assim, considerando o período de 2019 a 2025, foram 6 anos para escrever, ou 70 meses, digamos, por baixo, os 10.079 livros, e resulta que o autor produziu 139,986 livros por mês, que eu tomo a liberdade de arredondar para 140 livros (decimal acima de 9, que me lembro da quinta-série, pode arrendondar) o que resulta em 4,6 livros por dia, o que, de novo arredondando, dá 5 livros por dia. Lembrando que, para colocar um site, mesmo no Clube dos Autores, você precisa, além de escrever, diagramar, produzir os arquivos para o livro, levar os arquivos para a plataforma, escrever os dados dos livros nas respectivas páginas etc. Não é pouca coisa.
Uma produção inalcançável
Souza fez 5 livros por dia em 6 anos; eu fiz 26 livros em 30 anos, o que dá meros 1,1 livro por ano enquanto ele fazia 140. Acabo de me ver sendo jogado na lata do lixo dos escritores, mas de fato, não devemos comparar a produção de autores. Fazemos livros para atender nossas necessidades de expressão, e, se houver leitores, tanto melhor. Nem sempre há. Fazemos livros para organizar nosso trabalho, nosso legado no mundo, para um público que, pelo menos eu, não faço ideia de quem seja. É o direito de escrever, como o de ler. E isto basta. Mas confesso que me considero surpreso pela façanha de Souza. Há uma desigualdade aqui: eu sei que há autores que se esforçam a vida inteira e só fazem um livro. Pergunto de novo a IA Perplexity exemplos e ela me lembra que Emily Brontë, escreveu apenas O Morro dos Ventos Uivantes, publicado em 1847, um clássico da literatura inglesa; que Edgar Allan Poe, famoso por seus contos, escreveu apenas um romance completo, A narrativa de Arthur Gordon Pym, publicado em 1838, inclusive, que não gostou; e Giuseppe Tomasi di Lampedusa, escreve uma única obra também, o clássico O Leopardo, sobre a decadência da nobreza italiana, informações que mais uma vez agradeço à Perplexity. Souza não: em seis anos, escreveu mais de dez mil livros.
Eventualmente, poderia se argumentar que as obras de Souza não são livros porque não contêm ficha catalográfica e ISBN, o que poderia ensejar críticas às publicações, mas, de fato, elas possuem todos os demais elementos, como capa, contracapa, lombada, folha de rosto, considerados essenciais para definir um livro e por isso esta discussão perde sentido. A verdade é que seu autor escreveu suas obras para que fossem seus livros, o que é seu direito inalienável, ainda que, suponho, sejam mais apostilas relativas aos cursos que ministra para seu público. Não significa, entretanto, que não seria interessante para Souza ter os elementos que faltam. Por exemplo, o fato de não ter ISBN, algo facultativo para os livros, ainda assim impede suas obras de acessar mercados formais, controle editorial, presença em livrarias e bibliotecas, já que funciona como uma espécie de RG do livro. Os meus poucos 26 livros têm, o que fala apenas de mim, de que sou um pouco compulsivo com os detalhes.
Há, todavia, uma abordagem mais interessante para analisar o exemplo da produção de Souza, que é atravessá-la pelo pensamento filosófico moderno. Entendo que há três filósofos que podem dizer algo do significado social da produção de Souza e que aqui reconstruo parte de suas abordagens. O primeiro e principal, é Georges Bataille, com sua noção de “excesso”; os demais colaboram com sua visão, como o segundo, Jean Baudrillard, com sua noção de “objeto”, e finalmente, o terceiro é Paul Virilio, com sua noção de “desaparecimento”. Eu entendo que as noções destes autores ajudam a compreender a produção de Souza: a minha tese é que, num mundo dominado pela obsessão da produção, inclusive a de livros por autor sofre da demanda de excesso, que, entretanto, possui um efeito paradoxal, de levar ao desaparecimento do próprio autor. Senão, vejamos.
Georges Bataille (1897-1962) foi um notável escritor francês conhecido por obras do campo da literatura, mas também da filosofia, antropologia, economia, sociologia e história da arte. Conhecido por seu clássico O erotismo, suas obras abordam a transgressão e o sagrado em parte sob a influência do pensamento de Marcel Mauss. Em A parte maldita (Imago, 1975), Bataille nos introduz em sua noção de excesso. Na introdução a obra, Jean Piel afirma que Bataille é um autor dominado pelo sentimento de que este “mundo… era para ele apenas um túmulo”, exatamente como vejo, em termos da escrita, a coleção de Souza. Essa é uma visão muito pessoal presente em autores como Walter Benjamin, também preocupado com os monumentos de barbárie que criamos ao nosso redor. Como representamos o mundo a partir de um autor e sua produção? Da mesma forma que Bataille fundamenta na primeira parte de A parte maldita, e que precede a intitulada, A noção de despesa, onde fundamenta sua visão de mundo em que não a produção, mas a despesa improdutiva predomina. É nesse sentido que vejo a obra de Souza como seu equivalente em livros. É o tal “excesso do mundo”, de que se refere Bataille. Diz Piel de Bataille que “Segundo o autor, grande número de fenômenos sociais, políticos, econômicos, estéticos [são excesso]: o luxo, os jogos, os espetáculos, os cultos, a atividade sexual desviada da finalidade genital, as artes, a poesia no sentido estrito do termo são manifestações da despesa improdutiva” (p. 17), argumento que, transporto para a produção de Souza, significa que ela também é marcada pelas circunstâncias que preside sua produção em nosso mundo, isto é, são vítimas da ideia batailleana de excesso como razão do mundo. No mundo da produção, é como a energia solar: ela é dada sem contrapartida, paradigma que possui efeitos para a atividade econômica que não cessa de produzir “uma energia que só pode ser desperdiçada na exuberância e na ebulição” (p. 19). Queremos fazer coisas, objetos, mercadorias e livros como se fosse a luz solar de que fala Bataille, dados sem contrapartida e ilimitados no sonho capitalista. Mas isso tem consequências.
Um excesso de livros
Bataille propõe sua noção de excesso da produção material a partir do excedente de energia e eu encontrou sua contrapartida na produção de livros de Souza. Como todos os demais produtos da revolução industrial condenados à sua possibilidade infinita de crescimento, o mundo não é marcado pela falta, mas pelo excesso de produção, inclusive literária. Souza acredita estar de acordo com as regras do mundo, de produzir mais e em excesso quando produz mais de dez mil livros em sua trajetória; mas quem garante que a leitura, seu consumo, seja eficaz? Eu mesmo, com minhas 26 obras escritas, sei dos limites de leitura de minha produção, jamais me foi facultado chegar a ser um autor de mercado como Paulo Coelho com milhares de livros vendidos, isto é, que tem público. Bataille critica esse mundo como o da “realização inútil e infinita” de mercadorias, de objetos, onde eu incluo os livros de Souza. O que leva um autor a realização do projeto de escrever mais de dez mil livros em uma vida? Na visão de Bataille lembra a aproximação que o autor faz das crises de superprodução que antecederam os períodos de guerra. Essa economia é diferente daquela da falta, em que o crescimento é visto como algo desejável: não é exatamente o contrário que nos prova a economia desses itens de Shein e outras plataformas vendidos direto da China aos milhares em nossas lojas de tudo por 1,99? Em termos econômicos, é como se a produção excedente tivesse assumido o lugar da lógica econômica e chegasse, no caso de Souza, na produção de excedente em termos de livros.
Aqui, Bataille transpõe a teoria da dádiva formulada por Marcel Mauss do plano antropológico para o econômico. Essa teoria diz que, frente ao excesso, a sociedade precisa compartilhar. Um mundo que produz em excesso não se imagina doente, mas é porque, nos termos de Bataille, “é incapaz de justificar utilitariamente sua conduta” (p. 28), exatamente como não consigo imaginar Souza explicando a necessidade do mundo por seus mais de dez mil livros – eu mesmo as vezes fico em dúvida para justificar a existência de algumas das minhas 26 obras. Podemos imaginar a necessidade de seus cursos de materiais auxiliares, podemos imaginar a formação de Souza com seus 56 cursos de pós-graduação como uma exigência de seu trabalho profissional, mas o que eu recuso é aceitar isso como uma atividade normal do ato de escrever no mundo. “Vamos lá, Jorge, escrever 10 mil livros não pode ser tão difícil”, diria Souza parafraseando o filósofo esloveno Slavoj Zizek.
Adiantando as hipóteses futuras, eu diria que não, isso não é algo natural, e só posso intuir que é produto da redução que fazemos do mundo a processos de produção infinita, produção de objetos infinitos como sugere também Jean Baudrillard, mas não podemos reduzir a atividade literária à produção infinita de livros por autor. Num mundo futuro distópico em que cada escritor escreverá dez mil livros, então não haverá mais autores pelo simples desaparecimento do leitor, o que tem como consequência, o desaparecimento do autor, como a obra de Paul Virilio me sugere. Essa produção infinita de obras que se dedicam a poucos ou mínimos leitores é parte dessa despesa improdutiva de que fala Bataille, desse excesso do mundo, como é o luxo, as guerras, as atividades que são improdutivas, pois não têm meio termo. É improdutiva não por ser ausência de fim, mas porque é incapaz de assumir a perda de sentido que possui como produção, de energia, de tempo, de papel dispendido – sim, são livros.
O princípio da despesa
Na teoria econômica de Bataille, as formas da produção têm seu fim em si mesmas e são chamadas de despesa. Com isso, Bataille cria um princípio de perda incondicional que contraria o princípio da despesa compensada pela aquisição. Bataille quer contrapor o uso racional de uma ao uso irracional de outra. Qual o fim ou utilidade de produzir mais de dez mil livros que terão pouca função social? Por mais que precisemos de livros de tecnologia, Bataille sugere a ideia pavorosa de que a carência de livros não é suficiente para nos preocuparmos com sua produção infinita, se esta despesa não se completa um processo de aquisição, a troca não finaliza. Bataille está profundamente influenciado pelo texto de Mauss sobre o potlatch, de seu Ensaio sobre o Dom, situação da troca arcaica das sociedades primitivas em que o excedente é distribuído numa festa. Só o potlatch resolve o problema do excesso de produção “pela constituição de uma propriedade positiva da perda – da qual decorrem a nobreza, a honra, posição na hierarquia – que dá a essa instituição seu valor significativo. A dádiva deve ser considerada como uma perda e, assim, como uma destruição parcial, sendo o desejo de destruir remetido em parte para o donatário” (p. 35), diz Bataille. Eu sei o quanto é difícil para Souza destruir o que escreveu, como o é para mim: tenho publicações de escritos da graduação, que uma professora já disse que deveria descartar: eu os revisei, atualizei, num esforço supremo de publicação. Talvez não tivesse necessidade disso. Mas eu faço a festa de que fala Mauss: eu disponibilizo gratuitamente em meu site meus livros. Nesse sentido, eu os destruo como fonte de meus próprios lucros, e nesse sentido, aceito a destruição parcial do objetivo de publicar na sociedade capitalista. Talvez meu exemplo sirva para Souza: desses dez mil livros, talvez ele devesse descartar alguns, deixar acessível gratuitamente outros, produzindo essa “perda, assim como uma destruição parcial”.
Bataille afirma que no excesso, a variação das formas não provoca alteração das características fundamentais desses processos cujo princípio é a perda. Perda do quê? Do tempo do autor, preocupado em até o mínimo registro transformar em livro; do espaço da própria plataforma, para armazenar cerca de 10 mil arquivos de livros e dar conta de sua impressão; do tempo do leitor, em buscar entre dez mil livros aquele que é do seu interesse; pelo valor improdutivo que seu autor imagina atingir resgatado por Bataille como “o mais absurdo e ao mesmo tempo o que mais aumenta a avidez, é a glória” (p. 45). Como o próprio filósofo, que reconhece que, ao escrever um livro, emprega uma energia que, no fim de contas, “só pode ser desperdiçada” (p. 51), Souza emprega sua energia e tempo no trabalho da produção de mais de dez mil livros, essa mesma vontade do filósofo de “aumentar a soma dos bens pertencentes à humanidade” (p. 51). Para quê? Como os do filósofo, são livros que ninguém espera, que não respondem a nenhuma pergunta formulada, mas, ainda assim, diferente dos de Bataille, que ainda se distinguem porque procuram solução para problemas políticos, os de Souza servem para produzir sua glória como escritor. Espero estar errado.
Um problema de excesso
Ainda que Bataille se refira em sua teoria do excesso a recursos energéticos, ele deixa aberta a possibilidade dos efeitos do que é “trabalhar em excesso”, o que refere-se à própria capacidade de se inserir no mundo. Mas, se um organismo não pode acumular indefinidamente seu excesso de recursos, como entende Bataille, não se aplica também ao fato de a autoria acumular indefinidamente livros? Não parece aqui, neste sentido, o mesmo ponto que Jean Baudrillard usa para definir o excesso de realidade – e que, em algum momento, o próprio filósofo irá aproximar da forma do “câncer”, do organismo que se expande sem controle? Ao produzir livros em excesso, entendo que Souza encarna essa imagem daquele que acumula indefinidamente seu excesso de livros também. Qual é o destino dessa obra? É a pergunta que serve tanto para Souza como para Bataille. Aqui, o excesso não é apenas energia, mas a produção de material, no caso, livros.
O segundo autor que entendo oferece uma perspectiva para compreender o significado da produção de Souza é o sociólogo e filósofo francês Jean Baudrillard (1929-2007). Em sua obra A sociedade de consumo (Edições 70, 1995), ele, que se inspirou em Bataille, mas não somente nele para formular sua teoria do consumo, nos traz uma perspectiva interessante: no mundo consumista de Baudrillard, ele vê o homem rodeado de objetos, como vejo Souza rodeado de livros. E sua abordagem sugere a ideia de que com essa imensa obra em livros é como se as relações sociais de Souza já não estivessem mediadas pelo laço com seus semelhantes, sequer seus alunos, mas por um plano estatístico ascendente de produção de obras. No sentido dado por Baudrillard, Souza já se tornou funcional, vivendo menos na proximidade com os outros e mais na presença dos livros que escreve. Baudrillard concorda com o argumento do excesso de Bataille, expandindo-o para os objetos em geral “obedientes e alucinantes que nos repetem sempre o mesmo discurso – isto é, o do nosso poder medusado, da nossa abundância virtual, da ausência mútua de uns aos outros” (p. 17). Souza vive, nos termos de Baudrillard, no tempo dos objetos-livros, existe segundo seu ritmo e sua sucessão. Ele os vê nascer, produzir-se e morrer, ao contrário das civilizações anteriores, diz Baudrillard, que “queriam os objetos, instrumentos ou monumentos perenes, que sobreviviam às gerações humanas” (p. 18). Escrevi 26 livros, mas não sei quais sobreviveram a mim mesmo, à minha morte, algo que já disse em artigos no passado; Souza parece escrever como se suas obras o transcendessem.
Baudrillard vai além de Bataille em sua visão dos objetos, pois os vê como algo que vai além da lei do valor de troca. Na profusão de objetos de Baudrillard, localiza-se a profusão de livros de Souza. Talvez para armazenar os mais de dez mil livros de Souza precisemos de armazéns como já temos para todos os produtos vendidos pela Shopee e Amazon, e é esse amontoamento de mercadorias que Baudrillard critica que serve de argumento para criticar o amontoamento de livros de Souza: “a esperança violenta de que não haja o bastante, mas o demasiado, e o demasiado para toda a gente, lá está (…) e semelhante discurso metonímico, repetitivo, da matéria a consumir, da mercadoria, transforma-se, graças a grande metáfora coletiva e por meio do próprio excesso, na imagem do dom, da prodigalidade inesgotável e espetacular, que é peculiar a festa (p. 17).
Para Souza, esse amontoamento de livros disponibilizados em um portal de autopublicação é essa forma rudimentar do amontoamento que Baudrillard localiza na ideia de coleção. Esses livros que remetem uns aos outros também são o equivalente literário da loja de magazines como a Renner e tantas outras, em que cada objeto alude a outro e assim sucessivamente. “Viva a Renner, agora na onda da sustentabilidade”, e por aí por fora. Os objetos hoje, diz Baudrillard, só evocam a superabundância porque indicam uns aos outros, e daí a reação psicológica que seu contexto provoca no consumidor. Eu mesmo experimentei em muitas obras essa ideia de coleção: meus livros na linha “O Olho” (de Cristal, do Crocodilo, de Deus) estão ali para remeter-se a um projeto do olhar. “Raros são os objetos que hoje se oferecem isolados, sem contexto de objetos que os exprimiam” (p. 17), diz Baudrillard.
Finalmente, o último autor a colaborar numa visão ampliada da obra de Souza é o filósofo e urbanista Paul Virilio (1932-2018). Em sua obra Estética da Desaparição (Contraponto, 2015), fala de um “homem deslumbrado consigo mesmo [que] fabrica o seu duplo, seu espectro inteligente, e confia o entesouramento do seu saber a um reflexo”. O paradoxo das transformações suscitadas pela virtualização generalizada que a proliferação das redes produz é o que o autor chama de apatheia, “essa impossibilidade cientifica que faz com que, quanto mais informado é o homem, mais se estenda ao redor dele o deserto do mundo e mais a repetição da informação (já sabida) desregule os estímulos da observação”. É uma obra de estética porque Virilio está preocupado, a partir do cinema, em descrever os mecanismos da percepção nesta obra, mas a tese da desaparição do sujeito é notável aqui, pois justamente, é vinculado a produção do conhecimento. Souza provavelmente não teria tido a oportunidade de publicar as mais de dez mil obras que publicou se não fosse a internet e suas plataformas; sua produção, se revela também o deslumbramento do autor consigo mesmo, é exatamente porque é uma biblioteca que simula sua persona. Já não se trata do “o homem é o que ele come”, popularizado na Alemanha pelo filósofo Ludwig Feuerbach em 1863 na expressão “Der Mensch ist, was er isst”. “Agora, você é o que você escreve”. Mas Souza leva ao extremo isso, inaugurando sua própria apatheia e criando, infelizmente na minha opinião, um deserto de leitores ao seu redor.
A conclusão é que, se cedemos aos imperativos produtivistas do capital, se tomamos suas regras de produção de forma literal, produzimos tudo em excesso: bens, produtos, mercadorias e livros. Volto para a questão de Priscilla Machado de Souza: o outro Souza, nosso autor de 10.079 livros, seria capaz de divulgar cada uma de suas obras? De certo que não. O que é novo é que o exemplo de Souza nos demonstra o caso concreto de levar ao extremo os princípios do capitalismo neoliberal. Byung Chul Han, que recentemente recebeu o Prêmio Princesa de Asturias 2025, disse que, como reação ao consumismo, ao individualismo capitalista e ao produtivismo, deveríamos promover “mais festa e mais sesta”, para se contrapor a sociedade do desempenho neoliberal, o que me levaria a dizer a ele: Souza, pare de escrever tanto, vá descansar um pouco, vá aproveitar a vida, meu caro!
Publicado originalmente Sler.
*Jorge Barcellos é graduado em História (IFCH/UFRGS) com Mestrado e Doutorado em Educação (PPGEDU/UFRGS). Entre 1997 e 2022 desenvolveu o projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal. É autor de 21 livros disponibilizados gratuitamente em seu site jorgebarcellos.pro.br. Servidor público aposentado, presta serviços de consultoria editorial e ação educativa para escolas e instituições. É casado com a socióloga Denise Barcellos e tem um filho, o advogado Eduardo Machado. http://lattes.cnpq.br/5729306431041524
Foto de capa: Vitor Amadeu Souza (Reprodução Linkedin)




