Por MARCIA BARBOSA*
Hipátia vivia na cidade de Alexandria, no Egito. Dizem que nasceu no século IV depois de Cristo. Era uma cientista que ensinava filosofia e matemática, observava o céu com instrumentos que ela mesma construía e ensinava seus alunos e colegas a fazerem o mesmo. Uma pensadora incomum, respeitada pelos colegas, que gozava de popularidade entre os habitantes de Alexandria e tinha influência no poder público. A mudança do eixo político com o ingresso de um bispo mais conservador trouxe problemas para ela. Uma mulher livre e independente não representava o perfil desejado por algumas alas do catolicismo que se fortaleciam — eles preferiam uma ‘mulher bela, recatada e do lar’. O crime de Hipátia era ser disruptiva.
O bispo e seus aliados iniciaram um processo de difamação contra a cientista, espalhando boatos de que ela estaria envolvida em cultos satanistas e insuflando a população cristã. Em um ato de profunda violência, a turba apedrejou a pesquisadora em um antigo templo pagão, que fora transformado em igreja cristã. Numa tentativa de apagamento, o bispo e seus seguidores procuraram destruir todas as suas contribuições, mas a ciência é resiliente. Hoje, conhecemos muito sobre ela graças aos escritos de colegas e estudantes.
O conceito de ‘fake news’ não é uma criação do século XXI nem das redes sociais. Sempre foi uma forma de justificar a violência contra quem ousa romper barreiras. Hipátia, assim como a maioria das alquimistas da Idade Média, foi considerada digna de morrer por ser uma mulher livre. Essas cientistas não apenas propagavam a verdade inconveniente — elas eram a verdade inconveniente. A partir delas, teceu-se a rede que sustenta o feminismo: essa ideia revolucionária de que mulher é gente.
Hoje, o mundo enfrenta crises no clima, na saúde, na pobreza, na fome e na democracia, cujas soluções só serão possíveis se toda a diversidade de gênero, raça, etnia e regionalidade for considerada na busca por saídas. A diversidade é um instrumento de eficiência [1] e de inovação disruptiva [2], fortalecendo-se quando barreiras são rompidas.
Mulheres livres, como Hipátia, fazem exatamente isso: rompem com comportamentos tradicionais, inovam no conhecimento, na ação e na linguagem, transformando o mundo. Grupos hegemônicos, acostumados a um mundo de privilégios e sem competição, temem justamente essa mudança — e, desse processo, nascem as redes de ódio. A revolução das mulheres livres é um caminho sem retorno. O gás saiu do balão, e para que ele naturalmente voltasse, seria necessário violar a segunda lei da termodinâmica. E, neste universo, ninguém viola a segunda lei da termodinâmica.
Referências
[1]Vivian Hunt Dennis Layton Sara Prince, Diversity Matters, McKinsey & Company, 2015. Acesso em: https://www.mckinsey.com/insights/organization/~/media/2497d4ae4b534ee89d929cc6e3aea485.ashx
[2] Bas Hofstra, Vivek V. Kulkarni, Sebastian Munoz-Najar Galvez and Daniel A. McFarland, The Diversity-innovation Paradox in Science, PNAS, 117, 9284-9291 (2020). Acesso em:
*Marcia Barbosa é Professora do Instituto de Física da UFRGS.
Foto de capa: Reprodução
Respostas de 2
Desculpa, mas onde as mulheres são livres?
Lindo texto!
Que vivam sempre as “bruxas” que existem dentro de cada mulher!!!
Que jamais sejam silenciadas por nenhum homem e, principalmente, por nenhuma mulher!