José Mujica não se foi

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Kaloian / Ministerio de Cultura de la Nación, CC BY-SA 2.0 , via Wikimedia Commons

Por Paulo Baía*

Há ausências que não se instalam no vazio, mas no coração ardente de quem compreendeu a dimensão do humano em sua forma mais plena. José “Pepe” Mujica não se foi — ele se distribuiu. Espalhou-se nas consciências inquietas, nos espíritos indomáveis, nas mãos calejadas de quem insiste em semear justiça mesmo sob tempestades. Sua vida foi mais do que trajetória: foi travessia. E como todo aquele que atravessa a existência de forma sincera, deixa pegadas que o tempo não apaga, porque foram feitas na argila dos sonhos mais profundos da humanidade.

Não era apenas um presidente; era um homem que recusou os privilégios do trono e escolheu o chão. Sua grandeza não se media em títulos ou palácios, mas na coerência entre o que dizia e o que fazia. Mujica era o gesto que abraça antes da palavra que promete. Foi capaz de demonstrar que a verdadeira liberdade está na renúncia ao excesso, na comunhão com o essencial, no desapego das vaidades que arrastam tantos ao abismo da indiferença. Era, antes de tudo, um livre — e por isso nos ensinou o que é, de fato, viver.

Na simplicidade que cultivava como filosofia, encontrava-se a mais refinada sabedoria. Mujica viveu sem ornamentos, mas com dignidade exuberante. Foi militante da esperança, artesão do possível, caminhante do improvável. Sua história não é apenas a de um guerrilheiro que se tornou estadista; é a de um ser humano que compreendeu, talvez melhor que muitos, que a política só faz sentido quando está a serviço da ternura, da justiça e do cuidado com a vida. Ele nos mostrou que a ética não é um conceito abstrato — é um modo de estar no mundo.

Agora, que não mais ouviremos sua voz rouca rompendo as superficialidades do presente com verdades profundas, resta-nos a vibração do que ele semeou. O sentimento que nos atravessa não é apenas saudade — é continuidade. Porque ninguém como Mujica soube nos mostrar que as ideias não morrem, que os valores não adoecem, que o afeto não se enterra. Ele segue conosco, na indignação que não silencia, na solidariedade que insiste, na liberdade que arde no peito dos que não se renderam.

José Mujica foi também um amigo do Brasil — um irmão de lutas, de causas, de utopias. A juventude o amava porque reconhecia nele o raro encontro entre coerência e coragem. O povo o aplaudia porque enxergava em seus olhos um espelho da própria dignidade. Sua presença era a presença da resistência ética diante do cinismo do poder. Sua ausência agora nos envolve como um manto de responsabilidade: manter vivo o fio de esperança que ele nos confiou.

Não se despede de alguém como Pepe com lágrimas apenas — despede-se com promessas. Promessa de seguir inquieto, de não aceitar a injustiça como destino, de não negociar os sonhos por conforto. Que seu exemplo nos carregue adiante, como um vento morno a empurrar as velas de quem ainda crê na travessia. Obrigado, Pepe Mujica, por ter sido farol em tempos de névoa. A humanidade te abraça — não no fim, mas no eterno que carregas contigo.

Paulo Baía em 13 de maio de 2025 em Cabo Frio/RJ

*Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor da UFRJ.

Foto da capa: Kaloian / Ministerio de Cultura de la Nación, CC BY-SA 2.0 <https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0>, via Wikimedia Commons

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Respostas de 8

  1. Obrigado, Baía. Tuas palavras definiram bem o homem que foi Don Pepe e como seguirá sendo em nossos corações e mentes.

  2. Texto maravilhoso, sensível e que capta a essência de Mujica. Pegou-me especialmente a frase “Mujica era o gesto que abraça antes da palavra que promete”.
    Atitude, coerência, sabedoria, empatia com as dores do mundo e da humanidade. Viva você, Mujica!

  3. Professor Baía, gratidão por conseguir expressas tantas verdades num curto texto, dedicado a este grande ser humano, chamado Pepe Mujica

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