Estamos na era do feudalismo digital?!

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Por JANETE SCHUBERT*

A ruptura econômica, política, social e cultural produzida pelo declínio do mundo feudal, resultou em mudanças tão significativas e radicais que, visando compreender tais transformações, surgiram as ciências sociais. Face as profundas transfigurações na sociedade medieval na Europa, não foram poucos os que temiam por uma total desintegração social. 

O mundo feudal se organizava baseado em três pilares principais: política descentralizada, economia agrária de subsistência e uma sociedade rigidamente hierarquizada. Esse sistema era estruturado em torno da posse da terra, que era a principal fonte de riqueza e poder e nas relações de dependência pessoal entre senhores e vassalos.

Embora existissem reis, sua autoridade era limitada, já que os verdadeiros detentores do poder eram os senhores feudais, que governavam seus feudos de maneira bastante autônoma. O feudo era a unidade básica do sistema feudal, composta por terras cedidas pelo senhor a um vassalo em troca de fidelidade e serviços (geralmente militares). Existia uma relação de vassalagem: o suserano (senhor maior) concedia terras e proteção ao “vassalo” em troca de liderança e apoio.

Um dos principais fatores de declínio do mundo feudal foi o Renascimento do comércio e das cidades. A partir do século XI, houve um aumento das atividades comerciais na Europa, impulsionado pelas Cruzadas, que reabriram rotas comerciais com o Oriente. O crescimento das feiras e dos mercados fortaleceu a economia monetária, diminuiu a dependência do feudo e da agricultura de subsistência. Com isso, surgiram novas classes sociais, como a burguesia, que passaram a desafiar o poder da nobreza feudal.

Um mundo que se desintegrava e produzia novas sociabilidades, novas formas de existir, transformando a vida dos trabalhadores, que antes estavam no campo e, agora, iam amontoar-se nas fábricas. Inicialmente os trabalhadores chegavam a trabalhar até 18 horas por dia, em condições completamente insalubres, inclusive mulheres e crianças. A rápida transformação social produzida na mudança do feudalismo para era industrial trouxe, além de muitas doenças infectocontagiosas, devido as condições insalubres, suicídio, alcoolismo, etc. A nova realidade impunha uma mudança radical na vida dos trabalhadores que tinham que “adaptar-se” a este novo mundo que havia se transformado de forma veloz.

No sistema feudal, os camponeses eram servos e deviam obrigações aos senhores em troca de proteção e acesso à terra. Com a crise do feudalismo, muitos camponeses foram libertos, mas, sem terras próprias, tiveram que procurar trabalho assalariado, na maioria dos casos, em condições precárias.

No feudo o trabalho era realizado conforme o ritmo da natureza, sem horários rígidos e com períodos de descanso após as colheitas. Na fábrica o trabalho passou a ser repetitivo, com jornadas longas (12 a 16 horas diárias), baixa remuneração e disciplina rigorosa imposta pelos patrões.

Muito embora, se diga que a força de trabalho passou a ser livre e assalariada na transição do trabalho do feudo para a fábrica, este período foi marcado por dificuldades para os trabalhadores, que passaram de uma vida agrícola com certa estabilidade para um regime fabril explorador. As lutas operárias e as mudanças sociais conseguiram garantir algumas melhorias nas condições de trabalho.

Todavia, estes direitos fazem com que hoje existe a alegação de que é muito dispendioso manter um trabalhador formal, porque envolve vários encargos além do salário. As empresas precisam pagar tributos, benefícios e direitos trabalhistas previstos na legislação. Tal cenário tem levado muitas empresas a buscar alternativas como terceirização e trabalho informal para reduzir despesas, um fenômeno denominado de uberização do trabalho.

Vamos ao ponto de nossa análise. Na época feudal havia grandes extensões de terra que eram cedidas aos vassalos, em troca de serviços e parte da produção. Fazendo uma analogia ao sistema feudal medieval pode-se pensar que hoje existem “feudos digitais”(as big techs) onde os senhores feudais controlam o território (o espaço digital), e os servos (usuários e trabalhadores de plataformas) dependem dessas estruturas para sobreviver, sem autonomia real sobre seus dados, trabalho ou renda. Como funcionam os feudos digitais (as big techs)? São espaços cedidos para o comércio, como por exemplo, a empresa Amazon que funciona como uma plataforma de venda, em que, tanto a empresa, quanto os vendedores terceiros, podem oferecer produtos. Isso significa que os produtos disponíveis podem ser vendidos diretamente pela Amazon ou por outros vendedores. Para que terceiros possam utilizar este espaço a Amazon cobra taxas sobre cada venda realizada por terceiros, além de oferecer serviços extras, como logística e publicidade. É a propriedade sobre um espaço “virtual”, mas que gera excedentes bilionários para o dono do “feudo digital”. A Amazon registrou um lucro líquido de US$ 30,4 bilhões em 2023[1].

Diante do exposto, o que podemos pensar sobre as condições de trabalho e de vida dos trabalhadores ao longo dos tempos? Analisando as metamorfoses da questão do trabalho, pode-se arrazoar que o trabalho passou por diversas transformações ao longo da história, acompanhando as mudanças tecnológicas, econômicas e sociais. Para citar algumas das novas mudanças na era globalizada: fim da estabilidade e crescimento da informalidade; automação e inteligência artificial; uberização e trabalho por aplicativos; home office e economia digital.

Se utilizarmos uma lupa com certo verniz civilizatório, até se poderia considerar que a situação dos trabalhadores “melhorou” ao longo dos anos, mas, certamente não é isso que nós, a classe trabalhadora, estamos vivenciando. As estruturas, as formas de organização e as nomenclaturas podem até ter mudado, mas, um fato é inegável, no alicerce, na base, subsiste a brutal exploração da força de trabalho, sob novas e quiçá, para alguns, mais palatáveis, roupagens. O que Karl Marx denominava de Lumpenproletariat ou subproletariado, ou seja, aqueles trabalhadores que não interessam para o sistema produtivo se ampliou drasticamente.  Mészáros em sua obra Para além do capital, desenvolveu o conceito de “barbárie social” para descrever a profunda crise do capitalismo, que, segundo ele, coloca a humanidade diante de um impasse: superar o sistema ou afundar em um colapso social e ambiental irreversível. Apoiando-nos no conceito de Mészárospodemos cogitar que já estamos na barbárie social. Temos a maior concentração de renda da história da humanidade no século XXI. Nunca antes a desigualdade global foi tão extrema, com um pequeno grupo de bilionários controlando mais riqueza do que bilhões de pessoas juntas. Em 2022, os 1% mais ricos do mundo ficaram com quase 2/3 da nova riqueza gerada, segundo relatório da Oxfam. O número de bilionários dobrou na última década, enquanto metade da população mundial luta para sobreviver. Empresas como Amazon, Apple e Tesla acumulam fortunas bilionárias enquanto trabalhadores enfrentam salários baixos e precarização. Nas periferias do Brasil essa barbárie expõe cotidianamente a luta pela sobrevivência, não existe um horizonte de esperança, a grande massa de trabalhadores que vive do trabalho precarizado, tem como única utopia sobreviver no dia-a-dia.

Referências bibliográficas

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Tradução de Luís Cláudio de Castro e Costa. São Paulo: Boitempo, 2007.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013. v. 1.

MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. Tradução de Paulo Cezar Castanheira e Sérgio Lessa. São Paulo: Boitempo, 2002.

OXFAM. Página oficial. Disponível em: https://www.oxfam.org. Acesso em: 11 fev. 2025.


*Janete Schubert – Doutora em Sociologia pela UFRGS e pesquisadora associada a Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais.

http://lattes.cnpq.br/6526295561623149

E-mail: janete.schubert.js@gmail.com

Foto de capa: Reprodução


Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia..

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